A Amazónia paga um preço imensurável pelo seu ouro. Parte II
Os povos indígenas apelam para uma luta coletiva contra o garimpo ilegal.
“Se a terra-floresta estiver seca, se estiver moqueada, se estiver queimada, nós não existimos. Se a floresta estiver padecendo, eu também sofro. Se a floresta apodrece, eu também fico com feridas, com cicatrizes. Se a floresta queimar, minha pele fica também enrugada” declara Davi Kopenawa, líder Yanomami, no filme Escute: A Terra Foi Rasgada (2023) da dupla de realizadores Cassandra Mello e Fred Rahal.
Dividido em três atos, o documentário apresenta o ponto de vista indígena de três povos amazónicos de origens geográficas e vivências históricas diferentes: os Yanomami, localizados nos Estados de Roraima e Amazonas, os Munduruku e os Mẽbêngôkre (Kayapó) no Estado do Pará (PA). Estes povos uniram-se para criar a Aliança em Defesa dos Territórios, com o objetivo de enfrentar colectivamente os desafios críticos impostos pelo garimpo ilegal nas suas terras.
Embora esta atividade remonte à época colonial, a exploração de ouro tornou-se intensiva na Amazónia, contribuindo para o processo contemporâneo de invasão e destruição do bioma. Os danos atingem com maior gravidade os povos originários, que veem os seus modos de vida tradicionais desestruturados, os rios e solos contaminados e a floresta devastada, comprometendo assim as suas fontes de alimentação, o que coloca em risco a saúde das comunidades. Além disso, outras preocupações emergem, como o aumento da violência e da criminalidade nos territórios, a exploração sexual de mulheres e meninas indígenas, a propagação doenças infeciosas e o aliciamento de grupos de indígenas que, por vezes, acabam por colaborar com os criminosos envolvidos no garimpo.
[Juarez Saw Munduruku, Davi Kopenawa Yanomami e Betyktire Mekragnoti Kayapó]
Embora a Aliança em Defesa dos Territórios seja frequentemente assinalada como um marco histórico na luta indígena e como uma articulação inédita de forças, Maial Paiakan Kayapó, importante representante do seu povo e atual porta-voz da Aliança, ressalta no documentário Escute: A Terra Foi Rasgada que “esta é uma aliança ancestral (…) porque os nossos pais, os nossos avôs, eles fizeram isso também [se uniram]. E a gente está dando continuidade à proteção da nossa terra, porque os espíritos são os guardiões da terra. E a gente está aqui, como meio, para proteger mais ainda”.
Os povos nativos lutam, há décadas, contra a exploração ilegal do ouro nos territórios indígenas (TIs) da Amazónia brasileira, mas a sua propagação nos últimos anos, impôs a necessidade de criar esta frente comum, unindo as etnias mais afetadas. Davi Kopenawa foi um dos líderes impulsionadores da proposta. No seu novo livro O Espírito da Floresta (2023), escrito em parceria com o antropólogo francês Bruce Albert e publicado pela Companhia das Letras, o xamã Yanomami assume que o seu maior temor é o crescente cerco dos garimpeiros e das mineradoras às comunidades. Este sentimento é compartilhado pelos líderes de outros povos indígenas da Amazónia que, assim como os Yanomami, testemunham a degradação severa provocada por esta atividade, proibida nas suas terras.
O garimpo ilegal expandiu-se nas terras indígenas e nas unidades de conservação da Amazónia, incentivado pelo apoio direto e indireto do governo bolsonarista, bem como pela subida internacional do preço do ouro, resultante da pandemia de Covid-19. Esta situação gerou inúmeros protestos e denúncias reiteradas, culminando na divulgação de uma Carta-Manifesto que reafirma a oposição indígena a esta atividade, descrita como “uma doença que os brancos levam para dentro dos territórios”.
A Carta-Manifesto, assinada pelos povos Yanomami, Ye’kuana, Kayapó, Xikrin e Munduruku durante o Acampamento Luta Pela Vida, realizado em Brasília, em agosto de 2021, foi o primeiro passo para a criação da Aliança em Defesa dos Territórios que, por sua vez, impulsionou a elaboração do relatório Terra rasgada: como avança o garimpo na Amazônia brasileira (2023) e do documentário Escute: A Terra Foi Rasgada, projetos concretizados em parceria com a Teia Documenta e o Instituto Socioambiental.
