Filme Uýra - A Retomada da Floresta: A arte que transfigura a resistência amazónica.

Uýra Sodoma em ‘Retomada’, uma das performances incluídas no filme.Uýra Sodoma em ‘Retomada’, uma das performances incluídas no filme.

Uýra - A Retomada da Floresta, realizado por Juliana Curi, é a primeira longa-metragem brasileira documental sobre uma artista trans indígena amazónica e é uma obra que contribui para superar imaginários preponderantes e para o reconhecimento da diversidade das identidades amazónicas. 

O filme, dedicado à artista Emerson Pontes e à sua personagem performativa Uýra Sodoma, permite adentrar-nos na floresta e na cidade, que já foi floresta, pela senda da contemporaneidade, para chegarmos a um mundo amazónico que se transfigura para resistir à violência social e à destruição ambiental. 

No filme-manifesto não há lugar para estereótipos e a Amazónia é tal como é: um vasto território de grande diversidade natural e humana, composto por muitas Amazónias. É nesta direção que o filme Uýra - A Retomada da Floresta entrelaça o real e a ficção para captar a fluidez de género, de espécie, de espiritualidade que Emerson e Uýra aglutinam.

Emerson Pontes vive em Manaus, onde é uma das novas personalidades atuantes na construção do presente amazónico, através da sua interseccionalidade como artista, educadora e ativista. Não é única neste contexto: vários integrantes da comunidade LGBTQIAPN+ amazónica têm alcançado o reconhecimento regional, nacional e - como também é o caso de Uýra - internacional, com projetos transformadores em áreas distintas, em nome próprio ou em coletivo. A artista destaca, na sua narração no filme, que “atualmente movimentos pioneiros vivem outras formas de ser drag, que não são os jeitos tradicionais. Somo atravessadas por ser indígenas, negras e periféricas, somos um grupo que decide questionar não apenas género, mas questões sociais e ambientais.” 

Emerson declara-se “uma pessoa atravessada” por problemáticas que comparte com a juventude amazónica e brasileira em geral. Com o seu relato percebemos também como a sua ancestralidade indígena - apresenta-se como neta de mulheres indígenas com garimpeiros - contextualiza a sua vida e arte. Sobre esse passado reconhece que houve um “silenciamento” e que só com vinte cinco anos compreendeu a sua ascendência. 

Nos créditos de abertura, o documentário é apresentado como uma história de Uýra Sodoma e Emerson Pontes, o que faz mais sentido do que chamar-lhe uma obra biográfica, como é frequentemente mencionado. O que é narrado corresponde ao que está a viver e que é, como a artista refere no prólogo do filme, “uma fase mais de uma guerra que nunca cessou”. E nessa guerra, de muitas frentes, há diversos grupos em combate, por isso a protagonista reconhece que o filme não é somente sobre ela, mas sobre um coletivo, onde inclui a população negra, os povos indígenas e os povos tradicionais amazónicos.

Foi também um “processo coletivo de cocriação horizontal, que somou vozes e subjetividades de diferentes campos” que esteve por detrás da produção deste filme, segundo Juliana Curi1Uýra - A Retomada da Floresta é a primeira longa-metragem da realizadora e é resultado de um guião que escreveu em parceria com a produtora Martina Sönksen e Emerson Pontes, também coprodutora. O documentário conta com várias colaborações e participações de ativistas da comunidade queer de Manaus, de povos indígenas e de ribeirinhos amazonenses. Trata-se, portanto, de mais uma produção cinematográfica brasileira resultado de alianças entre indígenas e não-indígenas, povos da floresta e da cidade, assim como de artistas de diferentes áreas criativas e proveniências geográficas.

Emerson Pontes junto a alguns participantes e equipa do filme, em Manaus.Emerson Pontes junto a alguns participantes e equipa do filme, em Manaus.

Uýra - A Retomada da Floresta, estreado nas salas brasileiras em junho passado, abre caminho no cinema brasileiro para a divulgação do trabalho artístico de pessoas LGBTQIAPN+ amazónicas e alinha-se ao recente movimento de reconhecimento da arte indígena brasileira. A circulação do documentário por importantes festivais internacionais e nacionais e a sua distinção, até à data, com mais de quinze prémios 2 é um enorme contributo para ampliação dessa visibilidade. 

O trailer oficial do filme foi apresentado pela primeira vez, em 2021, na Conferência das Nações Unidas sobre alterações climáticas, a COP26, realizada em Glasgow, no Reino Unido. A longa-metragem, que contou com o apoio da Doc Society3, foi exibida em Portugal, em novembro de 2022, no Festival Queer, na Casa Comum da Reitoria da Universidade do Porto. Recentemente, o filme estreou no canal de televisão POV/PBS e está disponível na plataforma streaming do canal para todo o território estado-unidense. 

