As frases são rebuscadas e a linguagem não é particularmente rica, tanto do ponto de vista lexical, como semântico. Na nova definição, expressa de um modo algo vago e pouco concreto, a essência do conteúdo não constitui verdadeiramente uma ruptura com a definição anterior. Ainda assim, provocou uma polémica interna e contestação por parte de representantes de alguns países, entre os quais Portugal, o que levou ao adiamento da resolução para data posterior. A recusa desta nova definição por um grupo de membros contestatários deveu-se ao facto destes não se reverem no que consideravam ser uma definição de pendor activista. Para este grupo, o museu deve limitar-se a conservar as obras e permitir a sua investigação, num contexto de continuidade sem sobressaltos de traços epistémicos conservadores, em grande parte limitado a museólogos ou historiadores de arte. Ora, foi em 1960 que a emergência do discurso multicultural obrigou a Europa a uma redefinição de novas narrativas, apoiadas pela literatura contemporânea dos Cultural Studies, o que logo nessa época levou os museus a redefinir novas metodologias de interpretação e de comunicação, reforçadas depois pela pedagogia artística nascida nos museus de arte moderna e contemporânea, pela emergência do discurso feminista e de género, e por novas reflexões em torno das questões pós-coloniais. Assim, quando em 2007 o ICOM define a missão dos museus, esta é já anacrónica, se pensarmos que foi também em 2007 que se comemorou o bicentenário da abolição do tráfico transatlântico de pessoas escravizadas. Não mais poderia ser adiada uma reflexão nos museus sobre a memória, as políticas da memória, a negociação cultural com o passado imperial, desenvolvendo-se modos alternativos de conhecimento “deseuropaizados”, para os quais os museus têm uma missão fundamental na difusão de conhecimentos materiais e simbólicos. O que se depreende da definição de 2007 e da atitude dos que recusaram a nova definição, considerada de teor ‘activista’, revela uma concepção estática destes, e o receio de que actores com práticas de investigação e de produção de saber e de comunicação interdisciplinar possam ‘ocupar’ os museus e abri-los a públicos e debates que escapam à vigilância destes específicos museólogos. É esse o fantasma no mundo nos museus de hoje. Os museus são instrumentos e fóruns fundamentais para debater o presente mirando o passado, em tudo contrários a uma visão que se fixa no passado, como se esta visão não fosse condicionada pela epistemologia, conhecimentos e experiências do presente. Em 1953, um cartaz do Musée de l’Homme, em Paris, anunciava: “Faça a volta ao mundo em duas horas no Museu do Homem”. E outros museus seguindo a mesma publicidade haveriam de reduzir o tempo da volta ao mundo. Mas que mundo é este? É que o mundo do tempo da criação do ICOM não é o de hoje, o mundo mudou e os museus mudaram com ou sem missão pré-determinada. O museu é, entre outras coisas, muitas e diversas, um ponto de vista sobre o mundo do qual não está nem alheio, nem distante. Organiza, nas suas narrativas e na sua terminologia, relações culturais, relações de produção artística, saberes distintos, classificações. E neste último aspecto, os museus têm como missão a revisão epistemológica das classificações: os museus de etnografia, muitos deles constituídos por obras apropriadas pelos agentes dos antigos Impérios, não podem prolongar este status quo. E até se pode questionar que se não alterarem a sua função de museu que olha “o outro”, os “primitivos”, podem desaparecer porque a descolonização também acontece na Europa actual. E porque os museus não estão isentos da intervenção social, são sujeitos aos debates do seu tempo, como aquele que hoje acontece na Holanda em torno da utilização do termo Gouden Eeuw (a Idade do Ouro), porque não faz justiça a todos os que foram explorados durante o tráfico atlântico, durante a expansão e grande produção holandesa (nas palavras de Tom van der Molen, conservador da secção do século XVII do Amsterdam Museum). Por outro lado, o Rijksmuseum, importante museu holandês que há pouco tempo abriu o debate sobre o uso do termo “negro” em algumas legendas da pintura antiga, afirma que se devia continuar a utilizar o termo e simultaneamente apresentar uma mega-exposição sobre a escravatura. São debates que ultrapassam positiva e imperativamente os limites de qualquer definição de missão, veiculando de um modo plural preocupações de intervenção social – o fantasma do activismo – que, a ser consideradas, acabariam com os museus de bairro, com os museus comunitários e até com os museus da Memória, cuja essência é serem museus que acolhem, tratam, investigam e comunicam todos os actos, objectos e memórias das lutas e do activismo político. Para não falarmos da emergência do conceito de pós-museus, desenvolvido por Eilean Hooper-Greenhil, que os diferencia dos museus de tipologia universal porque tanto introduziram novas formas arquitectónicas que ultrapassam a caixa ou o baú. Focando-se na relação com a comunidade onde estão inseridos, gerindo reações de poder tão presentes nas artes e nos objectos de culto, incluem múltiplas epistemologias, fundamentam parte da sua programação em workshops e defendem a democratização do poder curatorial. Os museus são cada vez mais transnacionais, podem e devem ser contributos e instrumentos da História Global e, para tanto, devem acolher a intervenção externa tanto social quanto cultural. Como dispositivos de imagens têm, com esses recursos, a energia de confrontarem e desconstruírem o fluido interminável de imagens para que estas não sejam apenas vistas como banalidade, distracção ou parte da grande indústria de entretenimento. Os museus são zonas de contacto privilegiadas e seria um contributo para o retrocesso civilizacional que os museólogos, com receio do conhecimento aberto, os fechassem em caves guardadas por corporações de museólogos.
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