“aquilo que nos mata não é o sofrimento, mas a ausência de sentido no sofrimento”, disse o Miguel I Entrevista a Raquel Castro | Turma de 95
Raquel Castro conversa com Ana Bigotte Vieira sobre o espectáculo Turma de 1995.
Quando tiveste a ideia de fazer este espectáculo?
É mesmo difícil precisar porque eu sempre olhei para esta fotografia de turma, de 1995, com curiosidade. Lembro-me de pensar nas pessoas desde sempre, no que me lembrava delas e no que me chegava do que faziam agora. Sei que o Pedro Gil me falou do espectáculo da companhia inglesa Third Angel feito a partir de uma foto de turma e que depois disso visitei o site deles e li a sinopse, diria que isso aconteceu há uns 7 ou 8 anos. Achei a ideia fantástica e penso que ficou a germinar à espera do momento certo. E entretanto, esse momento chegou.
De que formas, em tua opinião, te apropriaste da peça Class of 76 dos Third Angel?
Agrada-me aqui a ideia de apropriação porque, de facto, não costumo pegar e encenar textos dramáticos previamente escritos, mas enquanto há uma forte tradição em fazer isso no teatro, o mesmo não se aplica a um outro tipo de teatro, que assenta mais em conceitos ou ideias.
Embora não tenha visto o Class of 76 (tive acesso ao guião e ao vídeo mas já depois de estar a fazer o trabalho), agradou-me imenso o processo de investigação, o ir procurar as pessoas da turma e a forma mágica que encontraram para mostrar a fotografia em cena. Todo o restante contexto é diferente - a turma dele é da pré-primária, são ingleses, nos anos 80 e a peça foi feita em 2000 - portanto, houve um processo de procurar as pessoas muito mais moroso e difícil porque não havia ainda redes sociais.
Posteriormente, na fase de escrita do guião, o Alex Kelly (encenador dos Third Angel) passou uma semana a trabalhar comigo n’ O Espaço do Tempo, o que foi incrível, por um lado porque ele é de facto um artista extraordinário e, por outro, porque ele domina a dramaturgia desta peça - ele experimentou uma série de coisas até chegar ao resultado final e, portanto, eu acabei por beber das suas experiências. Apesar das imensas diferenças de conteúdo, a minha peça acaba por ter uma estrutura semelhante ao Class of 76, na forma como esse conteúdo é articulado. Mas pode dizer-se que tudo o resto é diferente: outro país, outra faixa etária, feito duas décadas depois, sobre um colégio privado e católico.
Sim, este espectáculo, em comparação com o dos Third Angel, é muito mais sobre a adolescência. E tem um peso particular por isso. Sente-se que a adolescência é um momento muito complicado - aqui, passada num colégio católico e elitista na Lisboa dos Anos 90. Todos são ou foram, em algum momento, muito duros uns com os outros. Tudo e todos eram motivo de gozo, um gozo muitas vezes ligado a questões de aspecto, mas também de classe : Querias abordar explicitamente esse lado classista e essa crueldade dos adolescentes?
Não sei porque não tenho uma amostra de comparação...a adolescência é uma fase de enorme questionamento, de experiências, de construção de identidade. E com algumas pessoas, a pós-adolescência foi muito dolorosa, porque é suposto ser uma fase de concretização de uma série de coisas e às vezes isso não corre como esperamos. Mas talvez houvesse ali uma grande pressão para se ser bem sucedido. E a interrogação sobre os anos 90 faz-me também pensar nisso. Crescemos no boom dos centros comerciais e com uma perspectiva optimista e cheia de esperança no futuro - e essa perspectiva mudou muito nos últimos vinte anos. Mas acho que a adolescência, como experiência individual pode ser difícil, estejas onde estiveres. Mas a vida é complexa, e há uma complexidade de coisas, umas que controlamos e outras não. Para mim era importante abordar um lado classista porque faz parte da minha história, foi algo que marcou muito o meu sentido de pertença, neste caso de não pertença, fez-me sentir aparte, excluída. E eu queria pertencer aquele grupo, naquela idade não tinha maturidade (e acho que se calhar nenhum de nós tinha) para perceber os valores que pautam uma amizade saudável. Então na altura sofria muito porque eu e algumas pessoas de quem me queria aproximar não éramos parecidos socialmente…
Ao dar o nome a este documento “Entrevista Raquel Castro Turma de 95” lembrei-me que entrevistaste mesmo muita gente. Qual era o teu guião?
