"The portuguese prison photo project" no Museu do Aljube
Quatro paredes, era tudo o que eu tinha. E tempo para pensar, pensar, pensar, o cérebro não pode parar de pensar. E os pensamentos saltavam das paredes. Houve alturas em que já nem tinha a certeza de que era algo ou alguém. Era como tomar o fator tempo e multiplicá-lo por infinito, com nada entre os dois. Muito em breve, não se é nada.
Testemunho de recluso, in Pedro Prostes da Fonseca, Vida de prisão.
O direito à intimidade está circunscrito a uma esfera restrita da vida privada, na qual, é bem suposto, ninguém pode penetrar sem consentimento. Nesse sentido, ela é inviolável e, como diz Hannah Arendt, é regulada pelo princípio da exclusividade. A intimidade é a esfera que comanda as escolhas pessoais e o que constitui legalmente a vida íntima das pessoas não é de interesse público. Porque é exclusiva, sente-se lesada quando é invadida sem autorização. Hoje, contudo, o acesso à intimidade quotidiana exerce sobre nós uma atração tremenda. Queremos olhar para dentro das casas, conhecer as biografias, participar dos segredos, num movimento em direção ao ínfimo, ao insignificante, ao parcial. Ao mesmo tempo que se circunscreve cirurgicamente a intimidade ao domínio do intangível, queremos penetrar o mais possível a sua esfera. Em que nos transformamos quando surpreendemos e vigiamos o íntimo? O choque da familiaridade conforta-nos e seduz-nos. A estranheza entre nós e os outros cessa.
Quem já viu o interior de uma prisão? Para a maioria de nós são as imagens dos filmes e de algumas leituras que fizemos que ficam. O projeto The portuguese prison photo project cruza os olhares de dois fotógrafos sobre o interior de sete prisões portuguesas contemporâneas, em 2016 e 2017, nenhuma de alta-segurança. Luís Barbosa (galardoado com o Prémio Melhor Trabalho de Fotografia da SPA 2018 pelo projeto) e Peter Schulthess, conduzem-nos a um mundo que retrata as prisões portuguesas, da mais antiga, criada em 1880, à mais moderna, aberta em 2004. Agora instalada no espaço de exposições temporárias do Museu do Aljube até ao final de setembro de 2019, a exposição é complementada com imagens históricas provenientes de arquivos nacionais. Entre essas imagens e as atuais, qual é principal diferença? Os rostos. Uma das limitações que os fotógrafos tiveram no seu trabalho foi a proibição de fotografar o rosto dos presos, que adquiriram o direito à proteção da identidade, ao contrário do que acontecia no passado.
The portuguese prison photo project partiu de uma ideia de Daniel Fink. Antigo delegado do Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV), chefe da secção de Crime e Direito Penal do Gabinete Federal de Estatística no Swiss Federal Statistical Office ao longo de 15 anos, Daniel Fink ensina atualmente estatística criminal e a sua relação com políticas criminais nas Universidades de Lausanne e Lucerne. Após uma visita ao CPF Porto, estando no Porto para uma conferência internacional sobre Criminologia, Fink falou com o diretor do CPF e com o Dr. Cândido da Agra, Criminologista da Universidade do Porto. O projeto acabou por reunir a direção do Centro Português de Fotografia e investigadores das Universidades do Porto e Lausanne, tendo os fotógrafos Luís Barbosa e Peter Schulthess sido autorizados pela Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais a entrar em sete prisões portuguesas em 2016 e 2017: o Estabelecimento Prisional de Lisboa, Carregueira, Leiria, Guarda, Izeda, Santa Cruz do Bispo e Viseu, estabelecimentos prisionais que representam cerca de um quarto de todos os espaços prisionais nacionais. De uma lista de 12 prisões inicialmente propostas à Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, várias foram rejeitadas.
A verdade é que, em muitas prisões portuguesas vive-se num estado de salve-se quem puder. Para citar Pedro Prostes da Fonseca no seu livro Vida de prisão: “Num relatório do Comité para a prevenção da Tortura, o governo português passou pelo vexame de lhe ser exigido o encerramento de quatro alas do EPL [Estabelecimento Prisional de Lisboa], até que estas fossem recuperadas. Aquele organismo do Conselho da Europa descrevia as condições nas prisões de Lisboa, Caxias e Setúbal como «totalmente inapropriadas para receber prisioneiros» por condições «desumanas e degradantes». / Em fevereiro de 2018, reconhecendo o problema, a ministra da Justiça afiançou que o governo estava «a trabalhar num plano a dez anos de requalificação do edificado prisional» e prometeu o fecho «de alguns estabelecimentos que deixaram de ter condições de habitabilidade», entre eles os de Setúbal e Lisboa (…).”
