Patrice Lumumba, 60 Anos Depois

No dia 17 de janeiro de 2021, assinalaram-se 60 anos sobre o assassínio de Patrice Lumumba, o primeiro primeiro-ministro do Congo independente (República Democrática do Congo) e um dos grandes líderes africanos dos anos 1960. A relevância histórica deste assassínio comporta fatores locais, regionais e globais que vão de rivalidades e cumplicidades internas à importância do Congo como realidade e imagem em África; do contexto dos países africanos em luta pela independência às disputas de poder entre as potências colonizadoras; passando pelas relações entre uns e outros no contexto da Guerra Fria, cujas consequências se fazem sentir até hoje. Na verdade, tratou-se de um assassínio que ficou anunciado no dia da independência, a partir de um discurso.

No dia 30 de junho de 1960, na cerimónia de proclamação de independência do Congo, houve três discursos: do rei Baudouin da Bélgica, antiga potência colonizadora, do Presidente do Congo, Joseph Kasavubu, e de Patrice Lumumba, primeiro-ministro, este último, numa intervenção não prevista no protocolo inicial. Foi um discurso curto de cerca de doze minutos, escrito numa linguagem acessível e incisiva, performativa e visual, um discurso que, como defende o historiador Jean Omasombo Tshonda, “funda o Congo independente”.1 Os primeiros oito minutos são a mais clara definição do que é o colonialismo do ponto de vista de um continente, de um país, de uma comunidade, de uma pessoa.

Lisette Lombé, in Black Words, Bruxelas, Arbre | 2018 | cortesia da artistaLisette Lombé, in Black Words, Bruxelas, Arbre | 2018 | cortesia da artista

Para Lumumba, o que estava em causa com a descolonização que a independência trazia, que a nova ordem mundial saída do pós-Segunda Guerra oferecera como promessa e a que a conferência de Bandung, em 1955 apelara, era o lançamento de um novo entendimento do mundo que reimaginasse radicalmente as relações entre as pessoas, os povos, as comunidades e os estados. A promessa era a luta, pois o que estava em jogo não era algo apenas nacional, mas de todo o continente e de todos os povos subjugados. “A independência do Congo marca um passo decisivo rumo à libertação de todo o continente”.2 E, na verdade, o impacto deste discurso foi nacional, continental e mundial e ainda hoje as metamorfoses desta história transnacional e transcontinental têm ramificações nos mais variados setores da vida pública e privada das sociedades europeias e africanas contemporâneas, traduzindo-se numa renovada necessidade de adjetivar a palavra descolonização – da mente, do imaginário, do ser, do conhecimento, das artes, das narrativas, do espaço, das pessoas. 

A vida efémera de Patrice Lumumba, e de tantos outros lutadores africanos assassinados e aprisionados no que se pensava ser o início de um percurso de libertação, mostra bem como o colonialismo se prolonga na descolonização, ensombra a independência e assombra o pós-colonial. No mesmo ano, de 1960, Patrice Lumumba, primeiro primeiro-ministro do Congo independente, seria colocado em prisão domiciliária em setembro, capturado em novembro e, a 8 de janeiro, escreveria a última carta à sua mulher, Pauline, nove dias antes do seu assassínio, a 17 de janeiro de 1961. Nela regista a permanência do velho mundo do colonialismo em metamorfose para o neo-colonialismo na defesa do bastião branco na África Austral de que a sua prisão é expressão, conjugado com o novo mundo saído da Segunda Guerra Mundial, sendo o Congo que ele representa um dos locais nevrálgicos de confronto da Guerra Fria em África. O assassínio de Lumumba revela os passos desta política no continente, executada pelos seus rivais congoleses e por oficiais belgas, com a anuência dos Estados Unidos e a vigilância da CIA, na sua política de combate à ação comunista no mundo protagonizada pela União Soviética, e na sua sólida e histórica relação com a Bélgica no que dizia respeito à exploração dos recursos da “colónia”. Mas, nesta carta, Lumumba afirma também a certeza na vitória final do continente:

Nós não estamos sozinhos. A África, a Ásia e os povos livres estarão sempre ao lado dos milhões de congoleses que não desistirão da luta enquanto os colonialistas e os seus mercenários permanecerem no nosso país.

