A propósito de "O Olhar de Milhões", entrevista a Raquel Castro
Este espectáculo é, pode dizer-se, o culminar de um processo de trabalho longo, composto por partes distintas. Ao todo terão sido quase três anos, com intervalos: um total de cinco residências por todo o país, oficinas para a população local, e um convite ao cronista e crítico literário António Guerreiro para realizar um curso de média duração aberto a todos, em Lisboa. Como pano de fundo sempre a questão do entretenimento…
Sim, foi um processo que se estendeu por todo esse período de tempo. Três anos intermitentes desde a primeira ideia, na prática serão cerca de 6 meses de criação. Na altura estava a pensar em fazer uma nova criação e encontrava-me bastante dividida entre trabalhar sobre Turismo ou em fazer algo a partir da ideia de Entretenimento. Interessava-me pensar sobre a forma como somos e estamos permanentemente entretidos, a velocidade a que vivemos, os estímulos permanentes a que estamos expostos, esta coisa de estarmos sempre ligados, sempre a receber informação, distraídos de nós próprios.
Começando por explicar o ponto de partida da proposta, de que forma se poderia dizer que estas diferentes iniciativas ajudaram a compor o que hoje vemos? As residências, por exemplo…
A Rede 5 Sentidos proporcionou a possibilidade de fazer residências artísticas, bem como financiamento para o tempo de trabalho. As residências aconteceram em Viseu, na Guarda, no Porto, em São Miguel e em Montemor-O-Novo. Algo que nos interessou explorar em cada um dos sítios foi o facto de haver um Shopping em todos estas cidades (com a excepção de Montemor-O-Novo) e o que é que isso representa em cada uma delas - como espaço de consumo e de lazer, onde se passa tempo, onde se vai passear. Claramente ficou por fazer um espectáculo só sobre isto. Mas achámos que um cruzeiro, que foi onde escolhemos ambientar este espectáculo, também contém essa e uma infinitude de outras possibilidades que o Shopping não tem. Já há algum tempo que eu sonhava dirigir intérpretes e aproveitei o embalo. Passou a ser este o projecto em que finalmente pude trabalhar com um grupo maior. Aproveitei as residências para convidar pessoas com quem queria trabalhar e para explorar, de forma mesmo livre, ideias e materiais… sem a pressão de um resultado final imediato. Fui acumulando assim bastante material e ao mesmo tempo afunilando… procurando um conceito onde esse material pudesse encaixar. O que hoje vemos é uma espécie de súmula mastigada de muito desse material, aquele que sobreviveu a este tempo e que coube nesta história que aqui se conta. Houve muita coisa que ficou de fora, mas não havia outra maneira.
E as acções de formação e o curso…
As acções de formação foram uma forma de “dar algo em troca”, de abrir a porta do estúdio e deixar entrar outras pessoas. E também um pretexto para trabalhar e a partir disso conversar sobre estes temas. A forma como pensamos acaba por ser muito transversal, convoca vários exemplos díspares e vários suportes (internet, filmes, literatura, ensaio), acho que em relação a muitas coisas, as pessoas pensam ou se surpreendem de uma mesma maneira… e claro, quando pensamos em coisas mais existenciais ou profundas, somos todos muito parecidos.
O curso com António Guerreiro surgiu porque senti necessidade de algum conhecimento teórico relacionado com algumas destas questões. Sabia que o António, que é um cronista e um teórico que admiro, tinha um formato tipo Glossário do nosso tempo e discuti com ele algum dos conceitos que podiam interessar ao trabalho, como lazer/ócio, referir outros e que podiam conviver com outros que ele quisesse incluir. O António, nas suas palavras, propunha, sem grande respeito por fronteiras disciplinares e metodológicas, o exercício de se traçar uma ‘ontologia do presente’ ou caracterizar as «tonalidades afectivas fundamentais da época através de conceitos, categorias e formações de sentido», o que sem dúvida alguma nos interessa. Porque de certa forma, tem paralelos com o que procuramos. E mais uma vez, achei que seria bom abrir essa porta a outras pessoas que quisessem participar. Foi muito interessante e teve muita adesão, criou-se uma comunidade crítica, ainda que temporária, e aprendi imensa coisa.
Este longo processo, composto, como vimos, por momentos de discussão, pesquisa de terreno e improvisação em estúdio tem um pendor claramente investigativo: investigação pelo estudo (leitura e discussão de textos, visionamento de filmes), investigação pela experiência (como na pesquisa de terreno nos Centros Comerciais
do país todo), investigação pela expressão (levada a cabo na sala de ensaio). Como entendes investigação? De que forma se relaciona com pesquisa artística?
