Davi Kopenawa Yanomami: “Vocês ouviram falar sobre a queda do céu?”

O novo filme dedicado ao povo indígena Yanomami, A Queda do Céu (2024), dos realizadores brasileiros Gabriela Carneiro da Cunha e Eryk Rocha, começa com um extraordinário plano-sequência que transcende a sua função de prólogo de abertura, afirmando-se como um plano merecedor de um lugar de destaque na história do cinema que aborda a Amazónia. Trata-se de uma poderosa representação cinematográfica dos povos indígenas amazónicos, guardiões culturais e espirituais da terra-floresta. Com este primeiro plano estabelece-se uma dialética, mediada pela cosmologia Yanomami, entre o visível e o invisível, entre o céu e a terra, oferecendo-se ao espetador um atalho para um melhor entendimento da luta indígena contra a emergência climática que enfrentamos.

Fotograma do plano inicial do filme A Queda do Céu.Fotograma do plano inicial do filme A Queda do Céu. 

O plano-sequência inicial é longo, pois enquadra, sem pressa, a caminhada em passo lento e constante de um grupo de indígenas Yanomami, composto por homens, mulheres e crianças, em direção à câmara. A duração do plano exige a perseverança do espetador, que é convidado a entrar no filme com uma expectativa pautada pela cadência da marcha indígena. A proposta feita ao público com este início estende-se a toda a obra, na qual está implícita a sugestão de um reposicionamento em relação ao ritmo convencional na linguagem tradicional do filme documental. A obra propõe a conexão com a cosmologia e com o ritmo Yanomami, que é outro, distinto dos que caracterizam a sociedade não-indígena e a cinematografia em geral. 

Enquanto nos conectamos ao ritmo dos passos sincronizados, vistos de longe, os indígenas aparecem como indivíduos abstratos, deslocando-se juntos com um propósito comum. Esse movimento evoca o ser não personalizado como parte essencial de uma entidade maior: a do seu povo. Assim, à medida que avança, o corpo coletivo configura-se como uma potência primordial, desenvolvida ao longo do documentário, como a força vital e emancipatória dos Yanomami. 

Em A Queda do Céu percebemos o quanto a existência dos Yanomami está profundamente enraizada na espiritualidade e nos valores comunitários ancestrais e como, seguindo esses princípios, defendem, numa luta partilhada, a terra-floresta e a sua permanência neste território. Desta forma, o plano-sequência que abre o filme coloca de imediato no centro da narrativa a resistência do povo que habita a maior terra indígena do Brasil, localizada no Estado de Roraima, no norte do país. No filme, Davi Kopenawa diz: “Nosso território Yanomami ainda existe porque vivemos juntos aqui”.

O movimento quase hipnótico do grupo em direção à câmara pode, ainda, ser interpretado como uma metáfora da crescente visibilidade das questões indígenas e da maior representatividade dos povos originários, tanto na sociedade brasileira como na comunidade internacional. Dentro desta lógica, o documentário é um caminho de aproximação, mediada pelo cinema, aos não-indígenas, com o propósito de serem vistos e ouvidos por estes. Contudo, os Yanomami não reclamam apenas atenção; eles exigem uma reação, alinhada com a sua perspetiva, em relação à proteção da Amazónia.

Uma vez próximas da câmara, as figuras concretizam-se, emergindo imponentes e enquadradas como protagonistas ativos. Revelam-se os corpos e os rostos de várias gerações, bem como os objetos, as armas e os alimentos que carregam. Este é o momento do encontro com os habitantes da aldeia Watorikɨ e do reconhecimento do seu líder, Davi Kopenawa, cuja presença, na linha da frente da marcha, simboliza décadas de luta incansável.

O trajeto existencial de Kopenawa como indígena, porta-voz do seu povo, pensador e ativista ambiental está detalhado no livro A Queda do Céu, lançado originalmente em França, em 2010. Resultado de anos de parceria entre Davi Kopenawa e o antropólogo francês Bruce Albert, o livro, que é um testemunho esclarecedor da cosmovisão e da história dos Yanomami, inspirou os realizadores a fazerem este filme homónimo. 

