“A zona raiana baralha as pessoas e os telemóveis”
“A zona raiana baralha as pessoas e os telemóveis” é a frase que me vem à cabeça quando penso no espectáculo Meias~irmãs de Nuno Milagre (com encenação de Gonçalo Amorim) que vi em Ponte de Sôr em Junho passado.
A razão de me lembrar dele agora e aqui tem a ver com isso mesmo, com uma baralhação de sítios, de gentes, de histórias e de imagens (imagens de cores fortes: as cores de uma África revisitada em pleno Alentejo, mas também imagens de Ponte de Sor, imagens do Alentejo neste Verão…) que faz deste espectáculo, assim à distância já de dois meses, uma memória interessante de revisitar.
Meias~irmãs começou, para mim, na ida de Lisboa para Ponte de Sôr, no gesto de atravessar de carro a planície alentejana ao compasso do calor abrasador que por esses dias se fazia sentir.
Atravessar a planície não para ir a Évora, nem a Beja nem ao Ribatejo mas para chegar mais adiante, já a caminho de Portalegre, e parar antes da meta, em Ponte de Sôr. “É o faroeste”, foi-me dito. “Até lá há um aeródromo e tudo!”. À medida que o carro fazia mais e mais quilómetros, e para trás íamos deixando Coruche, o Couço, e os arredores da Barragem de Montargil, fui começando a compreender os contornos desta afirmação. Eram terras brancas e pobres dispostas sob um sol que encandeava. “O Couço era a aldeia vermelha, a terra mais comunista de Portugal”, “Mais adiante fica a barragem de Montargil”… Tudo isto eu atravessava como caminho e pressentia como paisagem, sentindo-me, a pouco e pouco, mergulhar mais no interior, a ficar mais longe (e não é assim tão afastado de Lisboa!)… até que chegámos.
Estava ali para ir ao teatro e foram as marcas dele o que primeiro me chamou a atenção. Bem no centro da cidade estava um cartaz do espectáculo Meias~irmãs, um enorme outdoor de uma planície africana sob um céu tropical com uma zebra a um canto. A relação foi quase imediata: Alentejo-“África”?!
A estepe amarelo torrado do cartaz sobrepunha-se agora ao amarelo suave da planície que acabara de atravessar. Estranha relação.
Mas continuámos em direcção ao Teatro da Terra.
O Teatro da terra é um edifício azul onde se sente que há espaço para se criar. Funciona como um Centro Cultural: tem um pequeno bar, vários pequenos estúdios para artistas residentes e os funcionários são muito simpáticos e prestáveis. Trata-se de um projecto de Maria João Luís e Pedro Domingos criado em 2009 num esforço de descentralização muito a contracorrente, uma descentralização que parte de gente que é dali e que quer poder fazer coisas ali - não ter de as fazer sempre nas grandes cidades.
No espaço do Teatro da Terra ainda vi o sol a pôr-se, depois comemos qualquer coisa, e fomos para o Cine-Teatro.
À porta meti conversa com os funcionários que me falaram dos espectáculos anteriores, Cal, a partir de um texto de José Luís Peixoto, onde eram projectadas imagens de um “Pai” cigano de uma aldeia vizinha (longa conversa sobre os ciganos no Alentejo e sobre este em particular), e A maluquinha de Arroios, de estilo mais brejeiro, mas a envolver toda a terra, salas sempre lotadas, gente a vir de todo o Alentejo para ver. Falavam-me do impacto do projecto do Teatro da Terra na vida da Freguesia das Galveias e depois contavam-me da vida ali, da pobreza, de um assalto ao Pingo Doce há coisa de poucas semanas, dos ciganos, de às vezes não haver rede de telemóvel (“a zona raiana baralha as pessoas e os telemóveis”…) coisas dispersas que me iam a pouco e pouco deixando entrever a - até que entrámos.
O teatro de Ponte de Sor é um daqueles velhos cine-teatros com apontamentos modernistas (a prová-lo o invulgar desenho da bilheteira) e a sua sala é muito agradável. Na plateia estava alguma gente, não muita (era uma 5ª-feira) e chamou-me a atenção o cenário com apontamentos de móveis de pinho a sinalizarem uma casa burguesa (demasiado cheio de “móveis” para aquilo que eu costumo gostar). Uma sobrexposição de luz branca numa palmeira no canto direito do palco (fora da casa) fazia-a remeter para longe, para uma zona tropical que o cartaz me deixava adivinhar como sendo África.