Muitas das prisões portuguesas foram instaladas em edifícios pré-existentes que sofreram adaptações para o efeito. Em 1867, tal como nas últimas décadas, houve uma reforma penal e de prisões que levou à construção de novas instalações. Vários edifícios prisionais foram transformados em espaços culturais, como é o caso dos espaços relacionados com este projeto, o Centro Português de Fotografia, no Porto, e o Museu do Aljube, em Lisboa. Um dos maiores problemas que a população prisional enfrenta é a sobrelotação: desde 1985 que o número de reclusos excede a capacidade dos estabelecimentos prisionais. O nível de ocupação no final de 2016 atingia uma média de 109% chegando a 170% em algumas prisões, ao contrário da Suíça, país de origem de Peter Schulthess, que tem um índice criminal baixo e uma pequena população prisional. Em relação à Europa, Portugal tem uma alta taxa de detidos, causa sobretudo do grande número de sentenças de detenção de longa duração. Com a intenção de reduzir o número de detidos, o código penal está neste momento a ser alvo de revisão, constituindo maior ênfase nas medidas de vigilância eletrónica.
Um estabelecimento prisional típico é composto por diversas unidades, cada uma contendo celas e camaratas, refeitório e gabinete para os guardas. Haverá normalmente três ou quatro salas de aula, pelo menos uma delas equipada com computadores, uma biblioteca, um pequeno ginásio, uma loja e uma capela. A zona de cuidados médicos dispõe de unidade própria com salas de exame, uma clínica e um quarto de isolamento. Os castigos disciplinares também são aplicados numa unidade própria composta por celas e pátios especiais. Os espaços de trabalho localizam-se num anexo aos edifícios ou em estruturas separadas. Contudo, não há qualquer obrigação de trabalhar e as possibilidades de o fazer são limitadas, pelo que a vida quotidiana é bastante monótona. A norma que obrigava o recluso a estar ocupado foi abolida a seguir à Segunda Guerra Mundial, na sequência da Declaração Universal dos Direitos Humanos. As duas horas de atividade exterior diária decorrem nos pátios. As visitas dos familiares (uma hora, duas vezes por semana) ocorrem sob supervisão numa ou várias salas de grandes dimensões. Há também as visitas íntimas que têm lugar em quartos equipados com cama de casal, kitchenette e casa de banho com chuveiro, mas nem todas as prisões têm espaço apropriado para estes encontros, com duração máxima de três horas e desde 2009 permitidos a pessoas do mesmo sexo. Em Portugal, ao contrário da Suíça, por exemplo, existem torres de vigia com uma guarnição permanente de guardas armados. Os guardas fazem turnos de 24 horas com dois dias de folga, dispondo de salas próprias de convívio, refeitório e quartos para pernoita.
Os sistemas prisionais portugueses e suíços diferem no tamanho bem como no número e dimensão dos estabelecimentos de detenção. Enquanto Portugal tem 49 prisões para todas as formas de detenção, incluindo 2 instituições penais psiquiátricas, a Suíça tem 114, das quais 5 são instituições penais psiquiátricas. A capacidade média de um estabelecimento em Portugal é de 260 lugares e na Suíça é de 75. O maior estabelecimento em Portugal — a penitenciária de Lisboa — tem capacidade para 890 lugares e, em 2017, era ocupada por cerca de 1300 prisioneiros. Na Suíça, o maior estabelecimento prisional tem 460 lugares, mas também aqui se vê um problema de sobrepopulação: a Prisão de Champ-Dollon em Genebra, possuindo 390 lugares, era ocupada em 2017 por mais de 600 pessoas. Em ambos os países há uma distribuição semelhante da população por género: as reclusas representam 6% do total. Contudo, em Portugal as detidas estrangeiras representam 40% da taxa de ocupação enquanto na Suíça cerca de 90% de todas as mulheres reclusas são estrangeiras. A mesma diferença se aplica à população como um todo. Os estrangeiros detidos em Portugal representam apenas 18% de toda a população prisional. Já na Suíça, são mais de 70%. Faltam, contudo, dados de comparação mais eficazes, como a relação entre os reclusos e os guardas, as condições de habitabilidade, as possibilidades de trabalho e de contacto com o mundo exterior, dias de licença, questões de saúde e alimentação, suicídio e morte, entre outros, teriam de ser examinados. Falando do caso português, sabe-se que o tráfico de droga nas prisões conduziu à escravidão alguns reclusos, a dívidas e a violência.