Tal como a obra literária, o filme convida à reflexão sobre o modelo de depredação gerada por aqueles que Kopenawa define como “povo da mercadoria”, ou seja, os brancos, que “mantém uma relação doentia com a Terra”, como escreve o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro no prefácio da edição brasileira de A Queda do Céu - Palavras de um Xamã Yanomami (Companhia das Letras, 2015. Pág. 27). Um estilo de vida que, segundo os Yanomami, destrói a floresta - o seu mundo - e ameaça fazer cair o céu, colocando em risco a sobrevivência da humanidade. 

E quem luta para evitar a queda do céu? Os xamãs (ou pajés) Yanomami, guardiões do saber ancestral e mediadores da relação com as forças sagradas da sua cultura: os espíritos da floresta, os Xapiri. Segundo a cosmovisão indígena, o céu já caiu uma vez, há muito tempo, e foram os Xapiri que o “teceram novamente”. No livro, a epígrafe do capítulo “A morte dos xamãs”, reafirma a importância dessa conexão sagrada: “Enquanto os xamãs estiverem vivos, eles poderão evitar a queda do céu, mesmo que ele fique muito doente.” (Companhia das Letras, 2015. Pág. 489).

Indígena Yanomami na festa Reahu. Foto de divulgação.Indígena Yanomami na festa Reahu. Foto de divulgação.

 

A festa Reahu, uma homenagem à memória de um grande xamã.

Davi Kopenawa encabeça a marcha que abre o filme, exercendo a função de líder espiritual que prepara, com os seus parentes, a festa de homenagem à memória do seu sogro, um grande pajé da aldeia Watorikɨ. A finalidade de celebrar o ritual funerário Reahu, como é conhecida esta homenagem, é guiar o falecido ao mundo dos espíritos, tarefa assumida pelos xamãs que, ao tomarem a yãkoana (substância alucinogénia), se comunicam com os xapiri. Segundo a tradição, com esta cerimónia, todos os vestígios da existência do falecido são eliminados, permitindo colocar o parente “em esquecimento”. 

No livro A Queda do Céu - Palavras de um Xamã Yanomami, Kopenawa descreve a contribuição do seu sogro para a sua iniciação ao xamanismo - o que o fez “virar outro” - quando, nos primeiros anos da década de 1980, tomou a decisão de seguir os passos dos grandes xamãs, seus ancestrais. Quando o seu sogro questionou esta decisão, Kopenawa confirmou-a, declarando que queria “continuar a fazer descer os espíritos” quando os anciões partissem e conforme relata no livro: “foi depois disso que ele começou a me dar seus espíritos, soprando pó de yãkoana em minhas narinas pela primeira vez. (…) Seus xapiri são muito fortes. Seu pensamento vai muito longe e sua casa de espíritos é muito alta. Foi generoso da parte dele me dar assim o sopro de vida de seus próprios xapiri, pois ele quis mesmo fazer de mim um xamã!” (Companhia das Letras, 2015. Pág. 134-5).

A ação retratada no início do filme representa um ato coletivo de respeito às tradições ancestrais. A caminhada tem como destino o local do ritual funerário, para onde se dirige o grupo, que carrega os alimentos que colheram e caçaram. A festa Reahu ocorre por meio da partilha de alimentos (especialmente o mingau de banana, as pupunhas e a carne moqueada), assim como de cânticos e danças. A preparação da cerimónia começa um ano antes da sua celebração, com o plantio das provisões necessárias para o encontro que se prolonga por um mês e reúne membros da comunidade e de outras aldeias, e tem como convidados especiais os respetivos xamãs e líderes. No filme, Kopenawa assume a função de narrador do ritual, que não é apenas um ato de despedida, mas também uma celebração da vitalidade Yanomami, a força que segura o céu. 

