O cinema de Messora e Salaviza com o povo indígena Krahô: “uma mesa farta para todos”
A Flor do Buriti (2024), Crowrã no original, é a segunda longa-metragem que resulta da aliança de cinema entre o realizador português João Salaviza (Lisboa, 1984), a realizadora brasileira Renée Nader Messora (São Paulo, 1979) e o povo indígena Krahô. Esta experiência coletiva de cinema é a parte mais visível de uma relação de amizade, que leva o casal de realizadores a viver longos períodos com os Krahô na aldeia Pedra Branca, onde filmaram Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos (2018). A autoria do guião deste segundo filme, que mistura ficção com o real, é partilhada com dois dos seus principais atores - Ilda Patpro Krahô e Francisco Hỳjnõ Krahô - e com Henrique Ihjãc Krahô, protagonista de Chuva é Cantoria.
A premissa inicial para a construção de A Flor do Buriti era refletir sobre a relação dos Krahô com a terra que habitam, num contexto que continua a ser colonialista, opressor e violento, mas esta foi expandida por um escrutínio da representação feminina na comunidade e nas formas de luta que se impunham pelo agravamento das ofensivas, nos anos em que o filme foi rodado: um período especialmente duro para os povos indígenas devido à pandemia de Covid-19 e ao governo de extrema-direita bolsonarista. Sob estas circunstâncias, a resistência teve que ser, necessariamente, reforçada.
Esta segunda longa-metragem pode ser entendida como uma celebração cinematográfica da força indígena feminina invisibilizada por vários tipos de patriarcados, dentro e fora das diferentes comunidades. Renée Messora disse, num debate em Lisboa, que no novo filme houve “uma mudança de lente” que contraria a ideia muito comum na antropologia de que “o centro [das comunidades e do universo indígena] é um lugar masculino por excelência”. A partilha do quotidiano com as mulheres indígenas da comunidade, a escuta atenta dos seus relatos históricos e um olhar que procurou entender as suas ações transformadoras foram fundamentais para levarem os realizadores a desmontarem narrativamente as imposições de género. Foi necessário “começar a perceber a comunidade e as festas, tudo, a partir de outra perspetiva. É um aprendizado bem longo, demora, não é óbvio, mas está latente. A gente tem que quebrar os automatismos, caso contrário, não aprende nada. (…) Cada vez mais, a gente está percebendo como é preciso olhar de volta para tudo o que foi dito e começar tudo de novo, porque só metade da história foi contada”.
Este olhar direcionado resultou de um processo que procurou configurar a politicidade feminina como explicou Renée Messora ao Buala: “Para mim, é uma busca, talvez dos últimos oito anos, tentar perceber como acontece essa politicidade e como esta atua nos destinos da comunidade. As mulheres não são alheias a nenhuma decisão sobre o que acontece na comunidade, mas para perceber isso precisei de muito tempo nos Krahô, de muita conversa com as minhas amigas e com a mulherada; e perceber também as dinâmicas que se dão nas casas, porque não é uma coisa que está visível à primeira vista”.
Foi através da observação da organização familiar que a realizadora encontrou a brecha para começar a entender a outra metade da história: “Nos Krahô, todo o dia de manhã, no centro do pátio, tem uma reunião onde participam exclusivamente os homens para decidir o rumo da comunidade. (…) O pátio sempre foi chamado de centro da aldeia e as casas de periferia. As casas são o lugar feminino, é o reinado das mulheres. (…) E conversando com amigas antropólogas que trabalham com os Krahô e olhando para o trabalho delas - que sempre buscaram uma interlocução feminina - consegui perceber que a gente não consegue ver o poder que as mulheres têm, simplesmente porque ninguém se deu ao trabalho de olhar com atenção, colocando o foco noutro lugar. Então, comecei a perceber que muitas das decisões que eram levadas para o pátio, na verdade, tinham sido tecidas entre as mulheres, nas casas, e o homem era simplesmente o porta-voz daquele núcleo familiar que é estendido (porque no povo Krahô quando há um casamento, quem muda de casa é o homem). Então tem aquela família matrilinear onde várias filhas vivem juntas - irmãs, primas, etc. – um núcleo no qual os homens não têm laços assim tão estruturados, onde realmente há uma predominância da fala da mulher e essa fala acaba invadido o pátio permanentemente”.