No documentário, uma diversidade de vozes indígenas - mulheres e homens de diferentes gerações – expõe, maioritariamente nos seus próprios idiomas, as suas vivências e as estratégias para combater a intrusão garimpeira. As palavras de Noêmia Yanomami, da região Maloca Paapiú, no TI Yanomami, inspiraram os títulos do relatório e do filme. No documentário, Noêmia descreve o cerco garimpeiro do seguinte modo: “Eles não se escondem. Eles ficam bem evidentes. Eles estão muito próximos, por isso estou com medo. A floresta fica muito suja. O lixo dessa gente fica muito próximo. Estou preocupada com o lixo. (…) A terra está rasgada. Minha floresta já acabou. Minha terra acabou verdadeiramente”.
É precisamente este avanço sobre as aldeias e comunidades Yanomami que preocupa Davi Kopenawa. Embora na aldeia Watorikɨ, na região do Demini, onde vive com os seus parentes, não haja exploração de ouro, é de lá que o xamã Yanomami gere a proteção do seu povo, do povo Ye’Kuana e dos grupos indígenas isolados que habitam o TI Yanomami. Entre estes grupos estão os Moxihatëtëma, também conhecidos como Isolados da Serra da Estrutura, que têm vivido cercados pelo garimpo na região de Catrimani-Mucajaí, próximo à nascente do rio Apiaú.
Na publicação Cerco e Resistências. Povos Indígenas Isolados na Amazônia Brasileira (2019), Kopenawa descreve o perigo genocida a que os grupos isolados estão expostos: “Os [Moxihatëtëma] nos protegem, assim como nós os protegemos. (…) Eles estão nos protegendo ao fazerem os garimpeiros não chegarem perto. (…) Por isso estou muito preocupado com eles. Eu não queria que eles morressem sozinhos, morressem sem saber… Sem ver quem um dia matou eles. É o garimpeiro que mata. (…) Porque garimpeiro vai longe, anda muito na beira do rio até chegar na montanha, vai procurar ouro na montanha” (Pág.65).
Os povos indígenas querem narrar as suas próprias experiências.
Os realizadores de Escute: A Terra Foi Rasgada explicaram à jornalista Carolina Conto, do portal de informação Mongabay, que a ideia de fazer o documentário foi uma sugestão dos indígenas. Fred Rahal relata que tudo começou de forma inesperada: “Fomos, em princípio, registrar a reunião inaugural da Aliança e, neste encontro, eles nos disseram que a forma com a qual gostariam de contar a constituição dela seria por meio de um filme”. Segundo a realizadora, Cassandra Mello, os representantes indígenas indicaram os temas que desejavam ver abordados: “Entregámos algumas perguntas, sobre o que gostariam e o que não gostariam de ver na tela, e adotamos as respostas deles como uma cartilha, que seguimos à risca”.
Mello e Rahal, realizadores com experiência em abordar questões ambientais e humanitárias, demonstraram uma sensibilidade particular para com a cultura ameríndia, ao respeitar e compreender com profundidade a perspetiva indígena proposta para este documentário.
No primeiro ato, o filme explora a relação de cada um dos três povos aliados com a terra-floresta, destacando tanto os seus aspetos objetivos como subjetivos. A intenção é reafirmar esta conexão, apresentando a terra não como um objeto de posse material, mas como uma entidade sagrada e também como “mãe, irmã, casa”, conforme menciona Davi Kopenawa no documentário. No segundo ato, intitulado “Terra do Avesso”, o documentário traz os depoimentos que descrevem os problemas comuns aos três povos. A narrativa culmina no terceiro ato com a celebração da Aliança pelos líderes indígenas reunidos na aldeia Watorikɨ, onde, em maio de 2022, se comemoraram os trinta anos da demarcação da TI Yanomami.
A importância de produzir este filme, que estreou na 12ª Mostra Ecofalante de Cinema 2023, em São Paulo, é resumida no início por Dário Kopenawa, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami. Dário destaca a importância de exibir internacionalmente a realidade que enfrentam, descrevendo o documentário como um registo “histórico valioso, de carácter simbólico”, que mostra “que estamos vivos e que somos guerreiros”. Tal como o seu pai, Davi Kopenawa, Dário está interessado em que as próximas gerações conheçam tanto as ameaças que defrontam como a resistência que exercem. O seu pai sublinha frequentemente esta preocupação com as novas gerações, como um dos incentivos para se envolver nas diversas produções cinematográficas realizadas sobre o seu povo, que já constituem um repertório significativo.
