O cinema com os guardiões da floresta, na linha da frente do combate pela Amazónia.

O ruído de uma motosserra mistura-se com os sons da floresta. Uma árvore de porte amazónico começa a tombar; primeiro ouve-se uma espécie de lamento em forma de rugido, depois o enorme estrondo da queda. Na sua derrocada, a árvore arrasta consigo toda a vegetação com a qual partilha o ecossistema, onde vivem muitos outros seres. Alguns animais arrancam em debandada aflita, procuram um lugar mais seguro. O seu habitat será, em breve, mais um deserto de vida amazónica ocupado por bois ou soja para exportar.

Esta tragédia, que se repete em vários lugares da Amazónia, é também a sequência que abre os documentários Somos Guardiões (2023) e O Território (2022), que mostram como as árvores abatidas arrastam, com demasiada frequência, os seus defensores a um trágico final, passando os seus nomes a fazerem parte da longa lista de assassinatos no bioma amazónico. É sobre o entrelaçamento destas tragédias que se debruçam as narrativas de ambos os filmes, representando a luta indígena pelos seus territórios.

Estes documentários focam a sua ação nas ilhas verdes remanescentes da floresta amazónica que são as terras indígenas de Araribóia, no Estado do Maranhão, onde vive o povo Guajajara, e as do Alto do Rio Guamá do povo Tembé, no Estado do Pará, que fazem parte de Somos Guardiões; e as dos indígenas dos Uru-Eu-Wau-Wau, no sul amazónico, no Estado da Rondônia, onde foi gravado O Território. 

Os Guajajara ou Tenetehara, como também são conhecidos, são a etnia mais populosa do Nordeste, com mais de dez mil habitantes em dez territórios indígenas (TIs), já os Uru-Eu-Wau-Wau, que se auto­denominam Jupaú, contabilizam pouco mais de quinhentos indivíduos no seu total, o que os aproxima da possibilidade de extermínio. Nas áreas restritas ao usufruto destes povos originários, a floresta não está fora de perigo e as árvores continuam a ser cortadas em decorrência de invasões predatórias, com distintos fins, tal como acontece em tantos outros territórios que vivem circunstâncias semelhantes como é o caso das terras dos Yanomami, dos Karipuna, dos Kayapó, dos Munduruku, as de Trincheira Bacajá e do Vale do Javari - as mais atingidas na Amazónia, mas não as únicas no país.

Bitaté e os guardiões Uru-Eu-Wau-Wau em missão no filme O Território. Foto de divulgação.Bitaté e os guardiões Uru-Eu-Wau-Wau em missão no filme O Território. Foto de divulgação. 

Nestas terras há luta e resistência contra o avanço da degradação ambiental. “A Amazónia é hoje a fronteira onde é travado o embate contemporâneo entre as forças de destruição (representadas pelas elites extractivistas, econômicas, políticas e também intelectuais; pelos religiosos e suas igrejas, evangélicas neopentecostais na liderança; pelas grandes corporações transnacionais e pelos bilionários e superbilionários ligados a elas) e as forças de resistência encarnadas pelos povos indígenas e pelas comunidades tradicionais da floresta, como quilombolas e beiradeiros” escreve a jornalista e escritora Eliane Brum no seu livro Banzeiro Òkòtó, Uma Viagem à Amazônia Centro do Mundo (Companhia das Letras, 2021. p. 67).

Somos Guardiões e O Território procuram escrutinar esta conjuntura problemática que Eliane Brum atualiza da seguinte forma: “a resistência está sendo aniquilada no chão da floresta e está sendo aniquilada no Congresso brasileiro. Por muito tempo, os Marubo, os Guajajara, os Wapichana e tantos outros povos colocaram o corpo na linha de frente dessa guerra - que é movida contra a natureza, contra os povos-natureza - e seguem colocando, mas não é suficiente. Se seguirem sozinhos, a Amazónia vai chegar, em breve, ao ponto de não retorno. (…) Nós vamos seguir lutando, mas estamos sendo massacrados na linha de frente.” Este alerta foi feito em maio passado, na Universidade de Yale, em Connecticut, nos Estados Unidos da América, na conferência de homenagem ao jornalista britânico Dom Phillips e ao indigenista brasileiro Bruno Pereira, defensores da floresta assassinados em 2022. No livro Banzeiro Òkòtó, Brum já se referia ao massacre dos povos-natureza que, segundo a jornalista, se deve à “desproporção das forças envolvidas” na “guerra climática” que representa a luta pela Amazónia, a “grande batalha deste século” (Companhia das Letras, 2021. pp. 30 e 341).

