As coisas fundadas no silêncio
Deixai-me limpo
O ar dos quartos
E liso
O branco das paredes /
Deixai-me com as coisas
Fundadas no silêncio.
Sophia de Mello Breyner
“Tenho de aprender a ficar em silêncio”, escreve André Gide no seu diário. Mas a que tipo de silêncio se referia? Toda a gente pensa que sabe o que significa, contudo, mesmo uma observação superficial revela que pode ser entendido de várias maneiras. De acordo com qualquer dicionário, silêncio significa tanto a cessação de todo o ruído como a interrupção ou a omissão do discurso. Mas a verdade é que fazemos um uso pessoal da palavra. Para algumas pessoas o som que as ondas do mar fazem é silencioso, mas o zumbido distante de um motor a gasolina não é.
Há diferentes formas de silêncio: o silêncio da apatia, da sobriedade, o silêncio fértil, da criatividade, de quando emergem novos pensamentos, o silêncio da escuta do outro, o silêncio do acordo entre várias pessoas ou o silêncio de comunhão com o cosmo. Mas há também o mutismo da loucura ou a transformação do silêncio em ação, pois quebrar o silêncio pode ser um ato de coragem. As sufragistas salientaram que ficar sem o voto era ser silenciado politicamente, excluído da cidadania plena, da autodeterminação e da esfera pública. Falar e não falar são duas formas de estar no mundo, de que muitas vezes depende a própria vida. Diz-nos Rebecca Solnit: “O silêncio e a vergonha são contagiosos, tal como a coragem e o discurso.” Silêncio e sublime ou silêncio e mutismo, como ocorre a formulação de pensamento daquele que não ouve? E daquele que não fala?
E o que dizer de sons que se vão extinguindo com o tempo: a morte de sons, outrora vívidos e fazendo parte do espaço quotidiano das pessoas, é irreversível. De uma máquina de escrever, de um relógio de sala, das rodas de uma carroça numa estrada de terra, dos pregões, de um galo madrugador, da gaita de um amolador que avisa a sua passagem.
Por outro lado, o silêncio pode estar fora ou além dos limites da linguagem descritiva ou narrativa, mas isso não significa necessariamente que falta algo ao silêncio. Talvez o silêncio seja uma coisa real e independente, uma categoria ontológica: não uma ausência de linguagem, mas diferente da linguagem; não uma ausência de som, mas a presença de algo que não é som.
O programa As coisas fundadas no silêncio — verso de Sophia de Mello Breyner — apresenta nove atividades, em Lisboa, para explorar este tema na sua relação com o corpo, com o tempo, com a linguagem, a música, o cinema e com as artes plásticas.
O momento inaugural acontece com um ciclo de conferências na Culturgest, nos dias 3 e 4 de março. Procurando estabelecer uma proximidade e diálogo entre público e oradores, doze convidados de referência, de áreas tão distintas como a dança, a literatura, a astrofísica, a arquitetura, o cinema ou a religião e a filosofia, irão apresentar as suas perspetivas sobre este campo de reflexão durante dois dias e debater com o público as suas diversas abordagens.
Rui Catalão orienta um workshop na Appleton Square, nos dias 28 e 29 de março. Intitulado O silêncio antes de encontrar, este workshop explora o ato criativo como um processo de descoberta e um despertar do silêncio. Através de um conjunto de exercícios dedicados à observação e intercalados com a leitura de textos, cenas de filmes, reproduções de pinturas e temas musicais, iremos ao encontro do que se manifesta e não havíamos reparado, acedendo assim a uma dimensão que deixa o silêncio para trás. Como se transforma o silêncio em linguagem e em ação? Quebrar o silêncio não é apenas um ato de coragem, mas também de criação: no início era o Verbo. Antes disso era o silêncio.
No dia 9 de abril, no Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado (MNAC), inaugura Como silenciar uma poeta, de Susana Mendes Silva. A exposição inédita parte da vida e obra da poeta Judith Teixeira (1888-1959), que alcançou notoriedade em março de 1923 no seguimento da publicação da sua primeira coletânea de poesia, Decadência, quando foi alvo de uma polémica sobre a (i)moralidade da arte, que envolveu também António Botto e Raul Leal. Ainda assim, foi diretora de uma revista, escreveu um manifesto artístico modernista e publicou mais dois livros de poesia. Morreu quase desconhecida e permaneceu injustamente expurgada da memória coletiva e da história literária até há pouco tempo, seguramente devido ao subtexto lésbico presente em vários dos seus poemas. Podemos aqui falar em dois tipos de silêncio: um para o que é dito e o que permanece por dizer, e outro para quem tem direito a falar e quem é forçado a ficar calado. No local onde a sua primeira obra foi queimada, nas antigas instalações do Governo Civil de Lisboa, hoje MNAC, a artista plástica Susana Mendes Silva desenvolve um projeto expositivo que inclui duas performances — “Tradução #1” e “Tradução #2” — e a leitura performativa da conferência “De mim”.