Desta vez, a proposta cinematográfica inclui as três etnias aliadas, cujas experiências são, de certa forma, vivenciadas por muitos outros povos amazónicos. O filme apresenta os impactos do garimpo ilegal nos territórios Yanomami, Munduruku e Kayapó, através da escuta das vozes daqueles que os defendem. Estes protagonistas tomam a palavra para entrelaçar a indignação e a denúncia com estratégias de defesa e promessas de continuidade da resistência coletiva. O discurso é direto e incisivo, como o de uma mulher Munduruku, não identificada, que afirma: “Espero que não apaguem o que eu vou falar, pois, antigamente, este tipo de fala era respeitada. Representava algo forte. Então, pretendo falar aqui com esse objetivo”.
A preocupação desta mulher em garantir que o seu depoimento seja respeitado pode ser compreendida no contexto da luta pelo reconhecimento do saber ancestral, mas também como uma defesa contra as tentativas de descredibilização que os indígenas sofrem, com frequência, quando denunciam a presença dos garimpeiros e a disrupção que estes causam. Em qualquer dos casos, Escute: A Terra Foi Rasgada é um filme pensado com o objetivo de responder a ambas preocupações.
A atual crise humanitária Yanomami e outras que se adivinham.
Nos testemunhos filmados em 2022 para o filme Escute: A Terra Foi Rasgada, os indígenas Yanomami relatam fragmentos de uma situação crítica que, no início de 2023, foi reconhecida como crise humanitária sem precedentes na atualidade amazónica, com dimensões de genocídio. A situação foi tornada pública pelo site informativo Sumaúma: Jornalismo do Centro do Mundo, que publicou a primeira reportagem a 20 de janeiro, detalhando a gravidade do cenário como emergência pública. O título do texto já refletia o desespero vivido pelos Yanomami: “Não estamos conseguindo contar os corpos”. Os dados apresentados na reportagem anunciavam uma tragédia desmedida: a morte de quinhentas e setenta crianças indígenas nos quatro anos anteriores, período que coincide com o do governo de Bolsonaro.
As crianças Yanomami foram as mais afetadas pelas doenças que assolaram a população, sobretudo a malária e dengue, cuja propagação foi provocada pela presença das explorações garimpeiras, responsáveis pelo desequilíbrio social e ambiental nas áreas envolventes. O flagelo foi potencializado pelo desmantelamento das estruturas de saúde e de vigilância do território, incluindo algumas da Funai, atualmente denominada Fundação Nacional dos Povos Indígenas, entidade que sofreu, nesse mesmo período, mudanças que resultaram num enfraquecimento significativo da proteção às comunidades indígenas.
As mortes foram consideradas “evitáveis”, uma vez que resultaram de doenças que têm tratamento. A mesma reportagem do site Sumaúma sublinhava ainda que o número real de óbitos pode ter sido superior, mas devido ao “apagão estatístico ocorrido durante o governo de extrema-direita”, não é possível determinar o número exato da tragédia. Este genocídio, que alcançou repercussão internacional através da comunicação social, motivou uma ação imediata coordenada pelo governo federal, no início do mandato do Presidente Lula da Silva. A campanha mobilizou várias autoridades públicas para apoiar a população Yanomami e acabar com as explorações clandestinas na região.
As operações continuam em curso quase dois anos depois, uma vez que a situação está longe de estar controlada. Em junho de 2023, durante um debate realizado por ocasião do lançamento do documentário Escute: A Terra Foi Rasgada, Davi Kopenawa relembrou ao público da Mostra Ecofalante de Cinema: “Nós estamos passando fome porque o garimpo contaminou nossos rios e não podemos mais pescar. Nós não precisamos que enviem comida, precisamos que nossas terras sejam protegidas”.
A proteção integral das terras indígenas exige medidas como o bloqueio de estradas, a destruição de pistas de voo clandestinas, a inutilização de máquinas de grande porte utilizadas nas explorações, a interrupção do acesso às redes de internet e, particularmente, o aumento da fiscalização com a intervenção de agentes de segurança pública. Trata-se, portanto, de um processo que envolve uma logística complexa, exigindo operações em zonas remotas e de difícil acesso que, por essas razões, devem ser desenvolvidas e executadas de forma coletiva, coordenando as autoridades com as populações locais.