Filmes que mostram a batalha pela Amazónia ao mundo.

Somos Guardiões e O Território são documentários coproduzidos entre indígenas e não-indígenas, brasileiros e estado-unidenses, numa parceria que inclui a partilha de funções na realização, na direção de fotografia e no seu financiamento. A distribuição dos filmes é assumida, maioritariamente, pelos parceiros dos Estados Unidos que contam com a capacidade de alcançar um público amplo e internacional, e assim dar uma maior visibilidade à contribuição dos povos indígenas para a proteção da floresta, colocando em evidência o impacto ambiental que a sua luta tem a nível global.

Somos Guardiões, primeira longa-metragem da realizadora Chelsea Greene, conta com a corealização de Rob Grobman; ambos são estado-unidenses. A estes juntou-se Edivan Guajajara, indígena brasileiro de Araribóia que também assina a realização. Quanto a O Território, esta obra é a terceira longa-metragem do nova-iorquino Alex Pritz, realizador que tem, no seu percurso cinematográfico, trabalhos feitos para a National Geographic Documentary Films, companhia que distribui o filme. A direção de fotografia foi partilhada entre Pritz e o indígena Tangãi Uru-Eu-Wau-Wau, fotógrafo e também guardião territorial. Os documentários contaram com importantes coprodutores estado-unidenses para a sua concretização, como é o caso dos atores Leonardo DiCaprio e Fisher Stevens em Somos Guardiões e do cineasta Darren Aronofsky em O Território. Neste último filme, a produção brasileira foi assegurada pelo fotógrafo Gabriel Uchida, natural de São Paulo, mas radicado na Rondônia, e pela ativista e líder indígena Txai Suruí, fundadora do Movimento da Juventude Indígena da Rondônia.

O esforço multinacional para a produção e distribuição das duas longas-metragens foram bem-sucedidos. O Território estreou no Festival de Sundance 2022 - onde venceu os Prémio do Público e Prémio Especial do Júri - e esteve em competição nos prémios da televisão norte-americana, os Emmy 2023, onde foi distinguido na categoria de Mérito Excecional na produção de documentários. Para Ivaneide Bandeira, mais conhecida por Neidinha Suruí, ativista ambiental e uma das protagonistas do filme, a distinção nos Emmy “destaca o compromisso responsável da cinematografia ao mostrar a batalha pela democracia em Rondônia e na Amazônia”, segundo declarações dadas ao portal de informação brasileiro G1. Neidinha também disse à revista Amazónia Real que o filme “chegou muito longe” e conseguiu captar a atenção do público estrangeiro, que manifestou interesse em saber mais sobre os Uru-Eu-Wau-Wau: “Às vezes, filmes como esse atingem um nicho, uma bolha, mas O Território fez a gente furar a bolha.”

A repercussão internacional, fundamental para as comunidades indígenas, corresponde ao que Bitaté Uru-Eu-Wau-Wau, o jovem cacique coprotagonista de O Território, manifesta no filme ao dizer que o seu povo “não conseguiria fazer o trabalho sozinho, por isso a gente quer que o mundo conheça o território Uru-Eu-Wau-Wau”. Por seu lado, os Guajajara também estão orgulhosos do seu documentário: Somos Guardiões está disponível na Netflix da América Latina e já participou em alguns dos mais importantes festivais internacionais e nacionais; em São Paulo foi distinguido com os prémios do Público para o Melhor Documentário e o de Ativismo Criativo – Culturas e Resistência, na 47ª Mostra Internacional de Cinema, em 2023. 

