Ela desnomeia

I’ve seen the lions turn to cubs / And I’ve seen the hunters turn to prey / The lessons will come again tomorrow / If they’re not learned today

Kae Tempest, Lessons


O que é uma pessoa? É uma pergunta dos limiares, como se apenas pudesse ser feita na passagem, entre um fim e um princípio, no momento em que a lista de virtudes da existência humana se exaurisse, secasse, e víssemos, enfim, que aquilo que pensávamos ser propriamente humano é, afinal, partilhado com outros seres. Na tendência para se afastar de diferenciações puristas regidas por propriedades exclusivas, a ciência não só não oferece essa garantia, como tem contribuído para estilhaçar a lógica da unidade, da restrição, daquilo que é, em suma, singular.

Num ensaio de 1985, intitulado She Unnames Them [Ela desnomeia-os]1, Ursula K. Le Guin imagina uma contra-história2 do início da humanidade através da história de Adão e Eva. Todos conhecemos essa história. Ela é-nos contada como uma metáfora para a vida na Terra, onde o esforço se substituiu à abundância do Paraíso, o sofrimento às delícias e a morte à eternidade, uma vez que, por culpa de Eva — a palavra culpa é indeclinável no Antigo Testamento —, fomos banidos da morada divina. No livro do Génesis, logo depois de ter criado o jardim do Éden e dado instruções a Adão para não comer os frutos da árvore do conhecimento do bem e do mal, Deus mostra a Adão «todas as feras e todas as aves do céu» com o intuito de encontrar para ele uma companhia, para que não ficasse sozinho. Até aqui, no relato da Bíblia, era apenas Deus que tinha o poder de nomear. É através da palavra, do nome, que toda a Criação nasce, incluindo Adão e Eva. Todavia, neste momento, Deus decide que todas as criaturas se conhecerão através do nome que Adão, feito à Sua imagem e semelhança, tiver escolhido para elas e, à medida que vai conhecendo os animais, Adão atribui-lhes um nome. Por isso, quando, logo a seguir, Eva é criada, também recebe o nome que Adão lhe dá. Ora, em She Unnames Them, Eva remove a todas as criaturas, como a si mesma3, os nomes que Adão lhes havia atribuído. Uma vez anulada a barreira dos nomes, Eva descobre que ela e as criaturas estão agora mais próximas, tão próximas que o medo e a atração entre elas se tornam um só: «the hunter could not be told from the hunted, nor the eater from the food.» Ao remover os nomes, ou concedendo a si própria o poder de remover os nomes, Eva rejeita a desigualdade das relações de poder entre ela, os animais e Adão e, recusando a propriedade, descobre-se em unidade com a natureza. Depois, abandona o Paraíso. Ao despedir-se de Adão, porém — sem que este perceba, de resto, que ela se despede —, percebe que a linguagem tal como a conhecia a abandonou. Já não pode usá-la para «tagarelar» e deixou de ver tudo como «garantido». Abdicando da autoridade, as suas palavras tornam-se «lentas, novas, hesitantes». Que lugar é este que Eva ocupa?

Albrecht Dürer, Braço de Eva, 1507Albrecht Dürer, Braço de Eva, 1507

 

Um lugar natural

She Unnames Them questiona não só o papel da mulher no seio das sociedades de cariz patriarcal, como também o impacto das ações dos seres humanos no mundo natural e as suas pretensões utilitaristas. Em causa, está o poder da linguagem. Eva desnomeia-se a si própria — de resto, no conto, nunca chega a usar o nome —, mas o ato de desnomear os animais é também um símbolo da eliminação dos papéis e das expetativas que uma visão antropocêntrica da natureza lhes impõe. Le Guin quer desafiar as convenções patriarcais na atribuição de nomes — e, de forma mais lata, a articulação do sistema que tem sido tradicionalmente usado para subjugar as mulheres —, bem como as dinâmicas de poder entre o homem e a natureza, e instigar a uma relação que tenha por base a equidade e o cuidado. Deus dá a Adão o poder de nomear. Eva, porém, não reclama para si o poder da linguagem. Não só não quer nomear, como, libertando os animais do nome que Adão lhes deu, lhe nega o poder de nomear. A hierarquia masculina acaba porque ela não quer o poder da linguagem que não lhe foi dado. Ao poder, Eva opõe a anarquia, à evidência a hesitação, à unicidade o coletivo, e à autoridade a semelhança. Nesse gesto, uma nova, inesperada, disposição para o mundo torna-se subitamente acessível, em que a ação procede a escuta e a sobreposição das partes se revela burlesca. A Eva de Le Guin não é feita à medida de Adão. Não reclama para si o lugar que ele obteve e o poder que detém. Ao contrário, recusa esse poder, e o que encontra, como numa aventura subitamente se encontra acesso a um segredo, é um lugar de des-poder, de ingenuidade, abandono, despretensão. A ineficácia contra a perversão da eficácia. Um lugar natural. 