Eu tinha um guião mas tentei sempre estar disponível para cada encontro singular e para seguir o rumo que, de repente, a conversa proporcionasse dentro do grupo, há pessoas que falam de si de forma mais pragmática, outras mais reflexiva ou filosófica.
O meu guião tinha uma parte sobre o presente, em que as pessoas me falavam sobre a sua vida hoje em dia, muitas vezes partindo do que aconteceu depois de saírem dos Salesianos. As respostas incidiram sobre aspectos profissionais e familiares e sobre acontecimentos marcantes nesse percurso. A outra parte da entrevista incidia sobre o passado: a escola e a relação com a mesma, as memórias desse tempo, em que é que crescer naquela altura é diferente de crescer hoje, a adolescência de cada um, e em é que tudo isso contribuiu para a pessoa que são hoje.
E quis saber a relação deles com Deus, visto que todos acabámos por ter contacto com a religião católica no Colégio… e os sonhos, que sonhos têm. Acho interessante cruzar o tempo presente com o tempo passado e quem vir o espectáculo pode tirar as suas próprias ilações. A juventude espelha muitas possibilidades de futuro e um enorme potencial e isso acho que está muito presente na fotografia. Hoje estamos quase a chegar aos 40 e portanto, que balanço fazemos agora do que somos? E em que medida esse passado contribuiu para o que somos hoje? No geral, senti-me acolhida como uma velha amiga e foi extraordinário ouvir toda a gente. Depois, foi mesmo difícil seleccionar o material porque tenho duas horas de entrevista com quase todas as pessoas. De tudo, acho que foi o mais difícil. Houve também coisas que foram surgindo ao longo das entrevistas. Logo nas primeiras que fiz, várias pessoas contaram-me que tiveram uma depressão, a maior parte antes dos 25 anos. Isso tocou-me imenso, acho que não estava à espera. E portanto, comecei a incluir esse assunto nas conversas que fui tendo, fiquei com curiosidade sobre isso.
É incrível que ao olharmos hoje para uma escola deste género não conseguimos não ver uma totalidade composta por uma grande maioria de rapazes brancos de classe média alta, para uma minoria de raparigas brancas - e a total a ausência de meninos negros, chineses, indianos, paquistaneses, ciganos, etc… Ou seja, a escola é muito pouco diversa.
A questão dos rapazes tem a ver com o facto de a escola ter tido apenas alunos rapazes até aos anos 80, as raparigas foram admitidas progressivamente depois disso, mas esse diferença ainda se sentia muito. Em relação a outros aspectos, sim, era pouco diversa, o factor económico talvez seja a explicação.
Ainda a esse respeito: havia pessoas a morarem nos subúrbios? Gente com avós das aldeias?
Sim, havia. Desde alunos que viviam na zona circundante (Lapa, Estrela, Campo de Ourique), a alunos que viviam mais longe mas cujos pais trabalhavam na zona e lhes convinha que os filhos estudassem ali. Não sei com pormenor a origem da maioria das famílias mas penso que havia um pouco de tudo.
Há uma inquietação tua que atravessa a peça toda, consegues descrevê-la?
A minha inquietação é o que no fundo, me levou a fazer isto.