Uýra, a ‘árvore que anda’.

Transfigurar-se ou transmutar-se é um processo próprio da natureza, essencial para a sobrevivência das espécies, sobretudo no contexto amazónico. Também é uma prática ancestral dos povos indígenas que vivem, há séculos, da simbiose com a natureza. No filme Uýra – A Retomada da Floresta, a mesma estratégia surge representada pela arte da protagonista, que propõe, com o seu trabalho, “tecnologias de sobrevivência”.

Sobrevivência é o ato que comanda a vida da protagonista do filme, Emerson Pontes, jovem de trinta e dois anos, artista visual, trans não binária, indígena que cresceu na periferia de Manaus, bióloga com mestrado em Ecologia, educadora e ativista. Para ser tudo isto tem que se ser uma sobrevivente, no Brasil, na Amazónia, em Manaus e em muitos outros lugares.

Emerson Pontes transfigura-se em Uýra Sodoma, uma ‘árvore que anda’, entidade híbrida - humana e não-humana - que surge em performances, fotoperformances e intervenções, algumas destas incorporadas no filme. “Emerson empresta seu corpo para coabitar dezenas de existências” como refere Keila Sankofa, artista visual e realizadora audiovisual manauara, no texto do catálogo do Prémio PIPA 20224, do qual Uýra foi umas das artistas vencedoras. Keila Sankofa reconhece em Uýra “uma reincorporação de entidades, bichos e plantas, materializados como existência, não como representação. (…) Desse modo, facilmente se percebe que Uýra é uma encantada que dança entre os muitos mundos.”

Com esse transitar, Emerson/Uýra mostra-nos que “o único caminho é se florestar”, a via apontada pela jornalista e escritora Eliane Brum no seu livro Banzeiro Òkòtó, Uma Viagem à Amazônia Centro do Mundo (Companhia das Letras, 2021), onde - perante a emergência climática que vivemos - ressalta a importância de que “viremos todes indígenas, no sentido de nos compreender como parte orgânica de um planeta vivo e compreender a vida como essa relação fascinante de intercâmbios e de dependência mútua entre diferentes formas de ocupar o mesmo corpo” (BRUM p.197). 

As existências de Uýra são diferentes construções imagéticas que Emerson corporiza através de pinturas e outros elementos da natureza que junta de forma metafórica, performativa, como poesia visual. “Os pincéis são como flechas e as tintas são elementos sagrados” para a artista, que vive também a experiência de simbiose com a floresta através do uso de elementos figurativos e simbólicos como troncos, ramos, folhas, flores, sementes, com os quais alcança um nível de mimetismo que permite esse trânsito entre ser humana e não-humana, entre ser “bicho e planta”.

Todos estes recursos não são apenas ferramentas criativas, são também as “tecnologias de sobrevivência” que a artista importa da sabedoria da floresta e que são elementos essenciais às práticas de cura e resistência. Um processo muito próprio das cosmologias dos povos originários e que Emerson contemporiza nas existências de Uýra, resgatando a sua ancestralidade indígena. Com esta fluidez, a artista incorpora a parte orgânica de um mundo ameaçado e alerta para a preservação da vida, especialmente do ecossistema amazónico, estimulando o debate sobre a sustentabilidade socioambiental.

Uýra na performance ‘Gruta’.Uýra na performance ‘Gruta’.

No filme, a história de Emerson começa no contexto urbano, o do bairro onde vive, o Nossa Senhora de Fátima, na periferia de Manaus. A maior metrópole da região Norte, no meio da maior floresta tropical do mundo, reúne mais de dois milhões de pessoas, grande parte descendente de povos originários ou povos tradicionais amazónicos, população que vive nas periferias, muitos deles sob a condição de “desflorestados”, termo usado por Eliane Brum e que define os que empreenderam a diáspora da floresta para os grandes centros urbanos. 

O desmatamento da floresta e a ocupação das suas terras por latifundiários agrícolas, pecuários ou os megaempreendimento, como a construção de hidroelétricas que alagam grandes superfícies, estão entre as principais causas que levam ao êxodo para as cidades. Uma das performances de Uýra evoca esta problemática: SangraAmazônia denuncia a erosão do solo amazônico, uma destruição que a artista associa à “erosão metafórica das memórias e identidades”.

Outra das performances que foi reencenada para o filme alerta para as condições de vida nos espaços urbanos, colocando em evidência a poluição dos igarapés (cursos de água dos rios que banham a cidade). Em Mil [Quase] Mortos, Uýra transmuta-se em Boiúna, uma grande serpente dos rios amazónicos que, ao surgir entre o lixo acumulado num igarapé de Manaus, foca a questão do cuidado com a água no contexto urbano e a falta do saneamento básico nas zonas periféricas.