A natureza humana não é um conto de fadas

Ursula Le Guin procurou no taoísmo, em particular no yin, o princípio feminino associado à água, a afirmação de uma força feminina que ignora as hierarquias autoritárias. Em 1962, quando o governo dos EUA, nesse momento liderado por John F. Kennedy, havia retomado os testes de armas nucleares no deserto do Nevada, os habitantes de Portland, no estado vizinho de Oregan, onde Le Guin vivia com o marido e três filhos pequenos, temiam a contaminação radioativa. Apesar de, à época, estar relutante sobre a sua intervenção ativista, que receava poder afastá-la da escrita ou torná-la didática, juntou-se ao Portland Women for Peace, um grupo de «donas de casa heteróclito, mas bem-intencionado», para o primeiro de uma série de protestos na cidade. De fato e saltos altos, Le Guin vê um jornalista de extrema-direita fotografar o grupo e enfrenta-o com um pronunciado e sedutor piscar de olhos.

A crescente polarização em plena guerra, dando lugar à presidência de Richard Nixon em 1969, causava-lhe frustração, tristeza e desespero. Ursula interroga-se sobre os perigos do compromisso moral em nome do interesse e, em 1973, publica o conto The Ones Who Walk Away from Omelas. O mundo de Omelas é perfeito e encantador «como um conto de fadas», e torna-se autêntico através de uma única crueldade, necessária à sua preservação: a serenidade e esplendor da cidade requerem que uma criança seja mantida em perpétua sujidade, escuridão e miséria. Depois de trabalhar nas campanhas de Eugene McCarthy e de McGovern, Le Guin decide retirar-se da ação política para imaginar alternativas na sua escrita de ficção e, as suas leituras sobre desobediência civil e resistência não violenta, levam-na a conceber uma sociedade sem propriedade privada e sem Estado: The Dispossessed é publicado em 1974. Le Guin não estava convencida de que uma ausência radical de hierarquias fosse compatível com a natureza humana. Urras é um planeta controlado pelo Estado, hierárquico, patriarcal, desigual, individualista. Contudo, é exuberante, rico e belo. Um século e meio antes do início do romance, um grupo de revolucionários idealistas de Urras exilou-se e estabeleceu-se em Anarres, um planeta satélite, árido e ecologicamente pobre, que se torna o cenário de uma experiência social baseada em princípios de entreajuda, um sistema anarquista, feminista, onde a igualdade social e o coletivo se assumem protagonistas. Entre ambos, uma pura desconfiança, que Shevek, o «cientista galaticamente famoso», procura dissolver. Em Anarres não há políticos, nem patrões, nem salários, nem polícia. A única lei é o princípio da ajuda mútua. Não é também uma utopia. O seu propósito não está no futuro, no que se poderá alcançar um dia, mas no processo ele mesmo, e a sua ação política é apoiada na pluralidade. Por isso, Anarres é um planeta sem propriedade privada onde não há pronomes possessivos. 

 

Que lugar é este?

A linguagem tem uma dimensão política inalienável, sendo responsável por criar e perpetuar relações de poder onde se inscrevem lógicas de violência. No tanque rizomático da língua, cada palavra tem uma raiz historicamente pontuada que define a sua identidade e nos esclarece sobre o lugar que cada um de nós ocupa na linhagem da existência humana. Quem pode dominar e quem deve submeter-se, o normal e o desvio, a voz que ordena e a voz que não diz nada. Ainda que a linguagem nos seja apresentada como um sistema orgânico, um todo que o homem domina, intimamente ligado à sociedade e acessível ao conhecimento científico, as leis do seu funcionamento têm vindo a ser desconstruídas e desmitificadas. Protocolos da representação sustentados pela linguagem, e até aqui tidos como evidências, são desmontados à medida, sobretudo, que a maioria global de pessoas racializadas, as mulheres e os membros da comunidade LGBTQIA+ expõem os lugares a que tradicionalmente foram circunscritas e a violência dos modos desse condicionamento. Ora, são as relações sociais que determinam e regulam as condições de uso da linguagem. A relação que destrói, controla, acrescenta ou diminui um corpo, é exercida através da linguagem4. É nessa mesma medida que nem sempre a linguagem serve como via de emancipação.  