Embora a retirada dos garimpeiros tenha paralisado algumas das explorações no TI Yanomami, os danos no território persistem, com potencial para gerar novas crises. A contaminação por mercúrio de alguns rios do TI, identificada há praticamente uma década, gesta um outro flagelo que pode atingir grandes proporções, uma vez que os sintomas deste envenenamento podem demorar meses ou até anos a manifestar-se. Esta situação é apresentada no filme Amazônia, A Nova Minamata?, de Jorge Bodanzky (2022), que aborda a região do rio Tapajós (PA), onde se localizam os municípios de Itaituba e Jacareacanga, bem como o TI Munduruku, onde foram detetados níveis alarmantes de mercúrio no sangue e no cabelo dos indígenas das suas comunidades. https://www.buala.org/pt/afroscreen/o-transe-amazonico-em-diferentes-tempos-e-lugares-na-cinematografia-de-jorge-bodanzky
Em agosto deste ano, a revista Toxics publicou dados preocupantes que revelam que quatro bacias hidrográficas amazónicas estão altamente contaminadas por mercúrio. À bacia do rio Tapajós, somam-se as do rio Xingu (PA), a do Mucajaí e a do Uraricoera, em Roraima. No passado 31 de outubro, um estudo da WWF-Brasil atualizou a gravidade da contaminação da bacia do Uraricoera, o maior rio que atravessa o TI Yanomami e a principal via fluvial utilizada pelos garimpeiros, assinalando que a situação é particularmente crítica em setes rios e três afluentes.
A contaminação da bacia hidrográfica amazónica por mercúrio é uma crise ambiental e de saúde pública que é pan-amazónica; existe onde o garimpo ilegal está presente. No Peru, a situação é igualmente grave em vários rios, como documenta o filme Pisar Suavemente na Terra (2022), realizado pelo brasileiro Marcos Colón, com coprodução executiva do médico neurocirurgião paraense Erik Jennings, também protagonista do filme Amazônia, A Nova Minamata?.
No documentário Pisar Suavemente na Terra, José Manuyama, indígena de origem Kokama, guia-nos até à bacia do rio Nanay, um afluente do rio Amazonas, que fornece água à cidade de Iquitos, a maior metrópole da Amazónia peruana, com cerca de meio milhão de habitantes. Manuyama integra o Comité de Defesa da Água e conhece profundamente os riscos da contaminação por mercúrio. O seu ativismo ambiental centra-se, entre outras iniciativas, na denúncia das dragas que poluem o rio Nanay.
Noutra região da Amazónia peruana, no estado de Madre de Dios - epicentro do garimpo ilegal no país -, esta atividade já comprometeu drasticamente os ecossistemas do rio que dá nome ao estado. Em 2017, estimava-se que cerca de 181 toneladas de mercúrio eram despejadas nas águas deste rio, causando uma extensa crise ambiental.
Os garimpeiros violam as mulheres e as meninas indígenas.
Na reportagem sobre a crise humanitária Yanomami, publicada no site Sumaúma, referida anteriormente, chama-se a nossa atenção para o fato das imagens que a ilustram terem sido “feitas por indígenas e profissionais de saúde que conseguiram vencer a barreira do garimpo criminoso.” Esta barreira corresponde às áreas nas quais garimpeiros e integrantes das redes de tráfico de drogas, numa junção conhecida como “narcogarimpo”, impõem uma espécie de cordão de segurança para vetar o acesso às explorações e terras adjacentes. “Os invasores se apropriam do território de forma semelhante às milícias e facções criminosas da Baixada Fluminense [no Estado do Rio de Janeiro] e de outras regiões dominadas em grandes cidades”, segundo exemplifica uma outra reportagem do mesmo site, dedicada ao TI Munduruku, publicada em fevereiro de 2023.
Numa demostração clara de que os problemas causados pelo garimpo ilegal são comuns a diferentes geografias, Maial Kayapó não hesita em apontar esta atividade como crime organizado, num dos seus depoimentos em Escute: A Terra Foi Rasgada: “É uma rede muito maior do que a gente imagina, com pessoas muito perigosas. Então, como garantir a segurança para os líderes, para as mulheres indígenas?”.
Os garimpeiros e os seus cúmplices não só violam o corpo da floresta, como também violentam os corpos das mulheres e das meninas indígenas, alvos de exploração sexual infantil, uma tragédia amplamente delatada durante a crise humanitária Yanomami. No mais recente relatório Violência contra os povos indígenas no Brasil do Conselho Indigenista Missionário, que apresenta dados referentes ao ano de 2023, o Conselho Indígena de Roraima denuncia que, pelo menos, trinta meninas e adolescentes Yanomami ficaram grávidas de garimpeiros durante o ano passado. Este é um flagelo comum a outros territórios afetados pela atividade garimpeira.