Gabriela Carneiro da Cunha e Eryk Rocha, que preparavam o filme com os Yanomami desde 2017, foram surpreendidos pelo convite de Kopenawa para filmarem esta festa Reahu, incluindo a sua preparação. As gravações efetuadas sugeriram aos realizadores “um outro filme”, diferente do inicialmente planeado. O ritual Reahu acabou por se tornar o elemento catalisador de uma parte substancial da narrativa do documentário que, em vez de seguir a ideia inicial de ser uma adaptação do livro ao cinema, se centrou no seu último capítulo: “A morte dos xamãs”.

À semelhança do filme A Última Floresta (2021), de Luiz Bolognesi, que encena o mito fundador Yanomami, A Queda do Céu procurou transpor para a linguagem cinematográfica a espiritualidade que permeia a conexão sagrada dos xamãs com os espíritos da floresta, através do ritual que tiveram oportunidade de documentar. Para os Yanomami, mostrar estas práticas é um ato de soberania cultural, que fazem questão de exercer como forma de demonstrar que as suas tradições estão vivas e integram a sua contemporaneidade, num tempo em que a uniformização surge como uma força redutora. No âmbito interno, os Yanomami fortalecem os laços comunitários, além de formar as novas gerações.

Na festa Reahu, tanto a câmara de filmar quanto os xamãs atuam como uma espécie de intermediários entre mundos, aproximando ainda mais o espetador dos Yanomami e do seu universo. Os realizadores, juntamente com o editor Renato Vallone, organizaram o registo dos cantos, dos movimentos corporais, dos gestos, das expressões faciais e, sobretudo, das vozes dos humanos e não humanos - recorrendo a longos planos-sequência e planos fechados – numa significativa construção visual e numa experiência sonora polifónica. Tudo isso foi concebido de forma a transmitir fielmente o que testemunhavam, como fez questão de assinalar Eryk Rocha na sessão de estreia do filme em Portugal, no Festival Doclisboa, em outubro passado.

Davi Kopenawa ouve as denúncias chegadas de outras aldeias. Foto de divulgação.Davi Kopenawa ouve as denúncias chegadas de outras aldeias. Foto de divulgação.

 

Os xamãs denunciam o caos provocado pelo “povo da mercadoria”.

Em A Queda do Céu, Cunha e Rocha partilham a criação do filme com os Yanomami, num encontro em que estes não são apenas protagonistas performativos da sua própria realidade. Embora Kopenawa assuma o papel de narrador e guia, outros parentes contribuem com os seus relatos, sempre na língua nativa, complementando as ideias apresentadas pelo xamã ou introduzindo novos pontos de reflexão. Este conjunto diversificado de depoimentos expande a narrativa, aprimorando a ideia de uma representação coletiva da comunidade, ao mesmo tempo que revela perspetivas individuais.

Alguns dos discursos realizados pelos pajés na cerimóni Reahu ocorrem no início da noite ou antes da alvorada e, por isso, são representados no filme em sequências envoltas na penumbra, o que amplifica, de forma natural, a sua densidade dramática, dado que os realizadores optaram por não interferir nas cenas com luz artificial. Nestes momentos especiais do ritual, transmitem-se mensagens importantes, muitas vezes dirigidas a toda a comunidade e, em certos casos, a grupos específicos, como o dos mais jovens. Memórias e alertas sobre as ameaças do quotidiano destacam-se nestas comunicações.

Ao permitir que antropólogos, cineastas e aliados externos documentem e testemunhem as suas cerimónias e discursos, os Yanomami não pretendem apenas mostrar a sua cultura, mas também aproveitam essa oportunidade para apontar diretamente os responsáveis pela destruição do seu habitat. O documentário A Queda do Céu, embora nos proponha, desde o primeiro plano, uma entrada direta no mundo dos Yanomami, transcende esse propósito ao permitir que os napë - brancos na língua Yanomami - “se vejam a si mesmos a partir de uma perspetiva xamânica e de uma geopolítica contra-colonial”, como frequentemente afirmam os realizadores. Este é um dos pontos cruciais de convergência entre o filme e o livro de Kopenawa e Albert.

