Estrangeiro é a tua avó! - entrevista sobre teatro no Conselho Português de Refugiados a Miguel Castro Caldas

Entrevista a Miguel Castro Caldas sobre o trabalho que no último ano ele e o Bruno Bravo têm vindo a desenvolver com refugiados do Conselho Português de Refugiados.

Como é que tiveram a ideia de fazer um projecto com o CPR? E porquê?

Eu já conhecia o grupo de teatro amador do CPR (Conselho Português para os Refugiados), o Refugiacto, sabia que era composto por refugiados de várias partes do mundo que estavam no CPRT a aprender português. Já conhecia a Isabel Galvão, a professora deles de português que começou com eles o grupo. Atraiu-me a ideia de escrever um texto para onze actores que falam português todos de maneiras diferentes.

Qual era a vossa proposta inicial? O que é o CPR?

A nossa proposta inicial era ainda um pouco vaga. Tinha este pressuposto de trabalhar com pessoas cujas experiências de vida provinham de coisas tão diferentes, mas o que as unia era a língua e o exílio. O CPR é uma ONG que promove uma política de asilo mais humana e liberal, a nível nacional e internacional, estou a citar as palavras que eles usam para se apresentarem.

Quem são estes refugiados (situação legal, histórias de vida, quotidianos…)?

São pessoas que precisam de abandonar o país de origem por razões políticas, por causa de uma guerra, ou de uma ditadura, perseguição, etc. Ao contrário do imigrante, não podem voltar para casa, por isso é terrível quando não conseguem uma situação legal.

Como é o grupo e como está a ser o processo, a nível de ensaios, etc.? Eu assisti ao pequeno exercício que apresentaram nas Comemorações do 25 de Abril no Largo do Carmo. Como foi que chegaram aí?

O grupo já tinha esse evento agendado. Como estávamos nesse momento a começar a trabalhar com eles, pediram-nos ajuda para prepararmos uma intervenção curta. Não fazia parte do projecto inicial. Foi um pequeno desvio, que também serviu para nos conhecermos melhor como grupo. Para este evento no 25 de Abril para o qual já tinham sido convidados, decidiram em reunião que queriam abordar o tema da liberdade. A intervenção ia ser no Largo do Carmo. Daí que tive a ideia de escrever um pequeno texto que leva em conta o facto de estarmos “no sítio” do 25 de Abril.

Reparei que havia muitos refugiados que pareciam ser do leste da Europa. Acham que é possivel dizer que há especificidades culturais e comportamentais nos tipos de grupos de imigrantes (ex. os “brasileiros”, os “chineses”)?

Não posso falar como especialista. Mas o que me parece é que, por um lado, estão todos formatados na realidade de serem “imigrantes”, “exilados” e de falarem português mas, ao mesmo tempo, essas especificidades existem e têm de forçosamente se manifestar. Se bem que, por exemplo, os muçulmanos pareçam evitar falar muito do Corão e das mulheres.

Como entendeu o grupo do CPR as referências ao 25 de Abril e ao Largo do Carmo? Como lhes contaram a história do 25 de Abril até que eles percebessem a ironia das frases “é aqui?” ou “podemos entrar?”

Foi engraçado porque, a partir de certa altura, houve quase uma revolta, porque alguns membros do grupo não concordavam com a nossa visão pessimista do desgaste dos conceitos associados ao 25 de Abril e à liberdade. Para eles Portugal, e no fundo as democracias liberais, são o cúmulo da liberdade. Conversámos e reflectimos sobre o texto, e chegámos à conclusão que a visão pessimista não estava propriamente dita no texto. O texto fazia perguntas. O que é o 25 de Abril hoje? O que significa dizer “25 de Abril sempre” (na peça “25 de Abril sempre” é uma possível senha de entrada, que não funciona).

Lembro-me que o espectáculo começava com os refugiados a dizerem “estrangeiro é a tua avó” e que um amigo meu, português - nascido em Lisboa, me disse: “pois era, a minha avó era estrangeira, a minha e a de muita gente.”

Como chegaram a essa frase?

Primeiro havia alguém que chamava estrangeiro a alguém e depois o outro respondia “estrangeiro é a tua avó!” É evidente que a frase ficou muito mais forte depois de cortarmos a primeira.

Há alguma história sobre este processo que queiram contar?