Quem através de mim fala quando falo? Em geral, as utopias escritas por mulheres são muito diferentes daquelas escritas por homens. Enquanto estes tendem a descrever sociedades altamente hierarquizadas, cheias de leis, estatutos e regulamentos, onde o herói pertence normalmente à categoria a que pertence o escritor, as utopias femininas procuram construções de sociedades mais anárquicas e mais horizontais. Muitas vezes, estão preocupadas em ultrapassar a solidão. As suas sociedades não têm classes, almejam ter o suficiente, nem pobreza nem riqueza. A segurança é considerada fundamental: uma mulher tem de poder atravessar o mundo nua com uma esmeralda ao pescoço sem ser acossada. O tema do sexo está sempre presente. Às vezes trata de afetos, outras vezes é promíscuo, mas ultrapassa sempre as fronteiras do que a nossa sociedade considera ser uma atividade heterossexual adequada. A monogamia nunca é um princípio. Há algo de trágico nas utopias, em todas as utopias: são o espaço da falta. Tratam do que não temos. Falando em partilhar todas as coisas que têm de ser feitas em sociedade (cuidar dos velhos e das crianças, dos mortos, dos doentes, etc.), as mulheres estão na realidade a revelar um regime de clausura e a declarar que esses trabalhos devem ser considerados tão prestigiantes como o trabalho numa multinacional de sucesso. É sempre um jogo com a autoridade. Conforme se baseie em formas de repressão ou libertação, de inclusão ou de censura, a linguagem serve para nos aproximarmos ou afastarmos, para nos vermos ou para nos estranharmos. Responsabilidade perante a memória, fazer comunidade e cuidar são, nesse aspeto, formas de resistir em que a linguagem se mostra particularmente desafiadora daquilo que achamos garantido. O que são os valores femininos? Que lugar é este? Ocupamos um espaço de sentido fragmentado. 

 

A língua molda a experiência 

“The National Gallery of Canada, in Ottawa, houses a sinister painting by German Renaissance artist Hans Baldung Grien (1484-1545), Albrecht Dürer’s most celebrated student. The 64cm x 325cm oil on panel, known as Eve, the Serpent and Death, depicts those three figures against an ominous shadowy background. Eve has been made the primary focal point since, unlike the other two darker figures, her body is flooded in light and fully exhibited. Contrary to the usual employment of luminosity to suggest sanctity in religious art, here light is used to emphasize Eve’s brazen sexuality. Her facial expressions are lustful, her genitals are not covered by the customary vegetation, her left hand is holding the serpent’s tail, while the fatidic fruit is half-hidden in the right one, suggesting that she is conscious of the transgressive nature of her actions. Adam is characterized as Death itself. His body is in an advanced state of disintegration, his rotten left hand is reaching for Eve at the same time that it is being bitten by what A. Kent Hieatt (1983) has described as a weasel-faced serpent. This perverse cat’s cradle game has puzzled critics for centuries and, for Hieatt (1983, p. 299), Eve can be seen here “exercising a sexual temptation upon Adam […]. With devious slyness, she extends her hand towards the serpent’s tail, representing both Adam’s sexual member and Satan.”5