Ao descrever o seu quotidiano citadino, a artista também procura expor a violência sistémica deste contexto. Emerson refere que o seu bairro sofre com “toques de recolher, proibições contra corpos e racismo estrutural por parte da polícia. (…) Os grupos que são perseguidos, aos quais lhes é negada a diversidade, são como plantas que crescem e vivem numa terra violenta e abandonada, vivendo da força da memória”. A protagonista destaca que “são pessoas que fazem da periferia uma floresta” e que, ao habitarem estes territórios com essa perspetiva, trabalham para retomarem os espaços e as identidades, restabelecerem conexões ancestrais e tradições amazónicas.

Emerson Pontes na 34º Bienal de São Paulo, em 2021. Foto de David Martins.Emerson Pontes na 34º Bienal de São Paulo, em 2021. Foto de David Martins.

A estratégia de luta coletiva pela vida.

Ao resgatar e reforçar vínculos identitários, Emerson Pontes procura tecer comunidades entre a população jovem queer e indígena manauara, porque, como diz no filme, “estes grupos nem sempre vão se olhar ou se apresentarem como quem são”. É para este despertar ou para esta retomada, como sugere o título da longa-metragem, que Emerson/Uýra trabalham para criar laços comunitários em lugares onde “a ideia de comunidade está arruinada” como alerta Eliane Brum, a partir do que testemunha na cidade amazónica onde vive, Altamira, no Pará. Nestas cidades, e sobretudo nas suas periferias, as crianças e os adolescentes vivem em situação de grande vulnerabilidade, impactados pela violência produzida por condições económicas e sociais precárias, por desestruturação cultural, social e ambiental.

As grandes cidades amazónicas vivem desligadas da biodiversidade que as rodeia. No filme percebemos como a artista traz a floresta para a periferia através da “metáfora ecológica”, à qual recorre nas suas performances e ações de formação. Os seus conhecimentos científicos servem-lhe para formular uma proposta artística que aciona, nos diferentes grupos com que trabalha, a ideia da luta coletiva pela vida. E como se pode concretizar essa luta? Seguindo o exemplo da natureza.

A “metáfora ecológica” inspira-se no ciclo de sobrevivência das plantas da floresta, no qual o mundo orgânico estabelece um circuito de comunicação e colaboração entre si que lhe permite sustentar os seus ecossistemas. A ecologista Suzanne Simard pesquisou essa rede de interdependência e escreveu o livro A árvore-mãe: Em busca da sabedoria da floresta onde demonstra como as árvores “evoluem juntas, reconhecem os vizinhos e recordam o passado; como têm capacidade de decisão sobre o futuro; recebem avisos e montam defesas, competem e cooperam umas com as outras com sofisticação”5

Em Uýra - A Retomada da Floresta percebemos como a ‘árvore que anda’, incorpora essa força orgânica vital. “Hoje estamos juntas, conectadas como as plantas, se reproduzindo rápido, se desenvolvendo, criando solos férteis para que outras ocupem também; contem as suas histórias, as nossas histórias” explica Emerson no filme, que mostra o entrelaçamento da artista e o coletivo artístico LGBTQIA+ manauara, as Tupiniqueens, numa simbiose de corpos políticos e vozes insurgentes amazónicas em luta.

Priscilla da Amazónia, uma performance em homenagem a ‘Priscila, A Rainha do Deserto’, filme de Stephan Elliott (1984). Priscilla da Amazónia, uma performance em homenagem a ‘Priscila, A Rainha do Deserto’, filme de Stephan Elliott (1984). Segundo o relatório da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), o Brasil terminou o ano 2022 como o país com mais mortes de pessoas trans e travestis no planeta, um lugar que ocupa há catorze anos consecutivos. No já mencionado catálogo do Prémio PIPA, Emerson Pontes contextualiza esta realidade num mundo que “continua antropocêntrico demais, regido por um pequeno e soberbo grupo de humanos: corporações de homens brancos, cisgêneros, heterossexuais, fingidos e caretas. Infelizmente a gente já viu no que deu o planeta.”

Eliane Brum também aponta neste sentido ao escrever que “a luta pela floresta é uma luta contra o patriarcado, contra o feminicídio, contra o racismo, contra o binarismo de género. E também contra a centralidade da pessoa humana” (BRUM p.49). É nesta conjuntura que se enquadra a proposta artística de Emerson que, ainda segundo o seu texto no catálogo do Prémio PIPA “reúne os mundos de humanos mais diversos e de outras criaturas, ressignificando também as camadas que os homens aí de acima criaram para mim: racial (que vem primeiro), social, territorial, sexual e espiritual – tudo nessa grande e provocadora paisagem cidade-floresta.”