O filme reúne depoimentos que recordam alguns dos ataques sofridos pelos Yanomami por parte dos não-indígenas e relatam as suas investidas de apropriação e espoliação. São evocadas dores antigas e atuais, entre as quais se destaca a abertura da Perimetral Norte, na primeira metade da década de 1970, recordada no discurso que o xamã Justino Yanomami fez durante a festa Reahu. O ancião conta como a estrada rasgou o território, colocou comunidades em risco e dizimou grupos inteiros, incluindo familiares seus, que morreram vítimas das doenças trazidas pelos operários da construção da via.

A Perimetral Norte fazia parte do projeto de colonização da Amazónia que constava no Plano de Integração Nacional, implementado pelo ditador Emílio Garrastazu Médici (1969-1974). Em plena ditadura militar, em março de 1975, o Coronel R. Pereira, Governador de Roraima, declarou ao Jornal de Brasília: “Uma terra tão rica quanto esta não pode se dar ao luxo de deixar meia dúzia de tribos de índios entravar seu desenvolvimento.” (Companhia das Letras, 2015. Pág. 292). Esta citação abre como epígrafe, o capítulo treze do livro A Queda do Céu, onde Kopenawa relata que, no “tempo da estrada”, apesar de trabalhar para os brancos, não conseguia entender exatamente o que estava a acontecer. O que observava era que cada vez mais parentes adoeciam devido a epidemias e faleciam. Kopenawa dizia que os anciões “não sabiam de nada quanto à estrada. Os homens do governo não os reuniram para ouvir a voz deles. Não perguntaram para eles: ‘Podemos abrir esse caminho nas suas terras? O que acham? Vocês não vão ficar com medo?’ (…) De modo que, certo dia, as máquinas chegaram à floresta sem que nenhuma palavra as tivesse precedido.” (Companhia das Letras, 2015. Pág. 292).

Segundo o site do Instituto Socioambiental (ISA), “nesse mesmo período, o projeto de levantamento dos recursos amazônicos RADAM (1975) detetou a existência de importantes jazidas minerais na região. A publicidade dada ao potencial mineral do território Yanomami desencadeou uma progressiva invasão garimpeira, que acabou agravando-se no final dos anos oitenta e tomou a forma, a partir de 1987, de uma verdadeira corrida do ouro.” Neste contexto, a Perimetral Norte (BR-210) acabou sendo responsável pela invasão de quarenta mil garimpeiros nessa década. 

Desde então, o garimpo contínua presente no Território Indígena Yanomami como uma das grandes ameaças à sua sobrevivência. No filme, este flagelo entra em cena apenas através das mensagens de áudio enviadas pelos indígenas cercados pelos garimpeiros. Essas denúncias chegam a Davi Kopenawa por meio de um aparelho de comunicação por radiofonia. As notícias, longe de serem tranquilizadoras, resumem o quadro de instabilidade vivido permanentemente nas terras indígenas Yanomami e Ye`kwana.

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Justino Yanomami: “Vocês são nossos aliados?”

Embora os Yanomami sejam um dos povos originários que mais desenvolvem alianças estratégicas com os não-indígenas, e Davi Kopenawa um grande diplomata, não surpreende que, tendo em conta o longo historial de fatos, como os mencionados anteriormente, os brancos suscitem desconfiança, algo abordado em diversas ocasiões ao longo do filme. O momento mais expressivo desse receio é protagonizado por Justino Yanomami, que questiona diretamente os realizadores: “O que vocês farão com esse filme? Vocês são nossos aliados?”

Esta dúvida não é apenas retórica; reflete uma profunda inquietação que ressoa há décadas entre os indígenas: podem os brancos ser verdadeiros aliados? Os realizadores consideram a pergunta de Justino como o “ponto de inflexão do filme”. A partir desse momento, a narrativa ganha os contornos daquilo que Cunha e Rocha chamam de “contra-antropologia”; intensificam-se as críticas aos napë e os avisos sobre as consequências da sua atuação predatória.

 

O xamã Justino Yanomami. Foto de divulgação.O xamã Justino Yanomami. Foto de divulgação.