Por outro lado, a droga tem um efeito apaziguador do ambiente prisional, acabando por ser tolerada pelos guardas. Tão procurados como droga dentro das prisões, ainda que proibidos, hoje não há praticamente recluso que não tenha o seu telefone, podendo assim comunicar com o exterior tanto quanto deseje. Numa população à época de 13 779 reclusos, só em 2016 foram apreendidos 2 094 telemóveis. Porém, permanece ainda em vigor o regulamento prisional que autoriza uma chamada de cinco minutos por dia, podendo o diretor conceder contactos mais frequentes ou de maior duração a quem não receba visitas regulares. “Em 2016, segundo um relatório do Ministério da Justiça, 12 guardas prisionais foram detidos por corrupção passiva e ativa, tráfico de droga, extorsão, burla, sequestro, posse de arma proibida, roubo tentado, coação e ofensas à integridade física e moral.” (PPF, Vida de prisão).
O suíço Peter Schulthess, especialista em fotografia de arquitetura, membro da Swiss Professional Photographers e da Photo Designers SBF, já anteriormente tinha trabalhado em contexto prisional, primeiro na Suíça, depois na Alemanha e agora em Portugal. A sua primeira experiência ocorreu há 15 anos, na antiga penitenciária de Basel, que levou ao desenvolvimento do seu interesse por fotografar estes estabelecimentos. Acompanhado por Gilda Santos, da Universidade do Porto, a sua visita às prisões portuguesas motivou um espírito científico e objetivo, mais documental, na senda da escola de Düsseldorf. De acordo com o fotógrafo: «Este projeto foi um passo para um mundo desconhecido, num país que eu nunca tinha visitado. Por isso me questionei: o que é que eu vou ver? O que poderei fotografar? O que vou poder mostrar?». Peter fotografou a cores espaços predominantemente vazios ou ocupados por vultos, preferindo pormenores arquitetónicos, os próprios edifícios e detalhes dentro deles, como o berço de um bebé no quarto de uma detida.
Luís Barbosa, por seu lado, nunca tinha entrado numa prisão, considerando por isso a sua participação no projeto com uma grande carga emocional. Adotando a perspetiva dos detidos, como o ponto de vista de um preso da sua cama, Luís fotografou o que lhe foi permitido, nas horas em que lhe foi dado o acesso e teve algumas fotografias «oferecidas», tal como as denomina: uma, de um recluso que subiu a camisola tapando com ela o rosto e mostrando o torso coberto de tatuagens, outra, de um pequeno grupo no final de um dia de trabalho que, vendo o fotógrafo aproximar-se, baixaram as cabeças para que a fotografia se tornasse possível. Luís Barbosa fotografou a preto e branco numa dicotomia de sombra e luz, reclusão e redenção, pavor e liberdade, conduzindo o olhar às pequenas coisas da vida quotidiana como uma foto de um santo ou de uma mulher nua, um cigarro ou uma televisão.
Após terem sido expostas no outono de 2017 no Centro Português de Fotografia no Porto, com mais de 33 mil visitantes, a exposição toma agora um formato multimédia, dado o reduzido espaço de acolhimento da galeria de exposições temporárias do Museu do Aljube. A Professora Maria José Moutinho Santos, da Universidade do Porto, realizou a investigação nos arquivos nacionais e selecionou, entre várias centenas de fotografias, imagens documentais que foram incluídas na exposição que agora se pode ver no Aljube, antiga prisão primeiro de mulheres e, mais tarde, do Estado Novo, hoje museu de homenagem aos defensores da liberdade, até dia 29 de setembro de 2019. Organizada no âmbito da exposição, decorre também, no Museu do Aljube e na Universidade de Lisboa, a Conferência Internacional Prisons in Portugal and Europe: Regimes of Detention and Monitoring of Regimes, nos dias 23 e 24 de maio de 2019.