Somos Guardiões é apresentado como “mais que um documentário”: a ideia é que este seja também um “movimento” capaz de sustentar campanhas de apoio às causas dos Guajajara e dos Tembé e, em última instância, à batalha pela Amazónia. Para tal, uma das estratégias desenvolvidas consiste em oferecer a possibilidade de que qualquer pessoa possa organizar uma exibição do filme – a proposta deve ser apresentada através do formulário disponível no site weareguardiansfilm.com. Outra das campanhas desenvolvidas promoveu a angariação de fundos que financiou a compra de equipamentos de proteção individual para os defensores da região de Zutiwa, de onde é natural o corealizador Guajajara.

Placa que identifica o Território Uru-Eu-Wau-Wau furada por balas.Placa que identifica o Território Uru-Eu-Wau-Wau furada por balas.

A ameaça bolsonarista chamou a atenção dos realizadores estrangeiros.

Os dois documentários surgiram instigados pelo perigo que representava o governo bolsonarista para a preservação da Amazónia. A intenção dos realizadores estado-unidenses coincidiu com a apreensão da maioria dos povos indígenas que, desde o início da campanha eleitoral, se sentiam desrespeitados pela hostilidade do candidato da extrema-direita e pelas suas promessa de retrocesso nas políticas ambientais e cortes nos direitos fundamentais dos povos originários.

Em 2018, Alex Pritz contatou Gabriel Uchida para lhe comunicar a ideia de fazer um filme sobre as consequências da possível vitória bolsonarista. Pouco tempo depois, em 2019, já com o governo em funções, Rob Grobman e Chelsea Greene chegaram, separadamente, à Amazónia com intenção de investigar o evento que ficou conhecido como o “Dia do Fogo” - fogo posto que queimou uma vasta área no Estado do Pará, no mês de agosto daquele ano - “uma manifestação criminosa” que, segundo a Greenpeace, “foi coordenada por fazendeiros e madeireiros, em apoio às políticas de desmonte ambiental.” No Brasil, Grobman e Green conheceram-se através do produtor de O Território, Gabriel Uchida, e aí decidiram realizar juntos Somos Guardiões.

Os filmes foram gravados entre 2018 e 2021. O Território começa antes da eleição de Bolsonaro e inclui as promessas do candidato de que todos os brasileiros “teriam uma arma dentro de casa” e de que não haveria nem mais “um centímetro de terra demarcado para reserva indígena ou quilombola”. Em Somos Guardiões, as primeiras imagens de Bolsonaro são já como presidente a assinar um decreto que corta o financiamento dos órgãos responsáveis pela fiscalização ambiental. 

Seguindo a cronologia dos eventos, ambos os documentários demonstram como os crimes ambientais avançaram sem a intervenção das autoridades. Os órgãos federais responsáveis pelo combate a estes crimes - o Ibama, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, e a Funai, atualmente Fundação Nacional dos Povos Indígenas - foram precarizados de forma a inibir as suas atividades. Outras autoridades como as Forças Armadas e a Polícia Federal também diminuíram a sua presença nas áreas de conflito ou tiveram a sua ação desviada propositadamente.

Nos anos do governo bolsonarista, a ofensiva sobre o património amazónico resgatou, abertamente, a política oficial do Regime ditatorial brasileiro (1964-1985), através da qual se propagou o imaginário de que o derrube da floresta abriria caminho ao progresso. Esta lógica predatória não acabou com o fim da ditadura, como refere Eliane Brum: “A visão da floresta como um corpo para violação, exploração e espoliação nunca foi abandonada por nenhum dos governos da democracia retomada no Brasil a partir do final dos anos 1980” (Companhia das Letras, 2021.Pág.29). O resultado desta política sistémica está documentada nos dois filmes que, apesar de serem construídos do ponto de vista dos indígenas protetores da floresta, não deixaram de ouvir os invasores e de registar as suas ações: agricultores, que atuam em benefício próprio ou trabalham para fazendeiros; e madeireiros ilegais ao serviço de empresas coletoras que alimentam as grandes exportadoras. Estes são os inimigos da floresta representados nos filmes, mas infelizmente são apenas dois tipos de agentes depredadores num espetro bastante mais amplo. 

O Território testemunha os avanços destes grupos sobre a terra dos Uru-Eu-Wau-Wau. Trinta e quatro anos depois da sua classificação como TI, homologação que limita o seu uso aos povos indígenas que a habitam, ainda são muitos os que não respeitam essa decisão. A imagem simbólica da placa oficial – colocada para identificar a terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau - furada por balas está no filme e um pouco por todo o país, onde os TIs estão sob ameaça. É, infelizmente, uma imagem recorrente que representa a ameaça real a que estão expostos os povos originários. 