A investida perversa sobre as terras indígenas.
O povo Krahô, constituído por cerca de quatro mil indígenas, vive na Terra Indígena (TI) Krahô, denominada por Kraolândia, localizada no Estado de Tocantins, centro do Brasil. Os Krahô fazem parte dos povos Timbira, que se autodenominam mẽhĩ - o nome Krahô foi dado pelo colonizador. Os povos Timbira falam dialetos da família linguística Jê, da qual faz parte a língua Krahô, o idioma principal de ambos os filmes. As gravações para A Flor do Buriti aconteceram na aldeia Pedra Branca e noutras três aldeias da Terra Indígena: Coprer, Morro Grande e Manoel Alves Pequeno.
A Reserva Indígena Kraolândia foi delimitada, por decreto-lei, pouco depois do Massacre de 1940 e homologada pelo Governo Federal em 1990. As terras classificadas como reserva reduziram o espaço pelo qual circulavam os Krahô anteriormente, mas, ainda assim, correspondem à maior área contínua demarcada no Cerrado, o segundo maior bioma do país, rico em biodiversidade e o berço das águas do país, porque estão aí as nascentes dos rios que alimentam as principais bacias hidrográficas brasileiras (e também de outros países sul-americanos) entre estas, a do Pantanal e grande parte da bacia amazónica.
A TI dos Krahô é uma das áreas preservadas no bioma mais devastado do país. Em 2023, enquanto as atenções se centravam na redução do desmatamento amazónico, o Cerrado sofreu o maior assalto de destruição dos últimos anos. Com mais de um milhão de hectares arrasados, o bioma ficou posicionado no topo da lista do desmatamento no Brasil. Entre outros aspetos, esta destruição representa uma importante ameaça à redução do volume das águas dos seus rios. A situação é especialmente crítica nas áreas de fronteiras entre os Estados, onde operam multinacionais de produção de soja.
É neste contexto que os Krahô defendem as suas terras cercadas e invadidas por madeireiros, fazendeiros e criadores de gado bovino; uma cultura de usurpação estabelecida estruturalmente na sociedade da América Latina que, em grande medida, se deve à passividade das autoridades e à impunidade judicial. Os territórios indígenas são, com demasiada frequência, alvo de diversos ataques, alguns destes perpetuados por milícias rurais ou assassinos a soldo, que continuam a deixar uma extensa lista de assassinatos de defensores da terra, ativistas e ambientalistas.
Os Krahô, como todos os povos originários, sabem que a reivindicação das suas terras é ancestral e permanente, como vemos em várias sequências de A Flor do Buriti, um filme que assume uma importante função nessa luta. Segundo Renée Messora contou ao BUALA, Hỳjnõ Krahô, que faz um trabalho de vigilância do território, “está constantemente a pensar estratégias para proteger a terra indígena, por isso, entende, de forma particular, o potencial que representa a exibição do filme para os não-indígenas, e como este pode ser usado para estabelecer novas alianças ou fazer outras articulações”.
Creuza Prumkwýj Krahô, professora e investigadora que escreve um dos textos que fazem parte da monografia Passagens. O cinema de João Salaviza e Renée Nader Messora - editada pelo Batalha Centro de Cinema do Porto (BCC), em março deste ano – explica a lógica indígena de pertença a um território: “quando a gente fala de território, falamos de toda a vida que existe nele, da preservação da água, da preservação da natureza, dos rios, das matas, da Chapada e também da preservação da nossa cultura. O filme traz um olhar de proteção do território, de proteção dos animais, de proteção de todas as vidas que compartilham o Cerrado connosco” (BCC, 2024. p. 94). Mas a esta relação, da ordem do afeto, do cuidado e da identidade, é inevitável somar-lhe a política como refere Creuza Prumkwýj: “a política tem que vir para defender o território”.
