O cinema que enquadra o impacto da evangelização radical dos povos indígenas da Amazónia
Desde a chegada dos colonizadores, os povos indígenas conhecem o seu próprio ‘fim do mundo’ - um apocalipse bem diferente do anunciado pelos missionários ao longo dos séculos. A imagem de Perpera Suruí sentado, com uma formalidade forçada, à porta da igreja evangélica da sua aldeia indígena, vestido com uma camisa branca, gravata e calças compridas, de costas voltadas para o interior da igreja da qual se tornou o zelador, depois de anos sendo pajé da sua comunidade, é a representação imagética de um ‘fim do mundo’ ancestral. Para compreender o que leva o indígena da etnia Paiter Suruí a esse isolamento, é necessário entender a porta da igreja como um “não-lugar” para o ex-pajé, e um lugar de acesso à desestruturação da cosmologia originária da comunidade.
Esta cena, uma das mais emblemáticas do cinema sobre a Amazónia contemporânea, faz parte do filme Ex-Pajé (2018) realizado por Luiz Bolognesi e gravado no Estado de Rondónia. O guião da longa-metragem, também da autoria do realizador, apoia-se numa fusão entre o documental e a ficção, em que os Paiter Suruí interpretam as suas próprias vivências, no seu idioma.
O cineasta considera que a situação real de Perpera Suruí sintetiza o crime de etnocídio indígena. É nesta perspetiva que o filme Ex-Pajé está estruturado, com o objetivo de atualizar uma violência de matriz colonial: o proselitismo religioso evangélico compulsório que aniquila a cosmologia dos povos originários nos territórios amazónicos do Brasil e dos países vizinhos.
A Amazónia é um território de grande diversidade religiosa, onde atualmente predominam as igrejas evangélicas pentecostais, destacando-se a Igreja Assembleia de Deus com uma presença significativa na região. Por outro lado, estão as igrejas neopentecostais que têm vindo a expandir uma corrente mais conservadora e radical, alicerçada na Teologia da Prosperidade, desempenhando um papel relevante na configuração dos perfis políticos dos seus fiéis. Um dos principais agentes desta radicalização do pentecostalismo é a Igreja Universal do Reino de Deus.
Esta complexa teia de propagação de missões religiosas evangélicas é explorada no documentário de cinema experimental O Avesso do Céu (2023) do brasileiro Maurício Dias e do suíço Walter Riedweg, realizadores e artistas de videoarte conhecidos por combinarem o cinema, vídeo, performance e instalação em projetos que exploram questões sociais e culturais. Os seus trabalhos têm sido apresentados, essencialmente, em museus como o Centre Pompidou em Paris, o Museu Reina Sofia em Madrid, o MACBA em Barcelona e o MFA em Houston, entre outros.
A média-metragem O Avesso do Céu foi recentemente exibida em Lisboa, como parte da programação do Festival Internacional de Videoarte, Fuso 2024. A obra oferece uma perspetiva crítica e multifacetada sobre a violência da manipulação religiosa exercida pelas diversas igrejas evangélicas que operam no Vale do Javari, situado no extremo oeste da Amazónia brasileira, onde se localiza o segundo maior território indígena do Brasil.
Uma dessas igrejas é a Irmandade da Santa Cruz que, como informa o filme, está atualmente presente em cento e setenta aldeias do Alto Solimões. Esta congregação é uma remanescente da Ordem Cruzada Católica, Apostólica e Evangélica fundada pelo missionário messiânico brasileiro José da Cruz que, na década de 1970, evangelizou inúmeras comunidades indígenas Ticuna na região. Esta etnia é destacada no filme O Avesso do Céu, que navega pelo rio Javari e pela região do Alto Solimões, na fronteira do Brasil com o Peru e a Colômbia, a mesma área que o realizador Jorge Bodanzky visitou em 1980.
Durante a viagem pelo rio Iça, guiado pelo ex-senador do Estado do Amazonas, Evandro Correia, protagonista do documentário, Bodanzky filmou diversas aldeias indígenas Ticuna convertidas à Ordem de José da Cruz, que na época contavam com um total de trinta mil fiéis indígenas. Desse périplo resultaram as raras imagens, possivelmente as únicas existentes, do missionário José da Cruz. Estas fazem parte do filme Terceiro Milênio (1980) que o cineasta realizou em parceira com Wolf Gauer.