Alex Pritz liderou uma equipa não-indígena que gravou as atividades dos agricultores do Rio Bonito dentro da área indígena. Estes invasores criaram em novembro de 2018, poucas semanas depois da extrema-direita ganhar as eleições presidenciais, uma associação que reivindicava a posse das terras que ocuparam. No filme, Bitaté Uru-Eu-Wau-Wau diz que a Associação dos Agricultores do Rio Bonito quer “mais do que a terra, querem acabar com o povo indígena e com os [indígenas] isolados.”

Noutro momento do documentário, um fazendeiro alega que os originários não produzem nada nas suas terras, um argumento usado com frequência para justificar a ocupação que, geralmente, começa pelo desmatamento. Após retirar as árvores, cuja madeira tenha valor comercial, os invasores queimam o que resta da vegetação e plantam pasto para a criação de gado, apesar desta atividade estar proibida, para fins comerciais, em terras indígenas. Deste modo, os agricultores ao serviço de latifundiários “passam a boiada”, segundo palavras de um dos Ministros do Meio Ambiente do governo bolsonarista, Ricardo Salles, o mesmo que é réu num processo de exportação ilegal de madeira amazónica.

Ambos os filmes incluem imagens de bois nas terras ocupadas; mas em Somos Guardiões percebemos ainda como os produtos produzidos na Amazónia chegam aos consumidores de distintos continentes e quais são as grandes multinacionais distribuidoras de carne - e também de soja - envolvidas neste processo, assim como quais os bancos que o financiam. O documentário conta ainda com o testemunho do jornalista de investigação, Bruno Bassi, que explica o suporte político dado pelos deputados pró-agronegócio a esta cadeia predatória. No Congresso Brasileiro, estes políticos procuram cortar os direitos constitucionais dos povos originários brasileiros, assim como aprovar leis que facilitem ou legalizem os procedimentos ilícitos nos seus territórios. 

Os assassinatos de guardiões.

No meio da encruzilhada político-económica, os líderes indígenas, guardiões e ativistas ambientais lutam no meio da floresta, vanguarda do embate, onde a impunidade instiga o avanço da violência. Conhecida por pistolagem, a presença de indivíduos armados, alguns organizados como milícias ao serviço dos invasores, multiplicou-se no período bolsonarista, agravando o que é, há décadas, uma calamidade amazónica. A dimensão da violência, descrita pelos testemunhos reunidos nos filmes, continua a aumentar e as baixas indígenas na batalha pela Amazónia continuam a crescer - mesmo com o novo governo de Lula da Silva, em funções desde 2023. Uma reportagem da jornalista Karla Mendes no portal de informação ambiental Mongabay, publicada em junho passado, aponta “a expansão da pecuária e da exploração madeireira ilegais dentro e nos arredores da Araribóia” e revela 2023 como “o ano mais mortal para os indígenas na Araribóia em sete anos, igualando o número de assassinatos em 2016, 2008 e 2007”. No ano passado quatro Guajajara foram assassinados e três sobreviveram a atentados contra as suas vidas, conforme indica a mesma investigação. 

Os vigilantes do Alto do Rio Guamá. Fotograma do filme Somos Guardiões.Os vigilantes do Alto do Rio Guamá. Fotograma do filme Somos Guardiões.  

Marçal Guajajara, guardião da floresta e um dos protagonistas de Somos Guardiões, não esconde, no seu testemunho no filme, o medo de perder a vida. “Eu sou ameaçado de todo o jeito, por caçadores, pistoleiros, fazendeiros e outros (…) Porquê? Por causa da nossa terra. Por causa da nossa floresta. Isso mexe muito comigo, porque sem a floresta não somos nada.” O protetor territorial faz parte do grupo chamado Guardiões da Floresta, fundado em 2014, para combater os crimes ambientais, missão que coloca cerca de uma centena de indígenas Guajajara em confronto direto com os invasores. Ainda segundo contabiliza a reportagem do Mongabay, seis defensores do grupo foram mortos num período de 12 anos, sem que nenhum responsável fosse incriminado, pelo menos até ao final de 2019. Entre estes, o filme Somos Guardiões destaca o então recente assassinato a tiros de Paulo Paulino Guajajara, aos 26 anos, durante uma emboscada feita por madeireiros ilegais. Alguns líderes dos Guardiões já tinham denunciado publicamente que os madeireiros tinham pistoleiros para atentar contra eles, mas não houve medidas efetivas para a sua proteção.