Nos últimos anos, as terras indígenas brasileiras têm sido alvo de uma perversa disputa judicial e legislativa em torno da Tese do Marco Temporal, segundo a qual, o direito constitucional dos povos originários aos territórios só estaria garantido a quem os ocupasse ou os tivesse reclamado na data da promulgação da Constituição Brasileira, 5 de outubro de 1988. A votação desta tese teve início no Supremo Tribunal Federal (STF) em agosto de 2021, momento que é registado pelo filme e que justifica a presença de representantes dos Krahô em Brasília.
Embora em setembro de 2023 o STF tenha declarado esta tese inconstitucional, em Brasília, o Congresso Nacional, reproduziu-a na Lei 14.701/2023 aprovada uma semana depois, restabelecendo os limites temporais para a demarcação previstos na tese. Depois de votada no Congresso, a lei federal passou pelo Senado e, mais tarde, foi vetada, parcialmente, pelo Presidente Lula da Silva. No entanto, a disputa não ficou por aqui: o veto do Presidente foi derrubado pelo Congresso e a lei acabou promulgada pelo Senado.
Atualmente aguarda-se uma nova avaliação desta legislação pelo STF. No passado dia 11 de abril, a Procuradoria-Geral da República pediu a este tribunal que derrubasse a Lei 14.701/2023. Entre outras disposições, a implementação desta lei vem alterar as condições para o uso e gestão de terras indígenas, facilitar a entrada do garimpo, a abertura de estradas e a instalação de equipamentos militares sem a consulta prévia dos povos originários e do órgão federal competente. Ainda em abril, milhares de representantes dos povos originários reuniram-se, de novo, em Brasília, no vigésimo Acampamento Terra Livre realizado sobre o lema “O nosso marco é ancestral. Sempre estivemos aqui”.
Esta batalha política e jurídica é mais uma frente aberta pelos lobbys que cobiçam as terras dos povos originários em diversas geografias. Curiosamente, no livro Passagens, Philippe Descola, antropólogo francês que escreve sobre Chuva é Cantoria ressalta: “os meus amigos e colegas etnólogos, especialistas na Amazónia, disseram todos: este é o primeiro filme que mostra verdadeiramente o que é a Amazónia contemporânea, ameríndia” (BCC, 2024. p. 64). Apesar de ambos filmes terem sido rodados no Cerrado e não na Amazónia, a transposição geográfica de Descola e dos seus colegas (metafórica ou não) não deixa de fazer sentido pela semelhança das ameaças vividas pelos diferentes povos indígenas. Já sem deixar margens a dúvidas, Descola descreve ainda Chuva é Cantoria como uma “pintura tão correta do que é a condição dos Ameríndios, nas terras baixas da América do Sul” (BCC, 2024. p. 69). Essa pintura abrangente está ampliada com mestria em A Flor de Buriti.
O movimento indígena no feminino, da aldeia a Brasília.
A Flor do Buriti oferece uma diversidade de olhares à resistência indígena que atravessa gerações e géneros. O guião do filme contempla desde a perspetiva micro, a do indivíduo que, dentro da sua comunidade, defende o seu território, à macro que agrega os povos indígenas de todo o Brasil, na capital do país, em defesa das suas terras e dos seus modos de existência. Neste quadro narrativo, a luta indígena no feminino ocupa um lugar central, seguindo o impacto que esta tem no atual movimento indígena, uma representação que nunca foi tão forte desde as suas primeiras articulações, na década de 80 do século passado. Renée Messora disse ao BUALA que esta potência impulsionou a conversão do olhar dos realizadores sobre as mulheres indígenas e a sua politicidade.