A demonização da cultura indígena como força aniquiladora de comunidades inteiras.
Ex-Pajé estreou no Festival de Cinema de Berlim em 2018, onde recebeu a Menção Especial do Júri para Documentário Original. Na ocasião, a importância milenar dos pajés foi celebrada com a leitura do “Manifesto dos Povos e Lideranças Indígenas do Brasil: mais pajés, menos intolerância” (2018) assinado por vinte e oito líderes e quinze organizações indígenas brasileiras. O texto recordou que “durante muitos séculos, os pajés equilibram a vida na Terra. Com seus cantos, rezas, curas e sabedoria, massageiam o Planeta proferindo lindas palavras, as mais belas palavras sagradas. São médicas e médicos, rezadoras e rezadores, curandeiras e curandeiros, sabedores do mundo, com suas próprias ciências e sua filosofia.”
Em consonância com a temática central do filme de Luiz Bolognesi, o Manifesto denuncia a demonização recorrente dos pajés e xamãs por parte de algumas congregações evangélicas radicais: “alguns leem na Bíblia a mensagem para invadir o mundo inteiro para forçadamente pregar o evangelho para todas as criaturas, entendendo que quem não se converter irá arder no inferno que essa própria religião inventou.”
Em Ex-Pajé, Bolognesi oferece-nos um exemplo dessa força devastadora que chegou com a missão evangélica à aldeia Lapetanha dos Paiter Suruí, aniquilando a espiritualidade da comunidade indígena através do proselitismo religioso que prega a teoria do pecado original e oferece a todos ‘o caminho da salvação’.
Perpera é o principal alvo dessa força destrutiva: depois de quarenta anos como pajé da aldeia, ele é substituído pelo pastor evangélico. Como ex-pajé, o indígena entra em conflito com a sua própria identidade, consequência da desconexão compulsória das suas funções religiosas e sociais na comunidade, o que o impede de exercer os seus poderes.
A intolerância em relação à cultura ancestral indígena é evidenciada no filme pelos preconceitos que Perpera enfrenta desde que a sua comunidade se converteu ao culto evangélico: “Depois que o pastor disse que o pajé é coisa do diabo, ninguém mais falou comigo, viravam o rosto para mim. Só voltaram a falar comigo depois que eu fui para a igreja” queixa-se o ex-líder comunitário a um parente. Ao olhar para uma antiga foto sua, Perpera desabafa: “Antigamente consultava-se o pajé. Hoje só tomam aspirinas.”
Na sua atuação como pajé, a prática de rituais de reza e cura, como tocar as flautas sagradas, era de importância vital para a manutenção da saúde física e espiritual dos seus parentes. Agora, porém, é uma missionária estado-unidense que assume a função de cuidar dos doentes. Neste contexto, é importante salientar que o fornecimento de assistência médica pelas igrejas evangélicas alimenta uma relação de dependência que surge, com frequência, na esteira do descaso das entidades públicas em prestar o devido atendimento nos territórios indígenas. Além disso, um dos métodos proselitistas mais recorrentes consiste em reformular os significados sagrados da espiritualidade ameríndia, que sustentam o processo de cura, e incorporá-los na retórica protestante.
A proibição da pajelança – práticas de cura religiosas-espirituais ancestrais - pela missão presente na aldeia deixa o ex-pajé atemorizado: os espíritos da floresta, com os quais antes comunicava de forma harmoniosa, estão “bravos”. Perpera, enquanto mediador entre os espíritos e os seres humanos, sabe que o equilíbrio das diferentes dimensões da vida comunitária está em risco, o que desestabiliza a coexistência do seu povo com as entidades espirituais.
No texto “Reflexões de um Indígena Wapichana sobre o filme Ex-Pajé” publicado em 2020 pela revista Emblemas da Universidade Federal de Goiás (UFG), o historiador e antropólogo Eriki Aleixo de Melo, morador da comunidade Serra do Truarú, em Boa Vista, no Estado de Roraima, recorda que há “exemplos na história de como povos inteiros foram massacrados por conta de ideias absurdas de civilização, de intolerância, e o filme Ex-Pajé vem nos alertar para isso, que continuamos vivenciando este desrespeito da cultura indígena, de suas crenças, de seus territórios. Não podemos negar que houve um momento em que também tiveram pessoas engajadas na luta por direitos, e até parte das igrejas, como a ala progressista da igreja católica, contribuíram com essas conquistas. Mas não podemos fechar os olhos para outras partes de outras igrejas que continuam demonizando os povos indígenas, repercutindo numa série de problemas, desde doenças até a despolitização de suas lutas”.