E portanto, o espectáculo cruza as histórias deles com a minha história e com a minha adolescência - que foi marcada por querer imenso pertencer a um grupo de uma classe social diferente da minha, aquilo a que comumente chamamos “betos”. Para além disso, sofria imenso por gozarem comigo porque eu era muito magra (e descobri no processo que também gozava muito com uma rapariga da minha turma, chamava-lhe “gorda”). Ao escrever isto, parece-me um bocado absurdo que estas questões tenham tido a importância que tiveram, são problemas de menina-de-classe-média, mas a verdade é que aquilo que fazemos a um terceiro pode ter um enorme impacto na cabeça de uma pessoa. Na adolescência isso é exponenciado por causa de todas as questões que são inerentes a essa fase da vida.
Em que é que escutar as pessoas, como fizeste, foi ao encontro dessa inquietação?
Ouvi outras versões daquele tempo, o que foi para cada um a passagem pela escola e pela adolescência. Pelas palavras do João, que entrevistei, “ a adolescência é uma selva, cada um se está a afirmar, seja de que maneira for”. Nesse sentido, essa forma de estar em que te afirmas pela desafirmação dos outros era comum a muitas pessoas e eu não era a única a sentir isso (aliás, eu própria também o fazia, pelo que vim a descobrir…). Percebi que talvez a minha sensação de não-pertença adviesse do facto de não ter um grupo de amigos forte e consolidado, que me fizesse sentir mais protegida e menos preocupada com as opiniões dos outros sobre o meu corpo e o meu apelido.
É quase um ajuste de contas com o passado, eu fui fazer o meu mas houve espaço para cada um fazer o seu, o que permitiu compreender as coisas numa escala maior.
De certa forma quando a tua colega Elisa que hoje em dia trabalha num Centro de Saúde fala em “descansar as pessoas, se possível sem lhes dar medicamentos” ou algo do género [se quiseres corrige a expressão] parece, em minha opinião, tocar num ponto central. Como se ao escutarmos pedaços de todas estas vidas comprovássemos que se as pessoas são bizarras, a vida ainda mais bizarra parece ser.
A Elisa falou-me muito de solidão, de uma solidão interior, onde as estruturas familiares são muito frágeis e leva as pessoas a sentirem-se muito desprotegidas, o que as faz recorrer a quem lhes dá atenção para se sentirem mais seguras - o médico de família, a farmacêutica… Mas aparte daquilo que nos acontece, e cito aqui o Miguel, que trabalha em cuidados paliativos e que me disse que “aquilo que nos mata não é o sofrimento, mas a ausência de sentido no sofrimento”, parece que caminhamos para uma vida cheia de solicitações e de informação mas estamos cada vez mais sozinhos. Mais uma vez, volto à questão da dificuldade que foi seleccionar o que me disseram, porque era necessário que os estilhaços que selecionei contassem uma história maior e revelassem essa bizarria que é a vida, que sim, muitas vezes pode ser cruel. E a forma como lhe damos a volta determina mais uma vez aquilo que somos. E o que somos, é resultado de uma complexidade de variáveis.
A dada altura apresentas uma espécie de estatísticas: X pessoas fazem isto, Y pessoas aquilo, etc.. o que mais te marcou nos “resultados” dessa análise mais estatística?
Acho que é interessante constatar que as estatísticas revelam um padrão: o facto de um terço da turma ter tirado um curso de economia ou gestão, de não haver nenhum desempregado (havia um, na altura da entrevista, mas entretanto já tem trabalho), a grande maioria vive em casal.Mas pronto, o aspecto mais revelador foi mesmo a questão da depressão ou outros problemas associados à saúde mental, cerca de um terço passou por isso antes dos 25 anos.
Voltando à adolescência e ao momento que visitas, de que forma houve aqui também uma tentativa de interrogar os Anos 1990, último momento de uma euforia progressista, (se é que se pode entendê-los assim)? Ou seja, parece haver na década de 1990 um optimismo e uma crença generalizada no progresso e no desenvolvimento que hoje são impossíveis de imaginar. Uma espécie de euforia da abundância, muito cruel, se pensarmos em termos sociais e ecológicos.