Duas imagens ficarão no imaginário coletivo: a imagem do jovem primeiro-ministro, líder triunfante do discurso da independência, que a todos toca e que representa o mundo novo; a imagem de Patrice Lumumba com as mãos presas atrás das costas, rodeado de militares e, com eles, símbolo de um futuro ainda aprisionado pela mão colonial, que marca o rosto de sofrimento do líder e, com ele, de todo o povo congolês e de todos os povos subjugados por um mundo velho.  E termina a sua carta a Pauline, olhando as gerações futuras:

A História revelará um dia o seu veredicto, mas não será a História que se ensinará em Bruxelas, Paris, Washington, ou nas Nações Unidas; será aquela que se ensinará nos países libertados do jugo do colonialismo e das suas marionetas.

45 anos depois do discurso de Patrice Lumumba e de um neo-colonialismo bem ativo, a Bélgica iria abrir um inquérito parlamentar à morte de Patrice Lumumba, ao qual não foi alheia a publicação dos livros de Adam Hochschild, King Leopold’s Ghost: A Story of Greed, Terror and Heroism in Colonial Africa, em 1998, e, em 1999, The Assassination of Lumumba, de Ludo De Witte.

Concluiu-se, timidamente, o que todos sabiam e ninguém pronunciava: o envolvimento “moral” da Bélgica no assassínio do jovem líder, confirmando o que o seu companheiro de armas Amílcar Cabral, tinha escrito em Fevereiro de 1961 no seu texto “Morreu Lumumba para que a África viva”3. Seguiu-se, em 2002, um pedido formal de desculpas do Estado belga à família de Patrice Lumumba e começava, assim, a desvendar-se o “segredo público”4 que há muito assombrava a Bélgica, com todas as imagens fantasmáticas de um jovem primeiro-ministro congolês assassinado com os seus companheiros, desmembrado e dissolvido em ácido, do que teriam sobrado dois dentes, e o apoio da Bélgica ao terrível ditador Mobutu, que, durante décadas, iria comandar o Congo. Abria-se, assim, a hipótese para que, um dia, uma outra história fosse também ensinada a todos os Belgas e a todos os europeus, e o processo de descolonização continuasse o seu caminho em África e na Europa. É a isso que hoje continuamos a assistir.

Em 2018, foi atribuído o nome de Patrice Lumumba a uma pequena praça em Bruxelas, em Abril de 2019, o então Primeiro Ministro belga, Charles Michel dirigiu um pedido oficial de desculpas aos mestiços belgas arrancados às suas mães africanas e internados em instituições na Bélgica durante o período colonial, assistimos ao longo processo judicial dos filhos de Patrice Lumumba relativamente à devolução dos restos mortais do seu pai, e, também, no âmbito das ações do movimento Black Lives Matter,  às decisivas intervenções sobre as estátuas do Rei Leopoldo II, que, em si, epitomiza a memória brutal da Bélgica colonial que Patrice Lumumba descrevera no seu discurso. São as palavras deste discurso que são retomadas por Pitcho Womba Konga, performer, ator e rapper belga, na peça Kuzikiliza (2017), título que, traduzido do swahili significa “fazer-se ouvir”. Na performance, o ator cria as condições de escuta do seu discurso escrito pelas palavras de Lumumba, mostrando a sua atualidade e as etapas da descolonização por cumprir. São também as palavras de Lumumba que a poeta e slammer Lizette Lombé atualiza no seu poema, pronunciado na Bélgica pós-colonial em que ambos os artistas vivem. É desta forma que a pós-memória de Patrice Lumumba, coloca hoje as suas palavras sobre continuados silêncios:

Quem irá esquecer?
Que um negro se tratava por tu…
Não como a um amigo, é claro,
Mas porque o senhor, respeitoso, estava reservado aos 
Brancos.
Quem irá esquecer?

Eles disseram-me
És uma escarumba! Uma grande macaca! Uma barata! 
Eles disseram-me 
És uma porca! Preta de merda! 
A tua mãe dormiu com um negro! És filha das ervas! 
Eles disseram-me 
Devias voltar para a tua terra! Lá para o mato!
Para a tua cabana!
Devias voltar para a tua árvore! A tua liana! As tuas bananas!
Devias dar graças à Bélgica por te ter acolhido! 
Mesmo que tenhas nascido aqui…

Quem irá esquecer?
Que um negro se tratava por tu…
(…)
Quem irá esquecer?5

Nenhum dos artistas viveu a época do colonialismo no Congo, nem sequer o período oficial da descolonização, mas os seus discursos mostram-nos que o ato colonial não terminou com quem o praticou e com o enquadramento histórico que conduziu à independência política, nem a descolonização se cumpriu na sua plenitude de restituição.

