Muitas vezes marquei encontro comigo próprio no ponto zero
Muitas vezes marquei encontro comigo próprio no ponto zero. E lá me encontrei: situação sem conforto, de que há que partir. Isto vale para a pintura e para o resto.
Júlio Pomar, in Da Cegueira dos Pintores.
No Atelier-Museu Júlio Pomar encontra-se atualmente a exposição Muitas vezes marquei encontro comigo próprio no ponto zero. A mostra reúne trabalhos que abordam o desejo de pensar o silêncio nas suas múltiplas dimensões — corporal, artística, visual, temporal, política, real e imaginária. O projeto, resultado do prémio de curadoria atribuído por esta instituição, teve como júri João Fernandes, Luiza Teixeira de Freitas e Sara Antónia Matos.
De Ana Pérez-Quiroga, apresenta-se um conjunto de 37 imagens do rosto de lésbicas intitulado Stereotype Poof! Is Gone!, concebida com o propósito de quebrar estereótipos, que servem sempre para silenciar multidões. Ana Pissarra apresenta o vídeo Neptunismo, que representa um silêncio feminino inspirado na mitologia ligada ao mar. O Tempo não tem Som é a obra que Cecília Costa traz à exposição, onde a transitoriedade do tempo é gradualmente substituída pela permanência de um tempo não contado e infinito. Da série Night Works/Void Gaps, de Fernando Calhau, duas obras são especialmente reunidas para esta mostra onde o que está em causa é a fronteira, o fim, a recusa da imagem, da figuração e da ilusão.
Ouve-me, foi a única palavra escrita em toda a obra de Helena Almeida. Há argumentação no silêncio? O silêncio é possibilidade ou impossibilidade? Nas obras da artista que integram a exposição, a palavra é uma forma de ação. De João Pedro Vale & Nuno Alexandre Ferreira, Silence = Death evoca AIDS pelos mesmos, que evoca LOVE de Robert Indiana. Eminentemente política, comprometida e inclusiva, é uma obra com raízes no movimento ACT UP e cuja importância se mede nas consequências que gera para a compreensão da SIDA HIV hoje. A fotografia de João Maria de Gusmão & Pedro Paiva, Sistema Planetário, insere-se numa linha de preocupações que vão do universal ao quotidiano. Há nela um insólito comum aos trabalhos da dupla que permite ao espetador extrapolar acerca do curso habitual da silenciosa órbita celeste.
Comportamento Animal é uma série de fotografias de Jorge Molder, onde um olho enigmático nos observa. Pensamos no silêncio do corpo, dos seus órgãos e da sua relação com os outros corpos. De 1676, Repouso na Fuga para o Egito, de Josefa d’Óbidos, apresenta a Sagrada Família como habitualmente: São José, o patriarca do silêncio, mudo nas Escrituras, está em contemplação, relembrando-nos os não-ditos que existem na história das nossas próprias famílias. Luisa Cunha, repete uma ordem audível em toda a exposição: Shiu! confronta-nos com a consciência de nós próprios e com a nossa relação com os imperativos, com a lei. O desenho a grafite de Paulo Lisboa reflete uma experiência orientada para a natureza da luz, examinando a forma como esta nos revela e vela a realidade tangível. A obra de Pedro Vaz está ligada a uma ideia de paisagem: evocando a experiência direta do local, conjura a disposição a escutar o silêncio, naquilo que constitui uma mediação da relação do corpo com a natureza. A escultura em ferro de Rui Chafes, A Alma, Prisão do Corpo, faz parte de um conjunto de esculturas inspiradas na obra de Tarkovsky. Criadas como um sol negro que se levanta no caminho de alguém que vai morrer, este balão negro é a morte, banal e ao mesmo tempo um escândalo. Raquel, de Sandro Resende, apresenta uma paciente do Hospital Júlio de Matos a comer um hambúrguer perfeitamente indiferente ao olhar que, atrás da câmara, perscruta os seus movimentos, relembrando que, na nossa sociedade, o silêncio em comunidade não tem lugar exceto entre os doentes, os idosos e os camponeses.
Criado para esta exposição, o trabalho de Sara & André insere-se numa série iniciada em 2015 em que os artistas executam instruções escritas por outros artistas. O problema que esta obra levanta é colocado num plano aquém (som) e além (escrita) da linguagem, em que o silêncio surge como o que temos de interpretar. Do próprio Júlio Pomar são mostrados os desenhos da prisão realizados no Forte de Caxias, onde o artista esteve detido de 27 de abril a 26 de agosto de 1947.
No dia 8 de fevereiro, às 18:00, Ricardo Jacinto apresenta Medusa, um concerto de violoncelo solo que ativa uma instalação sonora. No dia 27 de fevereiro, às 18:30, numa parceria entre a Cinemateca e o Atelier-Museu Júlio Pomar, é exibido o filme FLOR AZUL, de Raul Domingues. A exposição encerra com uma conversa, no dia 14 de abril, com o cronista, crítico literário e professor António Guerreiro, a professora Maria de Fátima Lambert, a curadora Emília Tavares e o historiador Joaquim Caetano.
Numa época em que o importante é falar e em que o mundo se tornou definitivamente um lugar ruidoso, o silêncio parece estar a tornar-se, como diria Gordon Hempton, uma espécie em extinção. E como parece ser a regra do que nos escapa, está a tornar-se alvo da nossa atenção e valorização crescentes: os arquivos de silêncio multiplicam-se, ainda que o silêncio seja impossível de atingir.
Pois o que é o silêncio? A resposta clássica seria ausência de vibrações mecânicas transmitidas pelo ar. O silêncio pressupõe que qualquer coisa exterior ao ser humano estaria em estado de repouso ou seria anulada por algum efeito. O ruído seria neste sentido tudo aquilo que, não desejado, imprime uma qualidade de perturbação ao sinal: ou o próprio sinal. Na verdade, nunca houve silêncio. Sempre houve muito ruído. O silêncio é, por vezes, a representação do vazio, da ausência de algo, de um termo, de outro elemento ou pessoa.
Enquanto instrumento de autopreservação, o silêncio pode introduzir mal-estar ao revelar inadequação, incapacidade, impossibilidade ou simplesmente ao dar a perceber a relação com o outro como uma relação complexa e contraditória. Aquilo que preferimos não dizer, porque não queremos, não podemos ou não devemos, constitui a essência dessas relações e determina a sua verdade porventura mais do que o que é dito. Isto significa que o que é silenciado tem mais poder na medida em que é formador de uma identidade e define a elasticidade de um vínculo.
São categorias como estas — a fissura, a imperfeição, o inconveniente — que nos situam na relação com os outros e nos deixam ver como qualquer discurso remete sempre para outro discurso. Se o silêncio ameaça o discurso, o diálogo, a expressão, a comunicação e a liberdade, é também nos silêncios que tentamos captar, interpretar e assimilar os fluxos de pensamento. Só reconhecemos, enfim, o que conhecemos: num mundo onde o algoritmo serve ao controlo de sociedade inteiras, é preciso lembrar que até o Bartleby tinha alguma coisa a dizer.
Próximas actividades:
8 de fevereiro / 18:00 Concerto de Ricardo Jacinto I 27 de fevereiro / 18:30 / Cinemateca Potuguesa - Museu do Cinema FLOR AZUL, de Raul Domingues
Muitas vezes marquei encontro comigo próprio no ponto zero I curadoria de Marta Rema I Atelier-Museu Júlio Pomar até 14 de abril