No filme Escute: A Terra Foi Rasgada, uma mulher kayapó, não identificada, enaltece a presença feminina no debate sobre a criação da Aliança e chama a atenção para a necessidade de discutir os problemas que as afetam: “Se ficarmos paradas, quem nos vai defender? (…) Nós mulheres também temos que falar. (…) Estou muito feliz com as parceiras que encontrei aqui, as parceiras que têm a voz e uma luta muito fortes. (…) juntas, podemos fortalecer a nossa voz”.
Entre as mulheres que debatem a constituição da Aliança em Defesa dos Territórios encontrava-se Tuíre Mẽbêngôkre (1970-2024), líder histórica do povo Kayapó e ativista ambiental. A indígena foi uma voz de referência desde que, no final da década de 1980, iniciou a sua luta contra a Usina Hidroelétrica Kararaô, hoje Usina Hidroelétrica Belo Monte, inaugurada em 2016, no rio Xingu (PA). Com o olhar fixo na câmara, Tuíre, em tom imperativo, diz: “Muita terra já foi destruída, está vermelha, apenas uma pequena parte está boa ainda. Isso não está certo! Eu não gosto dessa terra vermelha, não gosto! Você, jornalista, escute isso! (…) Você tem que mostrar minha fala para esses brancos que querem madeira, que querem garimpo, que ainda não me conhecem. Vocês vão divulgar minha fala para todo lugar (…) para as pessoas conhecerem, respeitarem a floresta, respeitarem a terra e respeitarem nossos corpos”.
A pressão do garimpo para romper a coesão das comunidades indígenas.
No documentário de Cassandra Mello e Fred Rahal, Maurício Ye’Kwana, da região do afluente do rio Auaris, em Roraima, relembra como, na sua infância, os garimpeiros chegaram à sua aldeia prometendo dar-lhes apoio, uma estratégia para enganar os mais velhos, responsáveis por tomar as decisões comunitárias. Outros líderes indígenas, como Dário Kopenawa, relatam que a pressão dos garimpeiros é tão intensa que até os seus próprios parentes acabam por se envolver na atividade, forçando crianças a trabalhar para eles. O líder Kayapó, Dotô Tàkàk’ire Mẽbêngôkre, aponta que, no seu território, os políticos locais têm incitado os seus parentes a envolverem-se no garimpo ilegal. Esta situação rompe profundamente os valores tradicionais e provoca conflitos violentos intracomunitários.
A Carta-Manifesto, atrás referida, salientava que a divisão dos povos indígenas é uma das principais estratégias utilizadas pelos defensores da exploração do ouro: “O governo [de Bolsonaro] tenta nos dividir, mas é apenas uma minoria entre os indígenas que apoia essas atividades, sem saber que estão ajudando a destruir seu próprio povo”.
A divisão promovida pelos garimpeiros e seus representantes está documentada no filme Amazônia, a Nova Minamata?, que inclui imagens de uma manifestação de indígenas pró-garimpo na cidade Jacareacanga, onde se protesta contra as operações de destruição das explorações auríferas ilegais na região. Estes grupos permitem a atividade nas suas terras em troca de uma percentagem na venda do ouro, entre outras compensações.
No filme de Bodanzky, Gustavo Geiser, da Policia Federal, aponta outra causa que motiva a adesão à atividade mineira. De acordo com Geiser, a própria devastação ambiental causada pelo garimpo torna as comunidades, que antes viviam de forma autónoma, mais vulneráveis, uma vez que são privadas da natureza como meio de subsistência. Assim, alguns grupos de indígenas acabam por se encontrar numa relação de dependência: “os que aceitaram a entrada dos garimpeiros, hoje são seus reféns. Eles não têm outra forma de subsistência; continuam sendo explorados e, muitas vezes, até defendem os garimpeiros, o que é um problema mais quando a gente fala em combate”.
