Oh as casas as casas as casas as casas
PERIFERIAS de Carlos Nô
volta-se sempre ao problema da habitação porque a questão central é: onde vamos morar?
E as pessoas andam de um lado para o outro e repete-se sem cessar:
onde vamos morar? onde vamos morar? onde vamos morar? onde vamos morar? onde vamos morar? onde vamos morar? onde vamos morar? onde vamos morar? onde vamos morar? onde vamos morar? onde vamos morar? onde vamos morar? onde vamos morar? onde vamos morar? onde vamos morar? onde vamos morar? onde vamos morar? onde vamos morar? onde vamos morar? onde vamos morar? onde vamos morar? onde vamos morar?
Carregamos coisas, malas, mochilas, arcas, apanhamos aviões, camionetas, boleias. Montamos casas provisórias em arrabaldes de centros mais ou menos periféricos, que logo largamos para outros, provisórios como nós. Dizem-nos que fomos descontinuados, descartáveis como os móveis que antes eram para a vida e que agora são para as épocas. Vai-se vivendo de biscates, contratos a termo, trabalhecos sazonais, formações pagas, convites ad hoc, estágios não remunerados, gig economy e vamos daqui para ali.
Vindos dos mais remotos sítios, atravessamos mares ou montanhas (e de novo os aviões, as camionetas) e dirigimo-nos para as metrópoles onde mais da metade da população mundial mora, incrível só de se pensar nisso – quilómetros de campos e montanhas e vales e estepes sem se ver vivalma, vilas abandonadas, aldeias com velhotes em lares, lares com mais vida do que praças e escolas, monoculturas a perder de vista, vegetação desmesurada nos telhados, solos inóspitos aqui e ali.
E crescem anéis à volta da cidade grande. Erguem-se morros que parecem estantes – ou pilhas, ou amontoados. Ou então rouba-se a terra aos mares e assolam-se os riachos onde as casinhas pernaltas, descaradassímas, nos olham como pardalitos. Onde vamos morar? perguntam. E na sua pergunta a promessa por cumprir da água que alguém carrega em bidões azul forte, mas também das praças, das ruas, dos transportes, do hospital, da escola – para todos: promessa colectiva.
“Meio ano e roda o empregado” disse-me a menina do balcão do banco (antes estatal), com sede no centro. Mas o banco entretanto mudou de nome, de dono e de mão. E a menina agora vende seguros no balcão ao lado, o que quer dizer que teve sorte porque nem sequer teve de mudar de escritório nem de autocarro de manhã – só de telefone e de companhia, mudaram-lhe a plaquinha ao peito onde aparece escrita a fidelidade juntamente com o nome para se ler: “Gabriela Espanca”. “É alguma coisa à Florbela?” “Sim, sim, Somos da mesma família, gente do sul. Charneca rude a abrir em flor”. E pronto: outra vez o para além da metrópole a espreitar na metrópole, dia haverá em que estamos todos cá, moramos nas periferias. No centro os bancos e os turistas.
Lisboa, Galeria Bang Bang, Maio 2014 (texto do catálogo)