Começa o espectáculo e zás!
A excelente interpretação de Carla Galvão e Crista Alfaiate como que imediatamente me prendeu à mestria do trabalho de actor. Há qualquer coisa de muito antigo nisto de se ficar fascinado com o virtuosismo da representação, quando não é só o virtuosismo pelo virtuosismo.
Duas mulheres, duas irmãs, ambas muito bonitas, uma de pele e cabelo claros, outra de pele e cabelo mais escuros, uma de vermelho outra de amarelo (duas cores fortíssimas numa luz tropical), filhas do mesmo pai mas de mães diferentes, uma supostamente mulata, outra não mulata e um drama a ligá-las.
Meias~irmãs é um espectáculo de simetrias: de um lado o vestido amarelo (Crista Alfaiate), a não mulata (filha da mãe portuguesa), a irmã bem comportada que ainda vive no Alentejo e toma conta do pai acamado, e do outro o vestido vermelho (Carla Galvão), a irmã mulata com pronúncia espanhola que partiu para longe em busca de uma vida melhor (porque… não é ela a bastarda?).
O texto de Nuno Milagre é daqueles que se vão abrindo, como se se desenrolasse um pano, e em cada uma das suas pregas aparecesse uma nova camada de drama, uma nova explicação para a situação em que estas duas irmãs se encontram (e por vezes o texto, na minha opinião, peca por excesso de explicação, sobretudo no início). Camadas de drama que muitas vezes é social, que se enraíza no contexto sócio-económico em que o mundo as faz existir (e nisto o texto de Milagre é muito interessante): continua-se a emigrar do Alentejo, como em tempos se emigrou para África, porque se quer ter uma vida melhor, porque há falta, uma falta tanto económica como mental. E este espectáculo tem o condão de nos fazer sentir isso. Ainda mais por ser levado à cena ali, perto da zona raiana, neste Alentejo com poucos negros mas muita emigração, onde a planície não é a estepe mas onde (e nisso este texto é muito eficaz) se consegue encontrar um certo paralelismo entre uma África portuguesa mental (espaço-tempo idílico de quem, como o pai destas duas irmãs, “retornou”) e um Alentejo do qual se fugiu, mas onde hoje em dia se está preso, como a irmã de vestido amarelo. Porque é de hoje em dia que este texto nos fala, não obstante a escolha estética (nos vestidos, nos cenários) que parece apontar para uma intemporalidade meio anacrónica, como se esta história se situasse algures num Portugal de hoje que ficou encravado em recordações e coisas por resolver (e não é por acaso que esta história só parece poder decidir-se quando finalmente o pai morrer e a irmã de vestido amarelo ficar “livre”).
Em Meias~Irmãs há, portanto, várias camadas da História de Portugal que se cruzam e que encurralam as duas irmãs num drama que é também o de um país europeu periférico, rural, pós-colonial - a um tempo só Próspero e Calibã, para usarmos a expressão de Boaventura de Sousa Santos. Um país periférico na Europa mas (em tempos) colonial em África. Infinitamente rural para quem dele emigrou vindo do campo e a esse campo regressa, como a família do drama de Milagre.
Nesta encenação, Gonçalo Amorim, contando com a minúcia e (o controlo de) energia de Carla Galvão e Cristina Alfaiate, optou por uma dramaturgia de toada eminentemente realista, à qual de vez em quando são inseridos laivos expressionistas/absurdos (a remeterem imediatamente para a teatralidade do momento: é teatro dramático o que estamos a ver. Não se esqueçam- divirtam-se!) o que distrai do possível excesso explicativo do texto enquanto “drama bem urdido”. De louvar o carácter hipnotizante da simetria quase geométrica da história e da encenação que, com os seus jogos de espacialidade, disposição e ritmo, se parece apoiar muito nisso. Meias~irmãs, como o seu nome indica, é um jogo de espelhos. Um jogo tanto mais interessante quanto o seu texto e a sua encenação brincam com o que nisso há de mágico e de desconcertante. O que se torna exponencialmente mais interessante ao acontecer ali, em Ponte de Sôr, no Teatro da Terra.