Somos Guardiões não aprofunda o caso de Paulo Paulino, mas o seu homicídio gerou uma onda de consternação com repercussão internacional. O caso será o primeiro, do género, a ser submetido a um Júri Popular Federal no Brasil, por ser considerado uma agressão a toda a comunidade Guajajara e à cultura indígena. Este julgamento, que deverá acontecer ainda durante 2024, pode ser um marco no combate da cultura de impunidade na Amazónia, uma vez que tem a possibilidade de estabelecer precedentes para que outros assassinatos de indígenas e, inclusive, os homicídios de Dom Phillips e Bruno Pereira sejam julgados também pela Justiça Federal.

Olímpio Guajajara, coordenador do grupo Guardiões da Floresta, foi um dos convidados a participar na conferência da Universidade de Yale, atrás mencionada. Na ocasião, recordou que “Paulo Paulino Guajajara morreu por todos nós, assim como Bruno Pereira e Dom Phillips, mas os espíritos deles, a força deles, estão aqui com a gente. Jamais a gente vai esquecer esses guerreiros. Não podemos mais admitir que isso se venha a repetir. (…) Nós estamos fazendo um trabalho voluntário para toda a humanidade. E vamos continuar fazendo. Não tem outro caminho, a não ser nos organizarmos. (…) Eu desconheço um indígena que se tenha apropriado da terra e a tenha registado como dele. Isso é individualismo, ambição. Nós somos diferentes, nós estamos pela coletividade, pela vida de toda a humanidade.”

Os ataques fatais são também uma tragédia para os Uru-Eu-Wau-Wau. Durante a gravação de O Território, um dos seus guardiões foi assassinado: o professor Ari Uru-Eu-Wau-Wau foi encontrado morto, a 17 abril de 2020, na beira de uma estrada com sinais de espancamento. O filme registou imagens do guardião em ações de patrulha, ao lado de Bitaté e Neidinha Suruí, com quem trabalhava na vigilância territorial e na denúncia de extrações ilegais de madeira. Depois do seu assassinato, a ativista e a sua filha Txai Suruí pressionaram as autoridades a esclarecer o crime.

Frente a frente com os invasores.

Algumas das missões dos Guardiões da Floresta no Território Indígena de Araribóia e do Alto do Rio Guamá estão registadas no documentário Somos Guardiões. A equipa de filmagens acompanhou o grupo em oito missões de controlo que duraram vários dias e exigiram caminhadas diurnas e noturnas na floresta ou longas viagens de barco. Numa dessas expedições, no Alto do Rio Guamá, foram gravadas imagens da abordagem a dois homens que roubaram açaí e que foram identificados, pelos guardiões, como pistoleiros. Apesar da tensão do encontro, os defensores explicam, pacificamente, aos intrusos que não podem circular, nem colher açaí, nas terras indígenas. Noutro momento do filme, vemos como a ação dos vigilantes é mais contundente, ao destruírem um acampamento de madeireiros ilegais. 

Os guardiões Guajajara estão também preocupados em proteger a floresta pela qual circulam os indígenas Awá Guajá, caçadores-coletores que vivem em isolamento voluntário na floresta do TI de Araribóia. O grupo vive numa situação de alta vulnerabilidade devido às invasões e aos incêndios, sendo considerados dos isolados mais ameaçados do planeta. Imagens dos Awá Guajá e dos seus vestígios foram incluídas em Somos Guardiões. As sequências apresentadas fazem parte da curta-metragem Ka’a zar ukyze wà: Os Donos da Floresta em Perigo realizada, em 2019, por Flay Guajajara, Erisvan Bone Guajajara e Edivan Guajajara, também realizador de Somos Guardiões. Apesar das imagens dos isolados terem sido gravadas para a curta-metragem, o seu título e os nomes dos seus realizadores não constam dos créditos finais da longa-metragem.