No dia 30 de Junho de 2020, Philippe, o rei dos Belgas, que tem hoje a idade do Congo independente, reconhece, pela primeira vez, as dores e humilhações infligidas ao povo congolês e os seus prolongamentos no presente, em carta dirigida ao presidente da República Democrática do Congo Félix Tshisekedi.  Nas suas palavras: “Desejo expressar o meu mais profundo pesar pelas feridas do passado, os sofrimentos e as humilhações infligidas ao povo congolês cuja dor é hoje reacendida pela discriminação ainda presente nas nossas sociedades.”6  Num correio cruzado, no mesmo dia, a filha de Patrice Lumumba, Juliana Lumumba dirige-se ao rei dos Belgas solicitando que os restos mortais do seu pai sejam devolvidos à família e ao Congo.

60 anos depois do discurso de Patrice Lumumba que fundou o Congo e condenou o seu autor, o rei dos Belgas aproxima-se, de forma semântica e politicamente dialógica, do discurso de Patrice Lumumba e abre um processo de revisitação da história, dos arquivos e da memória, propondo uma Comissão de Verdade, Reconciliação e Restituição. Paralelamente, e através do sistema judiciário e real, a Bélgica irá devolver à família de Patrice Lumumba os restos mortais, que um dos oficiais belgas envolvidos no assassinato sinistramente tinha guardado para si e que há muito assombram o imaginário belga. Neste ambiente nacional de grande mudança, mas também de consciencialização global do impacto de passados brutais no nosso presente, que o movimento Black Lives Matter representa, e na sequência da resolução do Parlamento de Bruxelas em Abril de 2019 que favorece o repatriamento de restos mortais e objetos trazidos para a Bélgica durante o período colonial, seis instituições, lançaram o projeto HOME, cujo objetivo é dar paz, repatriamento e sepultura aos restos mortais de muitos corpos negros colonizados que foram trazidos para a Bélgica no período colonial, como troféus de conquista, como objetos de estudo, como seres a exibir, como corpos de trabalho.7

Estará talvez agora a iniciar-se uma nova fase da descolonização, em que a Bélgica começa a olhar os seus fantasmas coloniais e inicia um processo de descolonização da sua antiga colónia. Talvez um dia se cumpra de outra forma o sonho enunciado por Patrice Lumumba, na última carta à sua mulher Pauline, e seja possível às crianças belgas e às crianças congolesas, às crianças europeias e às crianças africanas aprenderem a parte da história comum dos seus países, respeitando as memórias diferentes e recusando as lógicas do esquecimento.

MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624);
MAPS  Pós-Memórias Europeias: uma cartografia pós-colonial é financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT - PTDC/LLT-OUT/7036/2020).
Os projetos estão sediados no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.  

  • 1. Tshonda, Jean Omasombo (2020) La Décolonisation du Congo belge. La gestion politique des 24 derniers mois avant l’indépendance, Tervuren: AfricaMuseum.
  • 2. Todas as citações são de Patrice Émery Lumumba (2018) Chora, Ó Negro, Irmão Bem-Amado, Falas Afrikanas. (tradução de Apolo de Carvalho, José Santy Jr e Zetho Cunha Gonçalves), pp. 18, 24.
  • 3. Cabral, Amílcar “Morreu Lumumba, para que a África viva, 1961”, in Chora, Ó Negro, Irmão Bem-Amado, pp. 27-38.
  • 4. Michael Taussig, (1999), Defacement: Public Secrecy and the Labor of the Negative. Stanford, Stanford University Press. p. 6.
  • 5. Lombé, Lizette (2018) Black Words, Paris, L’Arbre à paroles. Publicado em português em Memoirs Público Encarte, 2018, p. 17. (tradução de Fernanda Vilar e Felipe Cammaert, revista por António Sousa Ribeiro).
  • 6. “Philippe, le roi des Belges, exprime ses “plus profonds regrets” au Congo, 30 de Junho de 2020.
  • 7. HOME - Human remains Origin(s) Multidisciplinary Evaluation é um projeto científico federal lançado em 2019, com quatro coordenadores e seis instituições. Mais informação aqui.

por Margarida Calafate Ribeiro
A ler | 30 Janeiro 2021 | Bélgica, Congo, História, maps, Memoirs, Patrice Lumumba