A interrogação sobre os anos 1990 era inevitável porque é esse o tempo em que crescemos. Crescer no boom dos centros comerciais e com uma perspectiva optimista e cheia de esperança no futuro é muito diferente de crescer num país com problemas económicos e num planeta constantemente ameaçado pelos problemas climáticos. Claro que a perspectiva de uma criança ou mesmo de um adolescente e a sua relação com o mundo não é a mesma de um adulto. Os adultos também teriam uma visão do mundo naquela altura que não era a mesma do que a nossa, mas ainda assim, ter um curso superior e trabalho era algo possivelmente alcançável naquela altura (e neste contexto). Em 32 pessoas da turma, só uma não foi para a faculdade… Voltando a este grupo em particular, acho que a maioria das pessoas “está bem”, a maior parte tem trabalho e gosta do que faz, foram muitas as pessoas que me disseram que sentem bastante realizadas. Mas, ora lá está, isto diz muito sobre o contexto em que estávamos - o acesso à educação, famílias mais estruturadas e até certos valores que nos tentavam transmitir (com tudo o que possa ser questionável na religião católica), acho que podem ter feito a diferença no que diz respeito ao futuro de alguém. Falo de uma forma geral, porque nem todas as pessoas se sentem assim, mas também seria estranho se assim fosse.
E entrevistaste-te a ti própria?
Sim, claro, mas fi-lo numa fase mais final, devia tê-lo feito mais cedo, porque acho que fui influenciada pelos outros.
O que te devolveram as tuas respostas? Algo que já não soubesses?
Acho que as respostas dos outros me deram mais respostas às minhas perguntas do que as minhas próprias respostas. Tive acesso a outras perspectivas sobre os mesmos acontecimentos… E isso naturalmente alterou a minha percepção de algumas coisas, nomeadamente da ideia que tinha de algumas dinâmicas que existiam no grupo.
Divertiste-te no processo? Reencontraste amigos ou reaproximaste-te de gente?
O processo foi maravilhoso, superou as minhas expectativas. Reencontrei amigos, sim e claro, houve uma reaproximação que mesmo que a ligação não se mantenha, já valeu pelo momento em que estivemos juntos.
Não te preocupa o que possam os teus colegas entrevistados achar do espectáculo?
Claro que me preocupa, os conteúdos dos espectáculos talvez fossem diferentes se eles não fossem ver. Alguns revelaram-me coisas muito delicadas ou íntimas que eu não podia expor, portanto tive que fazer as coisas com a maior sensibilidade que consegui - e posso falhar aos olhos de alguém… numa ou outra situação falei uma segunda vez com algumas pessoas para saber se podia abordar um assunto mais delicado. Houve até quem me ligasse a garantir que eu não falaria sobre determinado assunto. Mas estou a confiar na minha sensibilidade, não posso pedir autorização sobre tudo o que escolhi, porque enquanto autora interessa-me construir um objecto artístico.Apesar de o espectáculo assentar numa convenção de teatro documental, fui eu que filtrei e processei a informação que recebi, pelo que este espectáculo não é a verdade, quanto muito é a minha verdade…pelo que as pessoas têm toda a liberdade e salvaguarda de não se reverem naquilo que eu digo. Penso que construí um objecto que não os ferirá, mas só depois de eles o verem é que vou ter essa resposta.
Investigação/ escrita/ encenação e interpretação foram processos separados, com fases distintas ou foste avançando em simultâneo?
As coisas estão interligadas, mas durante vários meses fui fazendo as entrevistas e, durante as mesmas, intuía o que é que era especial ou importante naquilo que cada um me ia contando - e quando as editava fazia logo uma selecção do material.Em simultâneo tinha uma espécie de diário, onde ia escrevendo algumas coisas, ou sobre o processo de procurar a pessoa X, ou coisas que ia pensando ou sentindo. Tinha também uma lista de exercícios de devising, como por exemplo, pesquisa sobre aquela época ou temas que achasse importante incluir.Numa segunda fase, dediquei-me à escrita do guião. E depois comecei a fazer em cena.