No filme, Patpro Krahô protagoniza este movimento de resistência ao querer viajar à capital, onde “a mulherada vai se encontrar” para lutar pelo futuro dos povos indígenas: “Temos que o fazer pelas nossas crianças”. Patpro começa por incentivar outras mulheres da comunidade a participarem na vigília de protesto em Brasília, onde em agosto de 2021, representantes de povos indígenas reclamaram a reprovação da Tese do Marco Temporal pelo STF, numa altura em que se iniciava o julgamento que poderia assentar jurisprudência.
Uma vez em Brasília, a atenção de Patpro foca-se na presença feminina: “tem mulheres vindo de todo o lado. Pataxó, Guarani, Xavante, Kayapó… mulherada guerreira, que não tem medo de cupé [não-indígena]. Ainda vamos ver uma delas virar presidente!” diz ao seu tio Hỳjnõ Krahô que a acompanha ao protesto. Patpro sabe que, atualmente, algumas importantes líderes indígenas já fazem parte das instituições governamentais ou da conhecida Bancada do Cocar da Câmara dos Deputados, em Brasília. Uma delas é especialmente admirada nas aldeias Krahô, trata-se de Sônia Guajajara, a atual Ministra dos Povos Indígenas, natural da terra indígena de Araribóia, no Maranhão, estado vizinho de Tocantins.
Antes da sua partida para a capital, Patpro vê um vídeo de Guajajara, então coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), no qual esta defende as terras indígenas frente a deputados não-indígenas: “Não dá para você olhar para nós e pensar que a gente tem o mesmo entendimento de território (…). Para nós o território é sagrado, nós precisamos dele para existir e vocês olham para a terra indígena e chama de terra improdutiva…”. Sônia Guajajara considera que “ser mulher indígena é nascer já em processo de resistência e luta, das aldeias aos espaços institucionais”. Este foi o caminho que percorreu e o que agora inspira outras mulheres, como Patpro.
A mulher indígena também é pajé.
A partir do interesse de descortinar a importância do papel da mulher Krahô na sua comunidade, esta segunda longa-metragem de Messora e Salaviza volta ao tema do poder xamânico, abordado em Chuva é Cantoria, mas desta vez com foco nas mulheres. Em A Flor do Buriti esse poder é protagonizado pela jovem Jotàt (Solane Tehtikwỳj Krahô) que conta com a ajuda do seu tio Hỳjnõ, que é, de fato, um dos pajés Krahô.
A adolescente Jotàt revela um devir xamânico, que é inicialmente encarado pela mãe, Patpro, como um mal-estar. Creuza Prumkwýj Krahô diz sobre Jotàt: “Quando a personagem começa a sonhar, ela está se transformando em wajaca (pajé ou xamã), mas ela não quer, ela tem medo, porque ser wajaca é uma coisa muito séria, muito importante para nós.” (BCC, 2024. p. 94). O receio em assumir a condição de pajé também está presente em Chuva é Cantoria como um dos elementos instigadores da história do jovem Ihjãc.
Numa das cenas de A Flor do Buriti, Kôtô (Raene Kôtô Krahô), mulher indígena da aldeia Pedra Branca e uma das protagonistas do filme Chuva é Cantoria, conta, numa conversa com Patpro, que a sua avó, quando era jovem, quase se tornou pajé, através dos poderes recebidos de uma cobra: “Ela sempre contava essa história para quem quisesse ouvir. (…) Eu já escutei algumas pessoas dizerem que quando as mulheres viram pajés, têm mais poderes que os homens pajés. Elas são mais fortes, podem ver mais coisas que os homens. (…) Nós, mulheres, sempre ficamos com vergonha. Deve ser por isso que poucas mulheres se tornam pajés”.