No livro A Queda do Céu, Kopenawa questiona frequentemente se os brancos possuem palavras “de verdade”. Ainda assim, os Yanomami têm contado, ao longo do tempo, com verdadeiros aliados não-indígenas: antropólogos, ativistas e defensores dos direitos dos povos originários, entre os quais se destacam aqueles que ajudaram a demarcar o Território Indígena Yanomami, em 1992. No entanto, não faltam razões para que, não só os Yanomami, mas os povos indígenas em geral olhem com cautela para o “povo da mercadoria”. 

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No livro A Queda do Céu, Kopenawa relata que costuma ouvir as palavras dos seus espíritos, “que se perguntam, irados: ‘Por que os brancos são tão hostis a nós, que não os maltratamos? Será só porque somos gentes outras, habitantes da floresta? Não fique aflito, pode ser que o matem, mas eles mesmos não vão ficar muito tempo a salvo das destruições que alastram!’(…) Hoje restam poucos grandes xamãs vivos na floresta, mas os espíritos órfãos dos xamãs mortos vão aumentando e estão cada vez mais bravos. É por isso, também, que não queremos que os brancos continuem maltratando nossa terra.” (Companhia das Letras, 2015. Pág. 496).

No relatório Ação pela Cidadania de 1990 - que denunciava a presença de garimpeiros nas terras Yanomami, assim como outros problemas que afetavam outras etnias - Kopenawa profetizava: “Quando a fumaça encher o peito do céu, ele vai ficar também morrendo, como um Yanomami. Por isso, quando ficar doente, o trovão vai se fazer ouvir sem parar (…) vai gritar de raiva, sem parar, sob o efeito do calor… Assim o céu vai acabar rachando” (1990. Pág.12). Trinta e quatro anos depois, várias regiões da Amazónia têm enfrentado períodos de grave degradação da qualidade do ar, contaminado pelo fumo dos incêndios que se alastram há meses, e uma seca extrema que se repete pelo segundo ano consecutivo. Em 2024, a temperatura subiu 5,1 graus acima da média, em comparação com os registos das últimas três décadas no bioma. 

Em consonância com esta realidade, o filme finaliza com o alerta de Kopenawa sobre o que ele chama de “a vingança do mundo”, referindo-se ao colapso climático, representado por uma montagem cinematográfica com cenas de obras de dois cineastas de referência: Os Bandeirantes (1940), do brasileiro Humberto Mauro e A Natureza (2019), do arménio Artavazd Pelechian. 

 

Justino Yanomami: “O que vocês farão com esse filme?”

Na entrevista ao jornalista Marcio Sallem do portal brasileiro Metrópoles, em maio deste ano, Eryk Rocha considera que o questionamento de Justino pode ainda relacionar-se com “o papel do cinema e a relação dos estrangeiros, os cineastas, que viajam para filmar esse povo. O cinema tem o poder de criar uma imagem de mundo, uma imagem deste povo, e que imagem é esta que estamos criando? O que acontecerá depois quando o filme estiver pronto? Iremos levá-lo para exibição? Então, gosto da provocação, porque a frontalidade do personagem coloca o filme em evidência, e nos tira da zona de conforto”.

Com A Queda do Céu, a dupla de realizadores assume o desafio de traduzir um mundo coletivo, profundamente enraizado na relação simbiótica com a natureza e a espiritualidade, numa linguagem cinematográfica acessível e impactante para públicos externos. Neste aspeto, os cineastas alinham-se com a política diplomática de ampliação de apoios nacionais e internacionais conduzida pelos representantes Yanomami – Davi e o seu filho, Dário Kopenawa, vice-presidente da Associação Hutukara, coprodutora do filme. É sob esta a motivação que foram produzidas grande parte das obras cinematográficas centradas no universo Yanomami.

A visibilidade mediática proporcionada pela exibição destes filmes é aproveitada para sensibilizar a opinião pública para a causa Yanomami, desconstruir preconceitos, fazer apelos urgentes e apresentar a sua visão cosmológica a um público que é desafiado a descodificá-la e, em última instância, a interiorizá-la. Evocando, uma vez mais, a força simbólica do plano inicial do filme, o cinema torna-se um caminho que os Yanomami percorrem com passo firme para estenderem pontes, mas cabe ao público decidir se deseja realmente atravessá-las. Neste sentido, é pertinente ampliar o questionamento do xamã Justino Yanomami com outra pergunta crucial: será que os espetadores não-indígenas, pelo mundo fora, compreenderão realmente a profundidade da luta Yanomami?