Alesandra Korap, líder indígena e ativista socio ambiental, natural de Itaituba e a primeira mulher a presidir a Associação Indígena Pariri, que representa treze aldeias Munduruku no Médio Tapajós, confirma a divergência entre indígenas no documentário Amazônia, a Nova Minamata?. Korap relata que os garimpeiros aliciam as populações com ofertas de combustível e de cesta básica (bens de alimentícios): “(…) Então os parentes acham que o único meio [de subsistência] é que o garimpeiro esteja lá. Os outros parentes, que são contra, dizem que não, que está errado. (…) A situação piorou quando o próprio Presidente [Bolsonaro] começou a falar que o indígena tem que ter direito a ter garimpo nas terras indígenas, e aí começaram as ameaças”.
Por defender o território Munduruku da exploração de ouro, Alesandra Korap sofre ameaças constantes, tal como Maria Leusa Munduruku, no Alto Tapajós. Nos últimos anos, Maria Leusa, atualmente coordenadora da Associação das Mulheres Munduruku Wakoborũn, também tem estado na linha da frente da luta contra esta atividade clandestina e, por isso, também corre risco de vida.
Conforme descreve a escritora e jornalista Eliane Brum no livro Banzeiro Òkòtó, Uma Viagem à Amazônia Centro do Mundo (Companhia das Letras, 2021), “a determinação de [Maria Leusa] levou seus inimigos a botar um preço pela sua cabeça: 100 gramas de ouro” (Pág. 40). Numa das declarações da líder indígena citadas por Brum, Maria Leusa explica que as mulheres Munduruku estão na linha da frente porque perceberam “que os homens confiam demais nas autoridades. E também aceitam dinheiro fácil. É verdade que a mineração dá mais dinheiro, mas estamos mostrando a eles que a mineração destrói o futuro dos nossos filhos”.
No segundo ato do filme Escute: A Terra Foi Rasgada, durante a discussão sobre a criação da Aliança em Defesa dos Territórios, Maria Leusa afirma: “A região de Jacareacanga e Itaituba é só garimpeiro! A gente perdeu totalmente a nossa liberdade. Eu fui uma das pessoas que foi mais atacada. Queimaram nossas casas. [Em maio de 2021, a casa onde vivia foi incendiada por indígenas Munduruku pró-garimpo, com a ajuda de não-indígenas, conforme apontou a investigação da Polícia Federal]. Eu hoje não vivo na minha aldeia. Eu estou num lugar isolado e está sendo muito difícil para mim, mas eu não desisti e contínuo na luta”.
No documentário, Alesandra Korap e o Cacique Juarez Saw da comunidade Munduruku, Swaré Muybu, cujo território foi recentemente demarcado, reforçam a visão de que a maior riqueza não está no ouro ou nos minérios, mas sim na vida, na união e no futuro das comunidades. A resistência indígena é coletiva, como lembra o Cacique Juarez: “Entre nós não deve prevalecer qualquer tipo de individualismo; devemos lembrar que todos temos o mesmo sangue, o mesmo rio e a mesma floresta. Todo mundo tem que falar em uma só voz e numa decisão coletiva. Essa será a nossa força”.
O garimpo ilegal continua a abrir novas explorações.
Desde o início de 2023, as ações de destruição das explorações auríferas nos TIs têm ocorrido de forma sistemática e coordenada. Só em setembro deste ano, as autoridades realizaram mais de duas mil operações de combate à atividade predatória. No entanto, em outubro, a Greenpeace alertou para o fato de o garimpo ilegal continuar a abrir novas feridas na floresta e a dragar os rios: novas explorações foram identificadas entre julho e setembro nas terras Yanomami, Kayapó, Munduruku e Sararé. Segundo imagens de satélite, o perímetro do desmatamento nas novas áreas chega aos 505 hectares, sendo o território o Kayapó o mais afetado entre os quatro.
Ainda de acordo com a publicação da Greenpeace, para abrir novas áreas, os garimpeiros incendiaram a floresta no TI Kayapó, que, em setembro, liderou o ranking das terras mais atingidas por incêndios florestais em 2024 no Brasil.
Precisamente devido a estes retrocessos, Davi Kopenawa destaca, no documentário Escute: A Terra Foi Rasgada, a importância de continuar a denunciar e a construir alianças, não só com outros povos originários, mas também com parceiros não-indígenas, tanto no Brasil como fora: “Pessoal não fiquem tristes. Nós ainda estamos vivos. Não é hora de chorar. É hora de lutar. De continuar a viajar, denunciar. (…) Eu preciso do meu povo vivo e que permaneça no seu lugar. (…) Eu estou-me sentindo forte, porque nós estamos unidos. Estamos fazendo a aliança para ficar uma luta só. Sem luta, ninguém vai sobreviver”.