Uma vez um deles, albanês, contava que era proibido ler a bíblia durante o regime comunista na Albânia. Depois, quando o regime caiu, ele disse que foi ler a Bíblia e o Corão. E concluiu que eram muito parecidos. Mas o problema foi quando ele disse que não havia nenhum sítio no Corão em que se dizia que não se podia comer porco. Estávamos a lanchar, havia sandes de fiambre e de queijo, para os que podiam e não podiam. Outro membro do grupo, palestiniano, disse-lhe que era melhor ele ficar calado porque não sabia nada. Disse que sabia o corão de cor e que garantia que estava lá escrito “não comerás porco”, e depois, outro que também era muçulmano começou a ficar com uma expressão ofendida. Ou seja, de repente aquela conversa ligeira de lanche estava a começar a ganhar uma tenção complicada.

Estás a sentir que de algum modo este projecto de teatro está (ou pode) contribuir:

a)Para estes refugiados serem mais felizes (ou se divertirem)?

Não sei.

b)Para dizer qualquer coisa sobre os temas levantados pela situação dos Refugiados?

Não directamente. O facto do projecto ser feito com refugiados já é falar sobre essa questão. A nossa ideia é pegar nas histórias que lhes foram contadas quando eram crianças e pô-los a discutir sobre as diferentes versões das histórias, que se calhar são mais ou menos as mesmas. Construir um texto cheio de sotaques, e cheio de discussões sobre os caminhos que o capuchinho vermelho tomou.

 O tema da imigração para o 1º mundo promete ser uma das grandes questões do séc. XXI, onde se podem encontrar as grandes contradições e desigualdades em que o mundo assenta. Como sentem vocês esta questão?

No séc. XIX essas desigualdades viam-se nas relações laborais entre operários e industriais. Hoje vê-se na exploração da pobreza dos países do 3º mundo. Como sempre, quando a situação começa a tornar-se insuportável, as pessoas procuram escapar. Agora assistimos a migrações de gente que procura melhores condições de vida, mas não tardará muito que percebam que têm todo o direito a vir e a ter os mesmos direitos dos que cá estão. Porque, no fundo, os canos que nos trazem a água foram conseguidos graças aos saques que lhes fizemos e continuamos a fazer. As revoluções do séc. XX, se formos a ver, deram-se um pouco pelo mundo ocidental todo, mas dentro de cada país. Penso que a novidade agora serão revoluções transnacionais.

Lembro-me de que ainda há pouco tempo (no prefácio do PANOS 2007) levantaste a questão do facto do nacionalismo e da xenofobia parecerem estar na moda. O Sloterdijk diz “as sociedades estão permanentemente a jogar jogos eliminatórios, jogos de pertença e não pertença”. Achas que pode ter alguma coisa a ver com isto?

Pois é. Para inventarmos os que estão dentro tem de haver os de fora. No fundo o que é um país? Deste lado do rio estamos nós, do outro lado estão os outros. No outro dia estive uma tarde na lista dos excluídos para assistir a um concerto da Laurie Anderson e depois no fim fui aceite. Entrei de repente no público da Laurie Anderson, cujo concerto apelava ao inconformismo, atacava a sociedade americana e a invasão ao Iraque. O seu discurso era dirigido a este público, conformado com o inconformismo. Estávamos todos de acordo uns com os outros e com ela. Não nos doeu nada. Às vezes acho que me assustam mais os incluídos.

 A quem achas que pode chegar a vossa peça com o CPR? No que toca a recepção, quando escreves para quem escreves – para quem já sabe e concorda contigo ou para quem discorda em absoluto?

Penso que aqui a questão não é bem escrever para quem concorda ou para quem discorda. Acho que tem mais a ver de onde se parte. Há quem tenha o olhar frio e analítico de quem está a olhar para a coisa de fora. Quem olhe primeiro para a situação e só depois entre lá dentro para fazer o que acha que é preciso fazer depois de ter estudado o assunto. Eu acho que estou cá dentro e não consigo ter uma visão de grande distância. Estou embrenhado no que me rodeia. Por isso o que escrevo é uma espécie de tentativa de nadar, de conseguir, no mínimo, manter a cabeça à tona. Mas quero poder ser mal educado, pregar rasteiras. Como quem dá um encontrão no ombro do outro, mas não se percebe se é um encontrão amigável ou mal intencionado. Acho que estou nesse limbo.

 

Citada em Giorgio Agamben, Homo Sacer – o poder soberano e a vida nua, ed. Presença, pp. 122/123.

H. Arendt defende a tese de que chamando-se a Declaração dos Direitos do Homem originalmente Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, quem não é cidadão - isto é, quem não estiver vinculado a determinado Estado-Nação,  ausenta-se assim de ser homem.

 

Entrevista originalmente publicada na revista Jogos sem Fronteiras 2008.

por Ana Bigotte Vieira e Miguel Castro Caldas
Jogos Sem Fronteiras | 23 Janeiro 2012 | conselho português para os refugiados, refugiacto, teatro