Roseane Yariana Yanomami, cineasta colaboradora no filme A Queda do Céu. Foto Aruac Filmes.Roseane Yariana Yanomami, cineasta colaboradora no filme A Queda do Céu. Foto Aruac Filmes.

 

A Queda do Céu estreou na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes deste ano, o que impulsionou um percurso notável que, até ao momento, levou a obra a mais de sessenta festivais em vinte e quatro países, segundo informações divulgadas pela produtora Aruac Filmes. O documentário foi premiado no México, na Coreia do Sul, nos Estados Unidos, no Brasil e em Portugal, onde recebeu o Prémio Legal Partners Direitos e Liberdades do Festival Doclisboa, destinado ao Melhor Filme sobre temáticas associadas aos direitos da Humanidade. Em alguns destes festivais, os Yanomami fazem-se representar por Davi Kopenawa, pelo seu filho Dário ou pelo cineasta Morzaniel Ɨramari, entre outros. Em Cannes, o antropólogo Bruce Albert acompanhou o xamã e os realizadores na apresentação do filme. 

Eryck Rocha é um realizador brasileiro com algumas passagens pelo Festival de Cannes, onde, em 2004, disputou a Palma de Ouro de melhor curta-metragem com Quimera, e, em 2016, recebeu o Prémio Golden Eye para o documentário Cinema Novo. Gabriela Carneiro da Cunha, fundadora da Aruac Filmes em parceria com Rocha, estreou-se na realização com A Queda do Céu, mas antes já havia colaborado com o realizador no filme Edna (2021), com quem dividiu a escrita do guião. No teatro, a realizadora desenvolveu o Projeto Margens – sobre rios, buiúnas e vagalumes, que aborda as catástrofes que atingem os rios Araguaia, Xingu e Tapajós. Este projeto incluiu a peça Altamira 2042, uma performance sobre os impactos desastrosos da Usina Hidroelétrica Belo Monte, no rio Xingu, no Estado do Pará. Em 2021, a peça esteve em cena no Porto e fez parte da programação do Alkantara Festival, em Lisboa. Segundo a realizadora, a pesquisa para este projeto levou-a ao livro A Queda do Céu e à ideia da sua adaptação cinematográfica.

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Durante os sete anos de preparação do documentário A Queda do Céu, os realizadores e a sua equipa desenvolveram, em parceria com a comunidade de Watorikɨ, um trabalho que ultrapassou o âmbito do filme, com o objetivo de fortalecer a produção audiovisual e cinematográfica Yanomami. Em colaboração com a Associação Hutukara, foi criado um banco de imagens com mais de trinta horas de gravação e foram produzidas três curtas-metragens de realizadores Yanomami: Thuë Pihi Kuuwi - Uma Mulher Pensando (2023), e Yuri Uxëa Tima Thë - A Pesca com Timbó (2023), ambas corealizadas por Aida Harika Yanomami, Roseane Yariana Yanomami e o xamã Edmar Tokorino Yanomami; e ainda Mãri Hi – A Árvore do Sonho (2023), de Morzaniel Ɨramari, cineasta Yanomami com outros filmes no seu repertório. Estas curtas foram exibidos em abril passado, em Portugal, no âmbito da Mostra de Cinemas Indígenas do Brasil, Câmara-Corpo, que teve lugar na Culturgest, em Lisboa, e na Escola das Artes da Universidade Católico do Porto. 

Roseane Yariana Yanomami e Morzaniel Ɨramari integraram a equipa do documentário de Cunha e Rocha como operadores de câmara, tradutores e colaboradores na elaboração criativa do filme. Esta parceria reforça a coautoria do filme como obra cinematográfica elaborada com os Yanomami, em vez de ser apenas sobre os Yanomami. 

por Anabela Roque
Afroscreen | 12 Dezembro 2024 | A Queda do Céu (2024), Yanomami