'Partituras para ir', de Joana Braga
Und ich wand’re sonder Massen. [E eu caminho sem medida]. Franz Schubert, Die Winterreise
Encontra-se na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, um quadro de 1833 de William Turner, intitulado Quillebeuf, Mouth of the Seine. Feito com tons pastel e ostentando uma luz intensa que, à exceção da base, preenche todo o quadro. Tanto a igreja como as árvores têm a mesma cor do céu. É como se víssemos uma imagem do que outrora foi e se desfez. Com toda a sua luz e aparente tranquilidade — transmitida unicamente pelas cores e em contraste (em curto-circuito) com a onda que estala no céu —, é uma imagem de destruição, de morte. O que ainda vemos erguido, refletindo o seu duplo na água, é uma ruína. Está ainda e não estará lá, não está lá. Porventura acabado de ser criado, aquilo que vemos é já pó.
O espaço puro não existe, é uma abstração geométrica. Tal como é, a cidade deixará de existir, pois na sua constituição está uma potência de relação com o futuro: nenhum espaço é sagrado. Partituras para ir, uma caminhada pela cidade de Lisboa com direção artística de Joana Braga e criado pela própria juntamente com Andresa Soares, Fernando Ramalho, Flora Paim e Tânia Moreira David, faz parte do projeto Matéria para escavação futura, com curadoria das arquitetas e investigadoras Joana Braga e Ana Jara. Procurando “reconfigurar a experiência da cidade, escavar as violências que nela se inscrevem e expandir os seus imaginários em múltiplas leituras”, o projeto iniciou-se com esta caminhada no eixo Águas Livres/São Bento, zona onde está localizado o Teatro do Bairro Alto e prolongar-se-á ao longo de todo o ano.
Em grupos de quatro ou cinco, conduzidos por um guia, a caminhada procurou suscitar formas de perceção e práticas de atenção aos lugares que, com as suas arquiteturas, habitantes, cheiros e topografia particulares estão, muitos deles, escondidos no tecido urbano. Foi assim que, numa zona central e tão familiar, se pôde fazer a experiência do limiar na forma de penetração da passagem e contemplação da paisagem, mesmo que essa paisagem fosse uma parede branca, um vídeo ou estivesse obstruída pela visão velada.
Com origem no bloco das Águas Livres, prédio com 9 andares onde foi facultada entrada, passando pela antiga tipografia da Papelaria Fernandes, perto do Rato, o logradouro e (Quase) TBA, um espaço sobrante no Clube Nacional de Natação onde ouvimos uma mulher falar da vida da cidade, a galeria Zaratan onde vimos um vídeo, um pátio no Poço do Bispo escondido numa teia de ruas onde vive sozinha a D. Lurdes, uma anciã que em tempos ali viveu sem água nem luz, a escadaria da Assembleia da República onde se ouviu um dos leões miar. Terminando nas traseiras do Albergue Nocturno de Lisboa, na Rua da Cruz dos Poiais, com as suas hortas, galinheiros e jardim, a delicada coreografia do percurso propôs romper com o caminhar quotidiano para experienciar a cidade de forma revolucionária e problemática.
Partindo das formas existentes no percurso estabelecido e do imprevisto provocado pelos sujeitos, Partituras para ir procurou instaurar relações de movimento e de repouso, de velocidade e de lentidão, através das quais se instaura o devir, um devir entendido enquanto processo de desejo (Gilles Deleuze & Félix Guattari, Mille Plateaux, 1980). Caminhando em silêncio, regra que se impunha à partida entre as múltiplas instruções que foram sendo fornecidas, o percurso proposto explorava alterações da perceção inclusive através de colocação de vendas, momentos em que o participante era forçado a entregar-se com toda a confiança às mãos do guia, com a expetativa de iluminar e exacerbar a perceção habitual, banal, que temos do espaço urbano, permitindo um conhecimento renovado da cidade. Para além da contemplação de lugares em transformação, do contacto com formas de vida resistentes e da modalidade artística orientadora do percurso, introduzia-se assim na deriva a experiência do outro e um teste da nossa capacidade de entrega ao encontro.
Por outro lado, o silêncio proposto para esta caminhada conduzia também a uma solidão particular, a do wanderer, daquele cuja vida não se dissocia da deriva que estabelece a presença (do corpo no tempo) e, por isso também, da treva onde toda a intimidade com o mundo se aloja. Em suma, uma solidão infantil, onde as fantasias se gozam e que, ao invés de experimentar a fugacidade do tempo, apenas aí tem lugar, entre todas as coisas.
(fotografias de Joana Linda)