FIM

No contexto da investigação em Ciências Sociais e em Artes o termo memória deve ser acolhido como uma analogia ou uma metáfora cuja origem se refere às múltiplas capacidades neurológicas do cérebro e às complexas e infinitas funções e operações que em nada podem comparar-se ao uso corrente da palavra memória. O não esclarecimento desta diferença substancial leva-nos a incorrer numa concepção pobre e redutora dos conceitos de memória e de pós-memória e até à caricatura dos mesmos [1].

Museum of the world (Extract), 'entre autre chose', tríptico 1/3, Collège des Bernardins, Paris | 2014 | Djamel kokene-Dorléans (cortesia do artista)Museum of the world (Extract), 'entre autre chose', tríptico 1/3, Collège des Bernardins, Paris | 2014 | Djamel kokene-Dorléans (cortesia do artista)
 
A este propósito, são claras as palavras de Roberto Vecchi que, numa das primeiras newsletters do projecto MEMOIRS, afirmava: “Há uma redundância de metáforas que expressam a memória ou o seu contrário, o esquecimento. Mas, como apontado por Harald Weinrich, as imagens que representam a memória, na história das ideias ocidentais, não são ilimitadas. Na verdade, baseiam-se em dois arquétipos essenciais: o do armazém e o outro, de origem platónica, o da lousa. O primeiro, ligado à retórica, refere-se ao campo da memória, o segundo, ao da recordação. Dar expressão à memória a partir de metáforas é significativo porque assinala um aspeto fundamental da memória a que sempre ficamos presos quando tentamos delimitá-la. A memória deixa-se apreender em particular através do que Aleida Assmann chama mediadores. Trata-se dos modos com que conseguimos dar uma forma mais concreta à natureza fluida, complexa e escorregadia da memória e da recordação como matéria, ao mesmo tempo, física e metafísica” [2].
 
Evitando estas armadilhas o projecto de investigação MEMOIRS, Filhos de Império e Pós-Memória Europeias partiu de um conceito relativamente simples, mas com bastante eficácia operatória num contexto pós-colonial. Trata-se do conceito de pós-memória da autoria de Marianne Hirsch, apresentado em Family Frames: Photography, Narrative, and Postmemory (1997), e que partia da própria experiência pessoal da autora enquanto filha de judeus que sobreviveram à Segunda Guerra Mundial exilando-se na América. Referia-se, principalmente, à relação memorial entre os filhos dos sobreviventes do Holocausto e as memórias dos seus pais. O conceito foi difundido e aplicado a outros campos de estudo, não tendo sido isento de alguma polémica, revisão e alargamento, mormente por Beatriz Sarlo, que critica o que designa como “inflação teórica” (Tiempo Pasado, 2005) e reclama uma maior legitimidade da subjectividade do herdeiro que reconstrói o passado traumático [3]. Tal como este contributo teórico de Beatriz Sarlo, também foram importantes os conceitos de “memória multidireccional” e de “sujeito implicado”, de Michael Rothberg. No seu conjunto foram contributos  fundamentais para a abertura a um horizonte de possibilidade de entendimento e teorização do campo da pós-memória aplicado às práticas artísticas dos que são herdeiros de ex-impérios europeus, sejam eles  filhos dos militares intervenientes nas guerras das independências, dos ex-colonizados, dos ex-colonizadores e de todos aqueles que, não tendo uma experiência biográfica associada às colonias, têm uma memória cultural da colonização transmitida pela experiência do grupo ou devido ao seu interesse no tema.
 
O processo dinâmico que esteve na origem desta investigação, problematização e produção de conhecimento não excluiu problematizar e deslindar as fronteiras e as diferenças entre memória pública tão presente e de forma tantas vezes subliminar no nosso quotidiano e memória histórica - da museografia aos livros escolares - como narrativas produzidas em determinados contextos por agentes do poder e aceites em determinado momento histórico, mas necessariamente revistas ao longo do tempo. Este é um dado importante na medida em que as produções na condição da pós-memória lidam com estes dispositivos ideológicos quantas vezes inibidores da expressão ou até repressivos.
 
Este alargamento do conceito inicial da pós-memória permitiu a recensão de outras experiências biográficas menos ‘típicas’ e um deslocamento do tema da biografia para a produção artística.  Um dos benefícios deste alargamento, da sua reformulação e da sua extensão a uma terceira geração, em particular de artistas e escritores, foi possibilitar a compreensão, sem desvalorizar, das memórias herdadas mas já mais difusas do que as da geração anterior, um maior investimento artístico centrado na produção de memórias para o futuro de que são exemplos os trabalhos de artistas e escritores como Josèfa Ntjam, Sara Sadik, Otobong Nkanga, Antonio Dikele Distefano, Binta Diaw.

Chegamos, assim, às obras na condição da pós-memória, a qual permite o entendimento e o esclarecimento de todo o processo, ao exibir a construção de outras narrativas que resgatam processos históricos de subalternidade e promovem a abertura a outros mundos. Mas, só por si, a condição de pós-memória não é uma categoria estética, nem um valor artístico. O processo que está na base da produção destas obras assenta num processo híbrido de várias experiências e formações artísticas, e, consequentemente, é a partir desta hibridez que deve continuar-se a investigar, no sentido de encontrar e produzir o vocabulário e as categorias de recepção artística para este conjunto imenso e diverso de obras no horizonte da contemporaneidade.
 
Com esta Newsletter do projecto MEMOIRS, a nº 147, damos por concluída um percurso iniciado a 5 de maio de 2018. Ao grupo de investigadores do projecto, às dezenas de colaboradores externos, a todos os artistas que contribuíram com as suas imagens, aos produtores e designers, o profundo agradecimento dos responsáveis pela edição, que de duas coisas estão certos: terem contribuído para a partilha de um bem comum, o conhecimento, e terem-no feito num espírito de serviço público.
 
Continuaremos presentes no espaço público:
- através da exposição Europa Oxalá, com curadoria de António Pinto Ribeiro, Katia Kameli e Aimé Mpane e que resulta de uma parceria entre o projeto Memoirs/ Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, MUCEM (Marselha), Fundação Calouste Gulbenkian, Delegação de Paris, Africa Museum-Museu Real da África Central (Tervuren, Bélgica).
- através das publicações em livro da autoria da equipa de investigação Memoirs e de alguns investigadores colaboradores.

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[1] Para um esclarecimento desta problemática consultar Pedro Cabral, O Paradoxo do Cérebro - Memória, Autismo, Identidade, Temas e Debates, 2021.
[2] Roberto Vecchi, “Mitologia e Memória”, MEMOIRS NEWSLETTER #26, 10 de Novembro de 2018.
[3] O filme Los Rubios de Albertina Carri (2003) tem sido considerado um exemplo prático da tese de Beatriz Sarlo no contexto da pós-memória sul-americana. Neste filme é a própria noção de rememorização directa que é questionada.

MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624); MAPS - Pós-Memórias Europeias: uma cartografia pós-colonial é financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT - PTDC/LLT-OUT/7036/2020). Os projetos estão sediados no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.  

por António Pinto Ribeiro
A ler | 10 Janeiro 2022 | arte, artistas, cultura, fim, Memoirs, memórias, projeto, sociedade