A vez da juventude amazónica.

O documentário de Juliana Curi mostra ainda como Emerson Pontes ramifica o seu trabalho como educadora e ativista por vários lugares, numa deriva que pretende reduzir as colossais distâncias amazónicas que separam a cidade e a floresta. A artista realiza ações de formação com as juventudes ribeirinhas dos rios Japurá, Amanã, Negro, Solimões, Mariepauá, Aripuanã e muitos outros. No filme foram registadas as suas ações em duas comunidades - Tumbira e Três Unidos do Povo Kambeba - nas margens do Rio Cuieiras, afluente do Rio Negro.

A artista percorre o território amazónico para chegar a quilombos, aldeias indígenas e comunidades ribeirinhas, lugares ameaçados, porque “temos no país um histórico de destruição de espaços coletivos”. No documentário, uma mulher ribeirinha reconhece a necessidade deste trabalho porque “o jovem ribeirinho, ele é um ator que vivencia a realidade. Ele é aquele menino, aquela menina, que tem sonhos, que tem dentro dela a essência de que tem de dar continuidade às tradições das populações ribeirinhas, mas, ao mesmo tempo, com uma nova metodologia, um novo olhar”. 

Emerson leva Uýra para trabalhar com os jovens indígenas e ribeirinhos sobre a importância de cuidar da floresta, da qual devem ser os guardiões. Com a recuperação de narrativas amazónicas, procura fortalecer os saberes ancestrais e estimular a ideia de pertença e respeito pelos ecossistemas. Com esta metodologia, a artista segue o seu propósito de criar coletivos e, sobretudo, como refere “dar a vez a essa juventude que vive na Amazónia. Talvez hoje o maior desafio que existe.”

No vai e vem amazónico, esta troca expandiu-se com a exibição do documentário em diversos lugares da região, incluindo nas comunidades onde este foi filmado como em Tumbira, onde fez parte da programação do encontro de jovens, realizado pela Fundação Amazônia Sustentável (FAS). A estreia nacional foi em Manaus, no bairro onde vive a artista e “onde nasceu o filme”, como escreveu Emerson numa das suas redes sociais. Para a equipa de produção é de extrema importância levar o filme de volta à Amazônia e às comunidades ribeirinhas. “Ele fornecerá uma janela para que essas comunidades se vejam na tela, compartilhando conhecimento e histórias e democratizando o acesso ao cinema.”6 

Onde quer que chegue, Uýra - A Retomada da Floresta leva consigo a possibilidade de outras formas de pensamento e de modos de resistência necessários para preservar a vida amazónica e manter a floresta de pé. 

  • 1. Juliana Curi, realizadora, artista visual, produtora e guionista, tem formação em jornalismo e iniciou a sua carreira no departamento de criação da MTV Brasil, no desenvolvimento de campanhas sobre meio ambiente e política. Em 2021 fundou o EUETU Lab, um projeto de orientação profissional para jovens sub-representados no setor audiovisual, com o objetivo de facilitar-lhes a entrada no mercado de trabalho.
  • 2. Uýra - A Retomada da Floresta participou em inúmeros festivais no Brasil e fora do país, nos quais recebeu o Prémio de Melhor Documentário do Júri Popular no 46º Frameline, San Francisco International LGBTQ+ Film Festival, o Prémio da Melhor Longa-Metragem Indígena no Bend Film Festival 2022 (Oregon, EUA), o Prémio do Júri na London Film Week 2022 e o Prémio Especial do Júri na categoria Liberdade no Outfest Los Angeles LGBTQ Film Festival, entre outros. O filme foi destacado em meios de comunicação social como Hollywood Reporter, Variety, Golden Globes e Hollywood Press Association.
  • 3. O projeto do documentário foi apresentado no Encontro The Climate Story Lab/Amazónia que teve lugar em Manaus, em novembro de 2021, organizado pela instituição britânica The Doc Society em parceria com a guatemalteca Hackeo Cultural e a associação brasileira para o Mercado Audiovisual do Norte, Matapi. Ler mais sobre o encontro em https://www.buala.org/pt/a-ler/a-amazonia-em-2021-antes-do-final-do-ano-...
  • 4. O Prémio PIPA, promovido pelo Instituto PIPA, é um dos mais importantes no âmbito das distinções das artes visuais brasileiras.
  • 5. Resumo de apresentação do livro A árvore-mãe: Em busca da sabedoria da floresta de Suzanne Simard. Edição da Zahar, 2022.
  • 6. A informação consta do dossier de imprensa do filme.

por Anabela Roque
Afroscreen | 2 Outubro 2023 | A Retomada da Floresta, Amazónia, Juliana Curi