Nos sábados 11 e 18 de abril, haverá três sessões de Filosofia com Crianças com Joana Saraiva. Abertas a crianças dos 4 aos 14 anos, nestas sessões propomos um campo livre de reflexão, desenvolvendo a capacidade que cada criança tem de pensar por si mesma. A partir da pergunta O que pode nascer do silêncio?, nesta oficina vamos pensar se é possível ouvir o silêncio, se estar em silêncio é só não falar, se há lugares de silêncio, se o silêncio tem uma cor, o que é uma conversa ou se o silêncio é um sonho, numa prática dialogante que exercite o pensamento, promova o espírito crítico, desenvolva a expressão oral e fomente a capacidade de conviver e gostar de ouvir opiniões diferentes das nossas.
O coreógrafo Gustavo Ciríaco e a performer Isabél Zuaa estreiam, no dia 24 de abril, Uma voz, criação que toma a igreja de St. George como um imenso instrumento a ser tocado pela voz de uma mulher. Com a acústica como base de exploração sonora, Zuaa irá cantar temas originais e adaptados, que falam de pessoas silenciadas devido à cor da sua pele, ao seu género, à sua identidade sexual, condição social ou posicionamento político. Ao público é designado um caminho a seguir em diálogo com essa voz que ora revela, ora esconde o espaço na sua articulação com a nudez da arquitetura do templo. Através destas histórias, percebemos como o silêncio pode ser um lugar de controlo, de opressão, de onde apenas se deseja escapar. Contar estas histórias é o início da liberdade para estas vozes, tal como há 46 anos atrás foi para um país inteiro.
A câmara anecóica do Instituto Superior Técnico irá receber a visita de 24 pessoas no dia 7 de maio. Criadas para facilitar os estudos sobre acústica e temas relacionados, as câmaras anecóicas não isolam apenas o som, mas sim qualquer onda eletromagnética e, assim, o seu uso elimina qualquer interferência de ecos. Dentro da câmara, nada do que vem de fora é ouvido e um ser humano pode ouvir os seus próprios batimentos cardíacos, os pulmões em atividade respiratória ou pequenos ruídos emitidos pelo estômago. O máximo de tempo que uma pessoa conseguiu ficar numa câmara anecóica foram 45 minutos.
Tiago Sousa chega no dia 16 de maio para um concerto no Museu da Música. Estaremos com ele e com a violoncelista Bruna Maia Moura, entre John Cage, com a sua célebre peça silenciosa 4’33’’, Federico Mompou, Arvo Pärt e obras do próprio pianista. Numa sociedade em que a necessidade, a produtividade e o trabalho ocupam um lugar central, a experiência do silêncio, tal como a experiência musical, são manifestações desvinculadas de qualquer preocupação ou necessidade, que nos remetem para um estado de liberdade das necessidades e limitações da vida. Para Tiago Sousa, compositor e pianista que ao cabo dos últimos dez anos tem desenvolvido uma linguagem muito pessoal, longe dos cânones e academismos, a música é precisamente este espaço de comunicação do indizível, de relação com o instante e com a intimidade, um processo colaborativo em que todos entramos no desconhecido.
Nos dias 25, 26 e 27 de maio, no cinema São Jorge, serão exibidos seis filmes que evocam perspetivas diversas sobre o silêncio: reflexões políticas, poéticas, experimentais ou documentais. Comentado por Nuno Lisboa, diretor do Doc’s Kingdom, o ciclo inclui: Land of silence and darkness, documentário de Werner Herzog sobre a vida de pessoas surdas-mudas; Few of Us, de Šarūnas Bartas, filme sem diálogos, meditativo, sobre a chegada de uma rapariga sem nome a uma aldeia remota da Sibéria; Berlin 10/90, filme íntimo de Robert Kramer, que vemos frente ao espelho do seu wc em Berlim, refletindo sobre a recente queda do Muro, num único plano de uma hora; Terra, de Hiroatsu Suzuki e Rossana Torres, filmado no Alentejo que tem como protagonista Nuno Alves, um homem que faz carvão em dois grandes fornos cobertos de terra; Two cabins, do cineasta independente James Benning, que construiu para o filme réplicas das cabanas de Thoreau e Kaczynski (o Unabomber), evocando questões de liberdades individuais, desobediência civil, democracia, a transcendência da natureza e o direito a explorá-la; e finalmente, Vitalina Varela, nona longa-metragem de Pedro Costa, que recebeu o Leopardo de Ouro do Festival de Locarno de 2019, depois de ter sido um dos filmes que mais impacto teve junto do público e da crítica no festival.
O programa encerra no dia 30 de maio, na Galeria Monumental, com Jogo da bomba, criação nova de Gonçalo Alegria que reflete sobre posições, perceção e estados no espaço: dois performers atravessam uma sala com a premissa de serem o mais silenciosos possível. Transportam consigo objetos que projetam som — colunas, objetos variados — e sensores que, ao mínimo movimento, devolvem fragmentos de som que se vão acumulando, formando assim uma coreografia que procura resistir ao ambiente que geram.
A festa segue com Cinderella Big Score.