Renée Messora explicou ao Buala que a curiosidade pela questão das mulheres pajés corresponde a um processo de busca parecido com a investigação da politicidade feminina: “Em determinado momento, a gente ficou muito intrigado por saber se tinha ou não tinha mulheres pajés porque é claro, de novo, o lado mais visível desse universo da pajelança, do wajaca, da cura, era feito pelos homens. Mas foi preciso uma conversa, uma pergunta para a pessoa certa, para eu perceber que é isso: as mulheres, sim, sempre foram pajés! Hoje, na aldeia Pedra Branca, tem mais de uma mulher pajé. Essa história que a Kôtô conta para o Patpro (…), a gente foi resgatar de uma senhora da aldeia, que é muito nossa amiga, e que realmente passou por essa mesma história”.
O desenrolar da trama faz Jotàt transitar entre o passado e o presente dos Krahô, entre o universo espiritual do sonho indígena e a realidade. A jovem revela assim, poderes transcendentais próprios dos pajés ou xamãs, que advêm da capacidade de guardar e preservar a memória, o que é possível, na cosmologia Krahô, através de “um bom resguardo”, práticas de cuidado que fortalecem o corpo e que permitem guardar os ensinamentos, conforme assinala Creuza Prumkwýj Krahô que considera ainda que esse conhecimento, “que não é transparente, que é secreto e partilhado apenas entre os wajaca, está em ambos filmes”. (BCC, 2024. p. 90).
O guião de A Flor do Buriti recorre à experiência metafísica dos sonhos xamânicos para costurar uma narrativa que se afasta propositadamente da construção cinematográfica convencional e, deste modo, se aproxima da cosmologia indígena e da importância da memória coletiva na sua existência. Com Jotàt e Hỳjnõ como intermediários, este dispositivo narrativo permitiu enquadrar importantes momentos da história dos últimos 80 anos do povo Krahô.
“Essa história nunca acaba”.
Com a potência de uma mulher pajé, Jotàt circula entre os jovens indígenas que, nos finais da década de sessenta do século passado, se preparavam para fazerem parte da Guarda Rural Indígena (GRIN). Uma das mulheres alerta que os jovens estavam a ser enganados, que o povo ficaria desprotegido e vulnerável a novos ataques. O aviso desta mãe, que se percebe profético, não demorou a tornar-se um flagelo que atingiu os povos indígenas, num momento de endurecimento da ditadura civil-militar no Brasil.
A GRIN foi uma milícia criada pelo regime, em 1968, que reuniu indígenas de diversas etnias: além dos Krahô, os Xerente, Maxacali, Carajá e Gaviões também fizeram parte desta força militar. Segundo as autoridades, o objetivo era proteger as terras indígenas, mas o propósito efetivo era militarizar os indígenas recrutados, transformá-los em colaboradores da ditadura e agentes ativos no massacre de parentes. Numa entrevista ao jornal Público (março de 2024), Renée Messora assinalou que a abordagem deste momento histórico do passado dos Krahô “foi um movimento que veio acompanhado por um devir da comunidade (…) um processo de reativação da memória coletiva” que surgiu de um encontro, em 2019, na aldeia Pedra Branca, de pessoas que tinham participado na Guarda Rural.
Jotàt também testemunha o Massacre de 1940, a invasão liderada por fazendeiros às aldeias Krahô e que foi um ataque com propósito genocida. A reconstituição cinematográfica - narrada por Hỳjnõ - é a única sequência ficcional gravada seguindo um texto escrito, como João Salaviza faz questão de destacar.
A tragédia – que poderia ter lugar nos dias de hoje - aconteceu “no tempo do velho Rãrãc, e da velha Tõtõc e do velho Cawy” conforme relata Hỳjnõ Krahô ao datar o massacre. “Essa história nunca acaba”, diz o pajé que alerta: “não podemos esquecer (…) muito sangue foi derramado para que a gente pudesse viver aqui (…) Precisamos abrir os olhos e cuidar desta terra”.