O povo indígena Suruí, que se autodenominam Paiter, cujo significado é “gente de verdade, nós mesmos” é uma etnia profundamente comprometida na defesa do seu território, a Terra Indígena Sete de Setembro, e tem uma representatividade significativa na atual luta pelos direitos indígenas. Esta condição leva-nos a refletir sobre as vulnerabilidades que têm permitido a imposição dos métodos evangelizadores em algumas das suas aldeias.
A subversão da cultura simbólico-religiosa dos povos originários.
Os povos originários possuem um sistema religioso plural, resultado da diversidade étnica, sustentado em elementos espirituais e sabedoria ancestral fortemente ligada à natureza. Na pluralidade desse sistema podemos encontrar uma certa similitude simbólica com as crenças pregadas pelas missões evangélicas. Na cosmologia suruí, por exemplo, as almas enfrentam um percurso repleto de perigos; aqueles que superam esses desafios alcançam uma morada eterna e segura, junto de todos os que foram xamãs, enquanto os cobardes ou que cometeram crimes são condenados a viver nas aldeias das almas inúteis. Por sua vez, a tradição Ticuna, onde também existe a punição divina, caracteriza-se por uma predisposição ao culto da figura messiânica que oferece o caminho para a salvação.
Segundo Donizete Rodrigues, doutor em Antropologia Social pela Universidade de Coimbra, a associação destes paralelos religiosos facilitam a sua conversão. Em entrevista ao site de jornalismo InfoAmazónia, em janeiro de 2024, Rodrigues, que investiga os movimentos religiosos na Amazônia, identifica uma “correspondência direta entre o princípio religioso-espiritual do xamanismo com o pentecostalismo. Ambos os sistemas se apoiam em espíritos; praticam curas; têm êxtase, transes e sonhos. (…) As igrejas neopentecostais são ‘reavivadas’, apostam na experiência do Espírito Santo, no falar em línguas, no êxtase, no transe e na cura divina. Por isso elas têm uma tendência de se comunicar com a cultura local.”
A subversão dessa cultura simbólico-religiosa nativa é outra das estratégias utilizadas pelas missões evangelizadoras. Os realizadores de O Avesso do Céu referem-se a este processo na descrição do seu filme: “A fé é um poder de cada indivíduo para relacionar-se com a sua existência, mas a religião surge como um elemento colonizador dessa fé, manifestando-se como um novo território e uma nova identidade coletiva.” Como resultado da observação dos cultos documentados na sua média-metragem, Dias e Riedweg referem-se a um “cataclisma que se vê com a chegada dos missionários”, que transforma a cultura indígena num “novo contexto cristão, insalubre e miserável, que de fato beira a loucura.”
Atalaia do Norte, cenário de disputa da conversão de indígenas em contexto urbano.
O filme O Avesso do Céu começa com o Ritual da Moça Nova, uma cerimónia ancestral que marca a transição das jovens Ticuna para a vida adulta. Os realizadores incorporaram várias etapas deste ritual na narrativa do filme. Este início, em tom positivo, enaltece os costumes tradicionais dos Ticuna, profundamente enraizados na relação simbiótica entre a materialidade e a espiritualidade da natureza, realçando assim a vitalidade da sua cultura ameríndia. As entrecascas de árvores, pintadas com desenhos elaborados com tintas feitas a partir de plantas tintórias, compõe um dos elementos mais simbólicos da cultura Ticuna e desta festa em particular.
Contudo, nas sequências seguintes da média-metragem, Dias e Riedweg subvertem essa perceção positiva e revelam o processo de transmutação de alguns grupos Ticuna, à medida que o espectador é conduzido ao interior dos templos, onde as mulheres e jovens indígenas aparecem vestidas com túnicas religiosas e lenços na cabeça; todos entoam em coro ladainhas e cânticos, assim como repetem expressões e gestos alinhados com as práticas dos cultos evangélicos, em contraste com as danças e com a energia que emana do Ritual da Moça Nova que abre o filme.