Que tipo de coisas intuíste como importantes, consegues dar-nos um exemplo?
Tentei perceber o que é que o mais importante e fundamental sobre a história de cada pessoa e cruzá-lo com aquilo que era a memória do que eles eram na época. Por outro lado procurava dados que me dessem uma variedade de perspectivas sobre a vida, sobre a época e sobre a adolescência, tentando não repetir histórias e incluindo o máximo possível de elementos que fossem links para variados temas que acrescentassem qualquer coisa à dramaturgia.
É curioso que os momentos de consolo ou de reconciliação parecem quase todos vir da reflexão das pessoas - e correspondem a hoje ou ao olhar retrospectivo das pessoas hoje sobre ontem. Como se a adolescência fosse uma selva em que todos estavam de algum modo desconfortáveis e gozassem com os outros para atenuar o seu próprio desconforto. Apareceram nas entrevistas algumas boas memórias daquilo tudo? Memórias de comunidade, no sentido positivo do termo?
Apareceram imensas memórias boas e felizes. O colégio tinha infra-estruturas fantásticas, imenso espaço, ginásio, piscina, um enorme recreio. A maioria das pessoas sentia-se protegida naquele espaço. Há pessoas para quem o lado católico era transmissor de valores humanistas, que os influenciaram muito.Mas diria que a grande comunidade era mesmo o campo de futebol, que era do tamanho real de um campo de estádio. Aí não havia diferença de classes, todos eram iguais. E isso é um facto que imensas pessoas referem, mais os rapazes, claro. Para muitos deles, a escola era esse momento, o de jogar à bola.
E quem não gostasse de jogar à bola?
Quem não gostasse de jogar à bola, podia jogar basquete ou ficava nas bancadas a conversar.
Mas o investimento no desporto era enorme por parte da escola e havia muito espaço e condições para o praticar. Nos intervalos podias alugar uma bola com o teu cartão de estudante. Havia também uma sala de música com muitos instrumentos e facilmente se podia ter aulas de música, e na altura, a música era muito importante para algumas pessoas, não só o tocar mas o ouvir, nesta época a cena musical era muito intensa e cheia de novidades: o grunge, o punk… E havia algumas bandas, na minha turma havia um grupo que tinha uma chamada “cocktail marado”.
Tu repetes muitas vezes essa questão do “parecidos socialmente” ou algo assim. Como se os “betos” (ou lá o que seja) fossem uma classe à parte ou, como uma vez disse um amigo meu, de origens extremamente humildes, numa expressão que me impressionou muito “não fossem gente como nós”. Não achas que ao ainda hoje colocares a questão assim ajudas a construir essas divisões? Não seria mais interessante de algum modo aponta-las, mas para as desmanchar, no seu absurdo, como, de resto, este teu espectáculo acaba por de algum modo fazer?
Acho que a questão aqui não é tanto os “betos” serem pessoas más ou classistas, até porque isso é uma generalização e põe tudo no mesmo “saco”, digamos assim. Para mim o mais importante é o sentimento de não pertença que eu vivenciei ao longo da adolescência e acho que parte disso se deve ao facto de eu ser diferente socialmente do grupo onde estava. Podia ser o oposto, eu podia sentir-me igualmente excluída se estivesse num grupo de punks…Portanto aqui interessa-me a especificidade da minha história para falar de exclusão ou de falta de um lugar. De qualquer forma, se há 25 anos atrás um colégio como os Salesianos era acessível a pessoas de classe média e na minha turma havia muitas pessoas cujos pais faziam um esforço para lá ter os filhos, hoje em dia, só alguém com rendimentos altos consegue pagar €500 ou €600 para ter um filho num colégio, portanto existe uma divisão económica e de classes sociais, se calhar até maior do que antigamente. Mas, enfim, penso que, apesar de levar a sério esta questão do “estar aparte”, lanço um olhar irónico sobre o assunto.
Como será hoje viver a adolescência?