O relato do massacre, que tem sido passado entre gerações, não serve apenas de exercício de memória, mas também de força impulsionadora da resistência na luta pela terra. O guião para a narração de Hỳjnõ foi elaborado, em grande parte, a partir das memórias do seu avô, uma das crianças sobreviventes. Hỳjnõ gravou, em 2012, a história do ataque contada por Zacarias Ropkà, pouco antes que este falecera. Esse registo acabou por se transformar numa média-metragem com o título Cupē Te Mē Iquêtjê Jipej Catêjê - Homem Branco Massacrou o Meu Povo Krahô, de Hỳjnõ Krahô e Felipe Kometani Melo (2023), na qual Ropkà descreve, setenta anos depois, como escapou do ataque dos peões dos fazendeiros.
Embora a história do massacre faça parte da memória coletiva do povo Krahô, eram os anciões que guardavam, nos seus corpos, a experiência traumática do ataque. A avó de Creuza Prumkwýj Krahô também era uma criança de dez anos na época e “viu o massacre com seus próprios olhos”. No livro Passagens, Creuza Prumkwýj ressalta: “nós sentimos muita falta desses conhecimentos que se foram com os velhos e que nós não temos mais, por isso é muito especial para nós ver a imagem dos antigos, contar a história deles” (BCC, 2024. p. 97). Prumkwýj aponta-nos assim a importância do cinema na recuperação da memória. Noutro texto da mesma publicação, a realizadora portuguesa Joana Pimenta refere-se ao cinema de Messora e Salaviza como “jogo político”, precisamente pela possibilidade da encenação da memória - oportunidade dos Krahô criarem as suas imagens e contarem a sua história - o que segundo a cineasta, também é uma forma de fazerem frente à violência cíclica exercida sobre eles. (BCC, 2024. p 87).
A coexistência no cinema e na vida.
A Flor do Buriti foi elaborado a partir de um processo coletivo com os Krahô que aprimora o método seguido em Chuva é Cantoria. À parte da partilha da autoria do guião com os atores (não-profissionais) já mencionados, muito outras pessoas da comunidade trouxeram para a narrativa as suas histórias, diálogos ou outro tipo de contribuições. Segundo João Salaviza, num dos textos de apresentação da longa-metragem, a proposta foi no sentido de trabalhar com “uma construção aberta que faríamos enquanto estivéssemos a filmar” com a ideia de criar “um filme que pudesse viajar pelos tempos, pelas memórias, pelos mitos, com a terra como espinha dorsal”.
No processo de interpretação de si próprios, os atores indígenas contribuíram para a escolha do melhor modo de representação da sua própria história, no que Renée Messora descreve ao BUALA como “a forma Krahô” que determinou a maneira de filmar consoante a sequência ou plano: “Eu acho que a nossa forma de filmar, ela está sendo cada vez mais impregnada de um certo devir Krahô, se é que dá para falar nesses termos. Eu sinto que a gente tem conseguido cada vez mais desapegar de uma forma antiga de fazer cinema - mais clássica - e se apropriar de um sentimento compartilhado com os mẽhĩ [Krahô] de como as coisas devem ser feitas. A premissa para gravar uma sequência é uma premissa compartilhada, nunca imposta por nós. A gente consegue permanentemente entrar num acordo de como as coisas vão ser feitas. Não me interessa produzir uma imagem com a qual os Krahô não estejam confortáveis. Cada vez mais essa ideia é importante para nós. (…) A gente gosta de pensar no cinema como um ritual, um lugar-comum de atuação, onde cada interveniente tem o seu papel e aquilo só funciona quando todo o mundo está entendendo e caminhando para o mesmo rumo”.