Para retratar o cenário da proliferação evangélica, O Avesso do Céu centra-se em Atalaia do Norte, principal ponto de acesso à Terra Indígena Vale do Javari, uma pequena cidade com pouco mais de 15 mil habitantes, onde coexistem mais de sessenta igrejas evangélicas diferentes - escaparate de uma realidade que se expande pelo interior da região do Javari, pelo Alto Solimões e por muitas outras regiões da Amazónia.
De acordo com a cronologia apresentada pela indigenista católica Cristina Manzo na sua dissertação submetida ao Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas - “Caleidoscópio missionário: Alianças, interesses e conflitos entre a atuação de agências missionárias evangélicas e os povos indígenas do Vale do Javari/AM” (2024) - a chegada das igrejas evangélicas à região ocorreu em diferentes períodos, tendo sido, a partir de 2014, que se consolidou a atual onda de trabalho missionário em Atalaia do Norte, “desta vez com a presença de missionários nacionais, internacionais e inclusive indígenas”. Esta nova fase impulsionou a multiplicação de igrejas evangélicas de índole pentecostal e neopentecostal.
“A terra vai ser transformada num belíssimo paraíso. (…) Onde é esse lugar? Possivelmente Atalaia do Norte. Já pensou nisso?” diz um pastor aos fiéis, alguns deles indígenas, durante um culto da igreja do Reino das Testemunhas de Jeová, registado no filme O Avesso do Céu. As promessas do pastor alinham-se com a Teologia da Prosperidade, característica da doutrina evangélica neopentecostal, que defende o enriquecimento como “vontade divina”. Estas promessas são associadas, no filme, a uma gravura que retrata maioritariamente famílias brancas, aparentemente felizes e perfeitas, num jardim idílico. Na mesma sequência, a pregação do pastor é intercalada com as imagens da gravura e com planos de ruas alagadas de água suja, nos bairros de palafitas da cidade, onde as pessoas circulam por estreitas passagens feitas de placas de madeira enfileiradas. Por enquanto, a chamada “Pérola do Javari”, como é conhecida a cidade de Atalaia do Norte, está longe de ser um jardim idílico.
A cidade é, na verdade, “um cenário de disputa e negociação” de várias igrejas que competem sobretudo pela conversão das populações indígenas, como aponta Cristina Manzo. A chegada constante de missionários – provenientes sobretudo dos EUA, Canadá e Peru, mas também de outros países e de outras regiões do Brasil – acontece estimulada pelo êxodo dos indígenas das suas terras para a cidade, contribuindo para o crescimento da população urbana a níveis que as infraestruturas locais não conseguem suportar. É neste contexto que se desenrola a corrida pela evangelização dos indígenas, que, vivendo muitas vezes em condições precárias, tornam-se um alvo fácil das estratégias de captação implementadas pelas missões.
Critina Manzo descreve o processo da seguinte forma: “os indígenas Marubo, Matis e Matsés, que começam a frequentar a cidade, interagem com missionários evangélicos e acabam sendo inseridos nas suas atividades diárias. Uma parcela de indígenas é convidada a se preparar nos centros de treinamento e formação disponibilizados por diferentes missões de fé, o que vai repercutir com a formação de cultos indígenas.” (Manzo. Pág. 137)
“A participação indígena nesse processo tem facilitado e permitido a realização de cultos, a construção de igrejas indígenas em Atalaia do Norte e o surgimento de pastores que são simultaneamente caciques nas comunidades Matsés.” (Manzo. Pág. 209)
A tradução da Bíblia para línguas indígenas e a instalação de igrejas nas aldeias têm acelerado o protestantismo pentecostal e neopentecostal entre os povos ameríndios fora do perímetro urbano de Atalaia do Norte. Deste modo, a evangelização tem-se expandido rapidamente pelo Território Indígena do Vale do Javari, numa onda que não recua nem perante os povos indígenas isolados ou de recente contato.
A evangelização como uma das principais estratégias da cobiça dos territórios indígenas.