Acho que nas suas questões básicas e essenciais não será muito diferente. Foi um assunto falado nas entrevistas e a resposta mais comum tinha a ver com a questão da tecnologia e do excesso de informação e de estímulos a que as crianças e adolescentes estão expostos. Uma pessoa disse-me que o mundo digital veio provocar uma brecha que ainda estamos a tentar entender. Outra que antigamente o corpo era a tua ferramenta para experienciar a vida e que hoje há sempre um telemóvel e um computador como mediador dessa experiência.Para mim, tentar compreender a minha adolescência foi também um passo para me preparar para a adolescência das minhas filhas. Acho a adolescência uma fase mesmo difícil e espero estar atenta e conseguir ler nas entrelinhas o que se vai passar com elas. E tentar dar-lhes referências e coisas a que se possam agarrar - ao desporto, à música que acho que são actividades muito construtivas e que te obrigam a sair do computador e do telemóvel. Penso que essa será a maior diferença.
Punhas as tuas filhas numa escola daquele género?
Não punha de certeza num colégio católico porque nem eu nem o pai somos católicos.
Em casa, queremos acreditar que a Escola Pública pode e deve proporcionar um ensino de qualidade e que como cidadãos devemos exigir isso. Mas não podemos deixar de reconhecer que há falhas graves no sistema educativo em Portugal. Acho que a Escola Pública tem uma série de problemas - excesso de alunos, falta de professores, falta de funcionários… em suma, acho que na Escola Pública os alunos são menos acompanhados do que numa escola privada, estão num regime cada-um-por-si.
Não estarás a generalizar? Todas as escolas públicas têm excesso de alunos, mas há algumas bastante boas, ou achas que não?
Claro que há, mas quantas são e quem é que consegue ter acesso às mesmas? A sensação que tenho é que é uma mera questão de sorte, no grupo de alunos, nos professores que apanhas. Acho mesmo que a Escola Pública está em enorme crise, para além do que já sabemos em relação aos métodos utilizados, que são os mesmos do nosso tempo, há uma enorme falta de funcionários, professores em concursos anos a fio, imensas situações de professores não colocados, e claro, pais sem tempo para acompanhar os filhos nesse percurso e para fazerem parte da comunidade escolar. A escola é responsabilidade de todos. Há escolas excelentes e essas deveriam ser a nossa referência para melhorar todas as outras.
Sinopse “Turma de 1995”
A fotografia foi tirada no átrio do Colégio Salesiano de Lisboa em 1995, o ano em que saiu o álbum Mellon Collie and the Infinite Sadness, dos Smashing Pumpkins, aquela que viria a ser a banda preferida do Miguel N.. Estávamos no 9º ano, o João C. e a Filipa N. estavam apaixonados, o Pedro C.C. sonhava em vir a ser jogador de futebol e o Rui A. foi à televisão imitar o Mickael Jackson. Quase todos tinham uma alcunha: a Testa Rossa, a Cavalona, o Splinter, a Beaver, o Chinês, o Dumbo. Eu, a sétima a contar da esquerda, na fila de trás, era a Olívia Palito.
Em 2019 - 24 anos depois - procurei cada um dos meus colegas de turma para conversar sobre aquele tempo e sobre o rumo que a vida levou depois de tirada esta fotografia.
Raquel Castro apropria-se de um espetáculo como quem se apropria de um clássico do repertório e parte de Class of 76 (da companhia inglesa Third Angel) para descobrir a sua Turma de 95.
Ficha artística
a partir do espectáculo Class of 76, de Third Angel
Criação e interpretação: Raquel Castro
Apoio à dramaturgia: Alexander Kelly
Direção de Produção: Vítor Alves Brotas - Agência 25
Desenho de luz: Daniel Worm
Apoio técnico: João Gambino
Co-Produção: Barba Azul / Teatro do Bairro Alto / Espaço do Tempo / Centro de Artes de Ovar / Teatro das Figuras
Apoio: Fundação GDA
Entrevista realizada para a folha de sala do espectáculo no TBA.