Os dois filmes de Messora e Salaviza são resultado da convivência com os Krahô, que no caso de Renée data de 2009 e do João de 2014. Os cineastas têm a sua família indígena e desta receberam os seus nomes indígenas. Na comunidade, João é conhecido pelo nome de Wýhwý e Renée por Patpro. A realizadora conheceu a atual protagonista e guionista de A Flor do Buriti, quando esta, com 15 anos, fazia parte do coletivo audiovisual Mentuwajê Guardiões da Cultura, na aldeia Pedra Branca. Hoje, Patpro é a amiga indígena mais próxima à cineasta; partilham casa quando o casal de realizadores está na aldeia e toda a sua família é a deles. Na antestreia do filme A Flor do Buriti na Cinemateca em Lisboa, em março passado, Renée disse que Patpro foi quem lhes ensinou “o real significado de ser Krahô”.
A rede de afetos estabelecidos na comunidade e o lugar que os realizadores ocupam nela, como aliados, extrapola o âmbito cinematográfico: compartem vivências quotidianas, projetos e colaboram na resposta aos problemas que o povo enfrenta. A potência dessa proximidade, cultivada ao longo dos anos, amplia os significados na obra de Messora e Salaviza com os Krahô.
No livro Passagens, a realizadora paraguaia Paz Encina refere-se assim aos dois filmes produzidos pela dupla de realizadores: “são muito o resultado de um trabalho de observação paciente, respeitoso e amoroso, mas também resultam da partilha, não são filmes que advêm somente de olhar para o outro, são filmes que nascem da compreensão do outro e da compreensão, no final das contas, de que as suas histórias são as nossas também. São filmes que deixam entrever uma amizade. A câmara e o som foram feitos por amigos, pelos amigos dos Krahô, [a equipa não-indígena era muito reduzida] e captam situações que somente podemos captar a partir de uma proximidade e fazendo as coisas em conjunto.” Paz Encina escreve ainda que ambos os filmes nos deixam “simplesmente perante a vida, que é observada, que é olhada, e também amada”. (BCC, 2024. p.31)
Na conversa com o BUALA, Renée Messora disse-nos que pensa o cinema que fazem com os Krahô “como a nossa roça [horta] na aldeia: a gente levas as ferramentas, os mẽhĩ trazem as sementes e trabalhando direitinho aquilo vai ser uma mesa farta para todo o mundo e é uma mesa farta de reflexões, de processos, de encontros, de caminhos. (…) Esse processo não tem fim, ele é infinito, vai-se revigorando e encontrando outras formas. Eu acho que a nossa ideia é estar sempre percebendo, com o coração aberto, com o olho no lugar certo, como dizem os Krahô, para poder sentir o jeito de continuar filmando”.
Ambas as obras da dupla de realizadores com os Krahô inserem-se no que Cláudia Mesquita, professora da Universidade Federal de Minas Gerias e pesquisadora de cinema, define como filme-processo, porque ao relacionar-se com a experiência vivida, é “por ela limitado, estimulado, transformado, conformado ou até mesmo expandido, potencializado. As obras em processo convocam experiências em que confluem cena e vida, em que as divisórias são porosas, em que o controle sobre a cena nem sempre é possível, em que o filme está a serviço ou inventa, no corpo a corpo com experiências que não domina totalmente, o seu singular movimento.” (Debate Obra em processo ou processo como obra? na Mostra Cinema Brasileiro. Anos 2000, 10 Questões. Centro Cultural Banco do Brasil, 2011.)
Neste processo de elaboração é importante recordar a duração estendida das rodagens - na primeira longa-metragem as gravações decorreram durante 9 meses e nesta segunda chegaram a 15 meses – assim como a opção de gravar em película de 16mm. Renée Messora contou-nos ainda que, para A Flor do Buriti, foram alinhando a montagem ao longo desses meses, numa partilha de decisões estéticas com os Krahô, de modo que estes conhecessem o rumo que o filme estava a tomar: “Por exemplo, quando a gente filma o espírito do Hỳjnõ saindo do corpo dele, no momento que ele dorme, a gente vê essa imagem com ele para perceber se esta se adequa à ideia dos mẽhĩ desse mundo que acontece quando uma pessoa dorme e o mecarõ, que é o espírito, sai e vai viver outra coisa - não é um sonho, é simplesmente uma outra forma de realidade. Então a gente vai entendendo essas coisas todas, juntos, durante o processo. Para a gente isso é muito importante”.