Com a migração das populações indígenas para as cidades, os seus territórios de origem ficam desprotegidos, expostos a todo o tipo de depredação: invasões de terras, exploração garimpeira, extração de madeireira e roubo de fauna e flora, entre outros ataques. A ‘porta fica aberta’ também para a entrada das missões evangélicas, cuja intromissão desestabiliza as comunidades, facilitando a incursão desses forasteiros e invasores.
No filme O Avesso do Céu, Dias e Riedweg direcionam a câmara para o negócio lucrativo da madeira - que rouba à floresta do Vale do Javari as suas árvores com maior valor comercial – e mostram imagens de serrações em plena atividade nas margens dos rios e de enormes embarcações navegando carregadas com os troncos cortados. Entre as imagens recebemos a informação escrita de que setenta e oito por cento da madeira do Território Indígena do Vale do Javari é extraída de forma ilícita. Para que funcione toda esta cadeia predatória as motos serras tem que estar afiadas: no filme, os sons estridentes das máquinas de afiar as suas lâminas criam uma atmosfera perturbadora que está presente, de forma simbólica, em praticamente toda a obra. Não é por acaso que esses sons se misturam com as pregações dos pastores.
O Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas (Opi) – fundado, entre outros, por Bruno Pereira, indigenista assassinado no Vale do Javari, em 2022 – reconhece que uma das principais formas de perseguição aos povos isolados no Brasil é realizada por missionários que insistem em fazer contato para evangelizá-los. Esta perseguição visa “obter as suas almas, enquanto outras formas de assédio visam a obtenção das suas terras e a apropriação ilegal das riquezas naturais existentes nos seus territórios”. Esta informação consta no Relatório sobre criminalização e assédio de lideranças indígenas no Brasil, que faz parte da publicação “Uma anatomia das práticas de silenciamento indígena” (2021) da Indigenous Peoples Rights International.
Um ano antes da publicação deste relatório, o governo de Jair Bolsonaro nomeou o pastor, antropólogo e ex-missionário da Missão Novas Tribos do Brasil, Ricardo Lopes Dias para chefiar a Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da, então, Fundação Nacional do Índio (Funai) depois da exoneração de Bruno Pereira que ocupou o cargo entre 2018 e 2019.
A nomeação do Pastor Ricardo Lopes Dias foi amplamente contestada, inclusive por via judicial. A sua nomeação alinhava-se com a política bolsonarista de facilitar o contato com os povos isolados por parte das missões evangélicas. Líderes da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) opuseram-se a esta intrusão e conseguiram obter decisões na justiça que permitiram travar o proselitismo. O pastor permaneceu no cargo apenas nove meses.
O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro descreve este processo como “colonialismo espiritual associado ao processo de expropriação territorial”, classificando-o “uma arma estratégica da guerra movida pelo Estado a toda forma livre de vida.” No texto “Nenhum povo é uma ilha” que faz parte da publicação “Cercos e resistências. Povos indígenas isolados na Amazônia brasileira” (2019), Viveiros de Castro escreve: “O grande capital cobiça as terras indígenas, visando a expansão do extrativismo minerário e do agronegócio, em um contexto de privatização crescente das terras públicas. O lobby evangélico cobiça as almas indígenas, visando à destruição da relação de imanência entre humanos e não humanos, povo e território— imanência que constitui as formas de vida indígenas —, de modo a universalizar a imagem incolor de um cidadão-consumidor “brasileiro”, dócil ao Estado e subserviente ao capital.”
O abandono da identidade cultural indígena versus a resiliência ao etnocídio.
Numas das cenas mais simbólicas do filme de Bolognesi, o ex-pajé circula por um corredor de um grande supermercado, onde se encontra rodeado de mercadorias. O que é uma rotina para muitos indígenas na Amazónia contemporânea, no contexto narrativo do filme torna-se uma imagem poderosa que reforça o deslocamento do personagem do seu ambiente natural, a floresta, lugar de onde os povos originários - que vivem de forma tradicional - extraem grande parte da sua dieta. Ao colocá-lo nesta situação, o realizador posiciona Perpera em mais um “não-lugar”, transforma-o num cidadão-consumidor, tal como enunciado por Viveiros de Castro.