Para mim, de forma cada vez mais clara, a criação surge através de perguntas ou inquietações que geram mais perguntas, às quais vou tentando responder. Tudo o que é periférico a isso acaba por ajudar a compreender melhor o que preciso. E gosto de “ver” aquilo que já foi feito por outros artistas, que filmes, que textos. Gosto de me rodear de pessoas com quem posso aprender, com quem posso discutir, isso é o que me dá mais gozo. Acho um enorme luxo poder passar dias a conversar com outras pessoas sobre tudo aquilo que pensamos, sobre a forma como olhamos para o mundo. Que mais profissões têm esta possibilidade? No fundo, todo esse tipo de investigação acaba por ser fazer “devising” à volta de um tema: aprofundar um tema usando todo o tipo de ferramentas, dentro e fora do estúdio. Paralelamente, há todo o processo de materializar isso no estúdio, em cena, perceber que improvisações, que formas podemos encontrar de transformar esse material em algo que possa ser visto ou ser dado a ver e a sentir. Aproveito os espectáculos para aprender, em Portugal não há propriamente escolas de encenação, principalmente pessoas que ensinem criação à volta do “devising”, portanto a única forma de aprender é fazendo.
Na forma final do trabalho, isto é, no espectáculo que hoje veremos, o ensaio de David Foster Wallace “Uma coisa supostamente divertida que nunca mais vou fazer” acabou por ser uma referência importante. Queres falar um bocadinho sobre isso?
Os ensaios do David Foster Wallace foram uma das coisas que desencadearam essa vontade de falar sobre Entretenimento. Aliás, há um ensaio sobre ficção e televisão americanas que foi também muito importante. Curiosamente, esse ensaio maravilhoso que referes fez-me pensar bastante na tal ideia do turismo… e no fim a história do espectáculo passa-se num cruzeiro… acabou por se juntar tudo um bocado. Mais do que algo temático, as leituras dos ensaios dele despertaram algo em mim que é raro no contacto com um autor. Fiquei um bocado obcecada com ele, achei que a forma como ele escrevia tinha o tom e a ironia que eu gostaria de ver num texto meu (ou numa peça minha), que ele olhava para o mundo com uma sensibilidade e sarcasmo na qual eu me revia… é uma espécie de paixão… e toda a história dele, o ter-se suicidado, mexe muito comigo. Muitas vezes, penso em que é que ele pensaria e o que escreveria, se estivesse vivo e visse este mundo de hoje. E depois, enfim, todo o tempo e investimento que fiz na Piada Infinita (e que também tem muito a ver com esta temática) sem nunca conseguir acabar de a ler. Foi uma enorme frustração que me perseguiu durante bastante tempo. Está em casa, numa prateleira da estante a olhar para mim e pisca-me o olho todos os dias, à minha espera.
A escolha do conceito final do espectáculo, neste caso, a história do cruzeiro foi-se desenhando mais ou menos ao mesmo tempo em que ias fechando o elenco, durante as várias residências?
O elenco inclui bailarinos e actores mas prefiro pensar neles como intérpretes multi-facetados. Há anos que queria trabalhar com bailarinos e construir algo que fluísse entre a palavra e o movimento, não teatro-dança nem nada do género, mas sim um teatro em que o corpo está muito presente. Alguns deles são também criadores. Todos têm um imaginário que me interessa e que está na peça. Acho que a peça é um bocadinho de todos e isso agrada-me muito.
E o convite à Joana para que escrevesse uma peça de raíz, a partir das improvisações dos intérpretes.
Depois de fechar o conceito, comecei a discuti-lo e a trabalhá-lo com a Joana Bértholo. Já fiz alguns projectos em que a escrita da peça é feita no momento da criação e interessa-me muito desenvolver essa pesquisa e forma de trabalhar. Aqui, pretendia que a Joana fosse dando forma a textos meus e dos intérpretes. Depois, achámos melhor que a Joana fosse escrevendo a partir de improvisações, não íamos conseguir ter tempo para estarmos todos a escrever… mas no fundo, improvisar também é escrever a cena. Desenvolvemos mini-narrativas para cada um e criámos uma estrutura (também ela narrativa) onde encadeamos uma série de materiais que já existiam. Havia já muita coisa que eu queria aproveitar.
Talvez por isso também haja algo de mirabolante nesta história toda, um exagero enumerativo - pesado (trágico, mesmo) - composto de tudo o que se pode fazer num sítio tão supostamente divertido como um cruzeiro. Mas que encontrou na formulação dada pela Joana Bértholo uma grande leveza, e um humor muito subtil e elegante. Diria que a escrita, supostamente realista, rapidamente se percebe não realista, a fazer lembrar alguns filmes portugueses que como que tentam copiar géneros bem definidos, mas falham redondamente, e assumem esse falhanço com um grande humor e uma não menor seriedade. Estou a pensar no Kilas, o mau da fita ou na Crónica dos Bons Malandros… Dirias que de certa forma há algo de cómico neste espectáculo, por muito que o retrato que nos devolva seja trágico?
Sim, lá está, eu desejava que o texto fosse irónico e sarcástico, uma espécie de espelho distorcido da realidade e que tivesse uma progressão violenta. As personagens são especiais e insólitas e vivem muito muito sozinhas. Ao interpretar o texto, ele só vibra numa base de sinceridade, tem que ser feito “muito a sério”, de uma forma muito intensa. Para mim é uma tragédia disfarçada de comédia.