O nascimento de mais um indígena Krahô, um dos momentos mais significativos do filme, é outro bom exemplo do processo de criação conjunta e do devir Krahô mencionado por Messora: “A gente tinha tudo pensado para filmar essa sequência com a Wỳj (Luzia Cruwakwỳj Krahô), que estava grávida (…) e aí quando finalmente ela pariu, numa madrugada, a gente não conseguiu filmar o parto. Então, ela decidiu que a gente reencenaria esse parto, exatamente como tinha acontecido, dois dias antes. Ela pediu para só estarem mulheres na casa. Estava eu, a Patpro e a Angela dentro, mas ela convocou todo o seu núcleo familiar que tinha, de fato, feito o parto: a sua mãe, a sua avó e algumas outras mulheres. E assim a gente filmou a cena, que foi basicamente dirigida por ela, porque ela é que falou como tinha ficado, qual a ordem dos acontecimentos. E ela foi a primeira pessoa para quem a gente mostrou a cena montada, para entender o que ela sentia, se estava contente”.
A obra conjunta de Messora, Salaviza e os Krahô não deixa de fazer parte da dinâmica diplomática que vem estabelecendo alianças cinematográficas, cada vez com mais frequência, entre indígenas e não-indígenas, mas a sua especificidade está na simbiose alcançada pelo seu cinema que é, também, cinema indígena, na medida em que se potencializa pela forma Krahô de se autorrepresentar.
Este alcance é um dos elementos primordiais que engendra o amplo reconhecimento que, tanto Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos como A Flor do Buriti, tem somado em diferentes geografias, com prémios e distinções, entre as quais a estreia mundial no Festival de Cinema de Cannes, na secção Un Certain Regard, onde ambos os filmes foram distinguidos, o primeiro com o Prémio Especial do Júri, o segundo com o Melhor Prémio de Elenco e Equipa (Prix D’Ensemble).
O Júri do Festival de Cannes justificou a distinção de A Flor do Buriti pelo “extraordinário tributo à capacidade de resiliência daquele povo indígena e à sua luta pela liberdade”. E essa luta não foi interrompida pelo glamour do tapete vermelho do festival. No habitual desfile à imprensa internacional, a equipa do filme – os realizadores, os atores Cruwakwỳj Krahô, Hỳjnõ Krahô e Débora Sodré, o guionista Ihjãc Krahô, os produtores Ricardo Alves Jr. e Júlia Alves, a diretora de arte Ángeles Frinchaboy, entre outros - seguravam uma faixa onde estava escrito: “O futuro das terras indígenas brasileiras está ameaçado. Não ao marco temporal.”
Na sessão da antestreia de A Flor do Buriti na Cinemateca, antes do início da exibição, os realizadores e um casal de atores posicionaram-se numa lateral do palco, desde onde alguns deles apresentaram o filme, mas no momento de Hỳjnõ Krahô falar, este deslocou-se para o centro do palco, num reposicionamento conforme à estratégia indígena de assumir a centralidade e contrariar a invisibilidade contra qual lutam os povos originários. Na sua breve intervenção, o pajé recordou ao público português “nós temos que lutar por vocês”, numa alusão à emergência climática e à importância dos guerreiros e guerreiras indígenas na linha da frente da defesa de territórios e biomas vitais para a vida no planeta, a casa comum.
Referindo-se ao filme, Hỳjnõ Krahô terminou a sua intervenção com a frase “Quem entender, entenderá, quem não entender, não entenderá”. A possibilidade de descoberta e entendimento de A Flor do Buriti começou a 19 de março em Portugal e no dia 1 de maio em setenta salas francesas. A exibição do filme no Brasil está prevista a partir de 4 de julho.