Martin Heidegger defende que a linguagem e o ser estão interligados: não podemos separar a nossa experiência do mundo da língua que usamos para o habitar, e, por isso, a língua que usamos molda a realidade que podemos experienciar. A linguagem — a linguagem que utilizamos enquanto seres falantes, bem como aquela que nos ocupa intimamente — molda o trajeto da vida humana, como molda o destino da humanidade. É nessa medida que a narrativa bíblica, e em especial o Livro do Génesis, é um dos textos mais influentes na história das mulheres no Ocidente. Ao ditar que a ação da primeira mulher foi a responsável pela Queda do Paraíso, o Génesis condicionou a perspetiva das mulheres na história, e produz até hoje visões pejorativas e misóginas do papel da mulher na sociedade e do seu lugar na humanidade. Esta condenação do feminino estende-se por vários séculos, servindo como justificativa para queimar bruxas e para caracterizar as mulheres como uma raça de pecadoras que atraem os infortúnios que inadvertidamente as atingem, mesmo que os infortúnios reiteradamente cheguem por via de homens. Se a linguagem usada para descrever as mulheres procede sempre da perspetiva masculina, o entendimento daquilo que as mulheres são e fazem será sempre distorcido para projetar o que os homens pensam. É esta visão que o movimento feminista começa por questionar e, desde pelo menos a Idade Média, muitas obras exploram este problema. Em 1405, Christine de Pizan publica A Cidade das Senhoras na senda da “querelle des femmes […] um debate literário sobre as relações de e entre os sexos, bem como sobre o valor da mulher e do feminino, que se manifestou publicamente em reuniões e em múltiplos escritos na Europa medieval.”6 Em A Vindication of the Rights of Women, obra publicada em 1792, Mary Wollstonecraft, afirma que as visões bíblicas sobre a Criação e a Queda serviam como garante da autoridade dos homens sobre as mulheres. A análise feminista consistente do viés masculino na leitura dos textos religiosos, bem como das leituras enviesadas a que esses textos foram submetidos ao longo de séculos, viria a revolucionar a forma como vemos o mundo. Wollstonecraft afirma que, à época, a típica descrição dos homens das mulheres como não racionais e excessivamente emocionais, condiciona a sua afirmação social, servindo como obstrução no acesso ao sistema educativo. Virginia Woolf volta a abordar a questão em Um quarto que seja seu, onde mostra como o discurso público sobre as mulheres é moldado pelo sentimento de superioridade dos homens em relação às mulheres. Uma vez que a identidade social está ligada à linguagem, o poder destrutivo do monopólio da linguagem é, ainda hoje, catastrófico no modo como as pessoas racializadas têm sido definidas pelas pessoas brancas. Por outro lado, como Michel Foucault mostra, o poder circula através da linguagem e do conhecimento e, quem controla o conhecimento e a linguagem, exerce o poder na ordem social7. É por isso que, qualquer grupo que tenha intenções de dominar sobre outro grupo, começa por restringir o acesso à educação, e é também por este motivo que há investigadores preocupados com a erosão de identidades culturais que a expansão do inglês pode provocar. O perigo de hegemonia cognitiva, o perigo de uma história única, é real: o inglês é a língua mais utilizada na história da humanidade (estima-se que cerca de uma em cada cinco pessoas falem a língua). Tal como o português e outras línguas coloniais, começou por se disseminar através das invasões, conversões e comércio, e, hoje, a sua difusão é impulsionada pelas oportunidades criadas pelo mercado de trabalho, bem como, no horizonte social, pela ampliação das possibilidades de comunicação que oferece. As crianças aprendem inglês no ensino primário, ativistas políticos, jornalistas, escritores, publicam nas redes sociais em inglês. Já em 2001, o sociólogo francês Pierre Bourdieu fazia a seguinte afirmação: “L’impérialisme peut donc imposer des objets de pensée. Et il faut réfléchir sur ce modèle pour voir si et comment il est possible d’accepter l’usage de l’anglais sans s’exposer à être anglicisé dans ses structures mentales, sans avoir le cerveau lavé par les routines linguistiques.”8

 

Desgarantir o mundo

Quando Le Guin decide reescrever o texto bíblico, não está apenas a desafiar o status quo das mulheres. O ato de desnomear, não é aqui um mero recurso linguístico nem apenas um instrumento de revolta: ela não explica nada. Os contos de Le Guin parecem procurar a resposta a algumas das perguntas que muitos de nós nos colocamos atualmente. “I’m looking for a place to stand, or a way to go, where the behavior of those I oppose will not control my behavior.”9 De que forma a ação não reproduz uma reação? “Refusing to engage an aggressor on his own terms”, seria a sua resposta. “Defending a cause without fighting, without attacking, without aggression”, escreveu, “is an action. It is an expression of power. It takes control.” A história convida-nos a considerar até que ponto as palavras têm poder, não só sobre as coisas que nomeiam, mas também sobre a nossa perceção delas — não podemos esquecer que a linguagem de que Eva e os animais se libertam, influencia não só a perceção que ela tinha deles, mas também a perceção que cada um tinha de si próprio. É por isso que, no final, as fronteiras que separavam os seres vivos, fronteiras moldadas e criadas pela linguagem, são eliminadas. A ação de Eva gera uma afinidade entre ela e os animais que habitam o Éden, mostrando que a linguagem tem o poder de nos afastar ou aproximar da natureza e de nos lembrar que somos parte integrante dela, que não existimos separadamente. Ao imaginar um outro destino para Eva, libertando-a de uma relação baseada nas hierarquias de espécie e de género impostas por Deus no Paraíso, que a aprisionavam numa relação desigual, o tema crucial de She Unnames Them revela-se todavia mais vasto e sugere a interligação de três esferas: o feminismo, o pós-colonialismo e o ambientalismo. É esta ligação que pode ser redescoberta através de um recuo. O que seria rejeitar as normas inscritas através da linguagem? Que experiências estaríamos a viabilizar se inventássemos novas formas de falar, de nomear, de pensar? Que palavras usamos na nossa vida, que palavras ouvimos? E o que dizemos a nós próprios? De que forma a nossa experiência muda quando as mulheres e as comunidades marginalizadas assumem o poder de nomear e de desnomear? A definição não é alheia à vontade de substituir o sistema dominante, socialmente estabelecido. A indefinição, contudo, corresponde a outra estratégia, uma que exige que nos mantenhamos abertos ao mundo e aos outros. Nada, nem mesmo a linguagem, está garantido. Afinal, “desnomear” nem sequer é uma palavra. Eva tem estado sempre a imaginar um mundo diferente daquele que conhecemos. 

por Marta Rema
Corpo | 1 Abril 2025 | comunidade, feminismo, linguagem, mito, poder, Ursula K. Le Guin, utopia