Em Ex-Pajé, a comunidade de Perpera vai abandonando progressivamente as referências tradicionais da sua identidade cultural indígena, questão que o realizador optou por representar pela assimilação, pelos Paiter Suruí, de diversos elementos simbólicos do consumismo dos ‘brancos’. Embora esses elementos não sejam introduzidos narrativamente como uma consequência direta da evangelização da comunidade, é evidente que o fenômeno descrito como ‘embranquecimento’ ou homogeneização dos povos indígenas e das populações tradicionais serve os interesses da conversão e pode, potencialmente, ampliar as possibilidades de etnocídio, ainda que tal não seja uma inevitabilidade.
A definição deste processo, conforme o antropólogo e etnógrafo francês, Pierre Clastres, abre o filme Ex-Pajé. Clastres entende o etnocídio como “a destruição sistemática dos modos de vida e de pensamento dos povos”. No entanto, neste contexto, é importante considerar a perspetiva do antropólogo Eriki Aleixo de Melo que observa que o filme Ex-Pajé “mostra de forma muito emblemática, como é ser indígena na contemporaneidade” independentemente da influência da evangelização. Segundo Melo, são “pessoas que falam a língua portuguesa e a língua indígena, usam as redes sociais para fins de comunicação e divulgação de sua realidade e até denúncias de desmatamento, usam meios de transportes como caminhonetes, motocicletas, entre outros exemplos retratados ao longo da história.”
A ameaça de etnocídio é inegável na comunidade de Perpera, mas manifesta-se em outras áreas. O ex-pajé, por exemplo, está consciente que a interrupção na transmissão dos conhecimentos ancestrais às novas gerações é um dos principais perigos e tenta promover uma retomada dessa partilha de saberes.
Todavia, na sua missão, Perpera, como qualquer xamã ou cacique, enfrenta o etnocídio através da crescente disseminação de desinformação como método político para provocar a separação entre os povos e desagregação dos territórios. O antropólogo Donizete Rodrigues aponta a desinformação como “um método muito eficiente” e “uma estratégia de poder que os grupos religiosos radicais na Amazônia abraçaram, apesar de não ser algo exclusivo deles”. Ainda conforme é denunciado na mesma reportagem do portal InfoAmazônia, “a desinformação tem um efeito perverso ao tentar desconstruir a evidência científica de que a Amazônia precisa ser conservada enquanto floresta, enquanto rios, enquanto saberes tradicionais”.
Esta desinformação é propagada por vários meios, desde plataformas digitais, sobretudo redes sociais, até uma série de meios de comunicação tradicionais agrupados em grandes conglomerados pertencentes a igrejas neopentecostais, que se tornaram extremamente influentes no panorama mediático brasileiro. Grande parte dessa desinformação tem origem em políticos, alguns deles pastores, com representatividade no Congresso brasileiro, grandes empresários com interesses na região e respetivos lobistas.
Ainda na mesma entrevista, o antropólogo Donizete Rodrigues relembra que líderes do segmento neopentecostal, “mais ligado ao poder econômico e político, eram próximos ao governo [de Jair Bolsonaro, 2018-2022], o que favoreceu a entrada de templos na Amazônia com esse caráter de exploração e de conversão de indígenas.” Esta ação política desafiou princípios fundamentais da Constituição Federal, como o que estabelece o Brasil como Estado Laico e o que protege as sociedades indígenas contra ataques religiosos, garantindo a sua autodeterminação.
Apesar desta estratégia ter sido impulsionada durante o governo bolsonarista, a mesma já vinha ganhando força desde o governo de Collor de Mello (1990-1992), exercendo uma influência determinante na eleição de representantes municipais e estaduais em várias regiões da Amazónia. O poder crescente de certos líderes religiosos tem contribuído para retrocessos significativos na proteção do bioma amazónico e dos direitos das comunidades indígenas.
Perante esta conjuntura, a luta pela defesa do território é permanente e desafiadora. No filme Ex-Pajé, a mesma está configurada como um movimento de resistência, com os indígenas da aldeia Lapetanha unidos pela proteção da floresta. Embora a narrativa fílmica não sugira uma correlação entre a destruição territorial e a evangelização da comunidade, a sua inclusão no filme acentua a ideia de que a conexão imanente entre o povo e o seu território, a que se refere Viveiros de Castro, ainda se mantém viva enquanto dimensão identitária entre os parentes de Perpera. Os vigilantes da floresta deparam-se com árvores cortadas por madeireiros e discutem entre si estratégias para enfrentar o problema, revelando-se esperançosos com a sua denúncia nas redes sociais, o que alude à importância do acesso às tecnologias como ferramenta de combate à depredação da floresta.
Eriki Aleixo de Melo considera que, neste sentido, a obra cinematográfica “é uma história de como os indígenas se reinventam ao longo dos anos de contato, violência, colonização.” Bolognesi procura demonstrar, no seu filme, que é possível a resiliência ao etnocídio. Perpera protagoniza uma tentativa de retomada do seu lugar na comunidade, resgatando a sua importância como figura chave no processo de cura dos seus parentes; embora fique em aberto a possibilidade do ex-pajé sair do “não-lugar” onde se encontra. Ao explorar essa retomada, o realizador procura encenar o resgate das práticas interditadas pela evangelização, expondo que as mesmas não foram completamente aniquiladas e que podem ser instintivamente reativadas pelas circunstâncias.
Em 2009, trinta anos após a viagem que deu origem ao filme Terceiro Milênio, o realizador Jorge Bodanzky voltou à região do Alto Solimões para exibir o documentária ao público Ticuna da comunidade da Aldeia Filadélfia. A exibição fez parte de uma ação de formação de professores, envolvendo duzentos e trinta alunos indígenas que participavam numa oficina de vídeo da Organização Geral dos Professores Ticunas Bilíngues (OGPTB).
Esta experiência deu origem a um novo documentário, produzido para a TVNavegar, com o título De Volta ao Terceiro Milênio (2009). A obra combina sequências do filme original de 1980 com as reações do público Ticuna presente na exibição, alguns dos quais familiares dos participantes no Terceiro Milênio. Uns atualizaram as histórias contadas na época, enquanto outros confirmaram que certos conflitos e necessidades continuam presentes na realidade dos Ticuna.
O filme regista o testemunho de uma professora Ticuna que acusa a missão de José da Cruz de quase exterminar a língua e cultura do seu povo. Ela recorda que, se alguns dos seus antepassados não se tivessem fugido da missão, “hoje não teríamos mais a nossa língua (…) ele trouxe a ideologia dele, colocou a religião dele. Eu não gostei porque ele proibiu muitas coisas e [fez com que] nós deixássemos a nossa cultura. Nós precisamos lutar contra essas invasões.”
Em 2023, a equipa do Avesso do Ceú também esteve na Aldeia Filadélfia onde filmaram várias igrejas e cultos evangélicos, mostrando que os Ticuna, um dos povos indígenas mais numerosos do Brasil, continuam a aderir a sucessivas ondas de doutrinação. Desde a grande onda messiânica, liderada pelo brasileiro José da Cruz no século passado, até às atuais congregações pentecostais e neopentecostais de origem norte-americana, a influência religiosa segue presente na vida das comunidades Ticuna.
Pastores das igrejas evangélicas conservadoras continuam a ameaçar os povos indígenas e as populações tradicionais amazónicas com a iminente chegada do ‘fim do mundo’. No entanto, a verdadeira ameaça dessa advertência apocalítica não reside na sua dimensão teológica, mas sim nas consequências devastadoras da conversão radical das populações que tradicionalmente lutam pela preservação da floresta. E os povos amazónicos não são as únicas vítimas desta transformação, a humanidade como um todo também está em risco, uma vez que as consequências sociais, culturais e ambientais produzidas por esta dinâmica enfraquecem a luta pela preservação da Amazónia, afetam diretamente a sustentabilidade do planeta.
No Manifesto apresentado no Festival de Cinema de Berlim, os líderes indígenas reclamavam: “Mais pajés, mais Céu, mais espíritos, mais floresta, mais vida. Menos ódio. Menos intolerância. Menos racismo.” E deixavam claro que “precisamos superar a impossibilidade de conviver em igualdade nas nossas diferenças, e passar a partilhar o mundo com outros seres vivos, outros viventes, viver e se olhar e se reconhecer no olhar do outro, com reciprocidade, com respeito aos humanos e respeito também aos não-humanos, uns ao lado dos outros, vivendo juntos em nossas diferenças”.