A história dos Awá Guajá também se encontra em destaque no clássico do cinema brasileiro Serras da Desordem (2006) de Andrea Tonacci onde está representado o seu modo de vida antes da instalação da linha de caminho-de-ferro Carajás que, em 1985, dividiu a área por onde viviam e que separou este povo em grupos isolados. A via foi construída para transportar os minerais extraídos da Serra dos Carajás, no sudeste do Estado do Pará. 

Em O Território também percebemos que os Uru-Eu-Wau-Wau são protetores de, pelo menos, três grupos indígenas que vivem isolados nas terras que partilham. Embora vivam a muitos quilómetros de Araribóia, os originários de Rondônia vivem problemas muitos semelhantes aos Guajajara e, igualmente, têm os seus próprios guardiões que, neste caso, são organizados pela Associação Indígena Jupaú. As sequências de patrulhamento territorial também fazem parte do documentário de Pritz, com invasores e vigilantes repetindo o mesmo padrão nas suas ações. 

Neidinha Suruí com os guardiões Uru-Eu-Wau-Wau. Fotograma do filme O Território.Neidinha Suruí com os guardiões Uru-Eu-Wau-Wau. Fotograma do filme O Território.

Fora dos territórios, as guardiãs abrem novas frentes de luta.

No seu trabalho de investigação jornalística, a escritora Eliane Brum conheceu muitas defensoras da floresta, indígenas e não-indígenas, mulheres que “passaram a responder ao controle do corpo da floresta dispondo, coletivamente, seus próprios corpos na vanguarda dessa batalha. E isto em todas as frentes, da institucional à refrega no chão. As mulheres compreendem que se trata de um corpo só, a violação de um é a violação do outro.” (Companhia das Letras, 2021. Pág. 38). 

Duas destas mulheres são coprotagonistas dos filmes O Território e Somos Guardiões: Neidinha Suruí e Puyr Tembé. Estas ativistas trazem outras perspetivas da mesma luta, mais um dos elementos comuns aos dois documentários: O Território segue as movimentações da não-indígena Neidinha Suruí, coordenadora da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, organização que atua junto aos Uru-Eu-Wau-Wau na defesa dos seus direitos; Somos Guardiões acompanha a indígena Puyr Tembé do Alto do Rio Guamá nas suas articulações políticas fora do território. Como vemos no filme, Puyr volta à sua aldeia com frequência, para acompanhar os problemas no terreno e depois leva-os para lugares como Brasília, onde participa em protestos e reuniões, lado a lado com outras líderes indígenas. Deste modo, procura “ocupar os espaços onde se decidem as políticas públicas” que impactam os povos originários, um objetivo que não se limita ao âmbito nacional.

Puyr e Neidinha estavam entre as mulheres indígenas e não-indígenas que representaram, em 2021, a floresta amazónica na COP26, Conferência das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas, em Glasgow, na Escócia. Em mais um entrelaçamento de lutas e histórias nestes filmes, Somos Guardiões reúne imagens da representação brasileira na COP26, encontro que foi aberto oficialmente com um discurso de Txai Suruí. A jovem foi a primeira brasileira indígena a falar na abertura de uma COP. Nas palavras que dirigiu à plateia internacional, a ativista recordou a morte do seu amigo guardião Ari Uru-Eu-Wau-Wau. Uma vez de regresso ao Brasil, Txai Suruí foi ameaçada nas redes sociais e, inclusive, alvo de perseguição na rua. No filme de Pritz, algumas sequências documentam a tensão provocada pelas ameaças dirigidas à família de Neidinha - cuja preocupação maior, confessa, é a segurança das suas filhas.  

Em vários momentos de O Território testemunhamos como Neidinha Suruí apoia e orienta Bitaté, sobretudo quando o jovem assume a liderança dos guardiões do seu território. Segundo o jovem cacique, a ativista “está sempre do lado dos indígenas arriscando a vida”. No início do filme, a ativista ensina aos jovens guardiões o potencial dos drones para vigiar as ações dos invasores. 

A multiplicidade de instrumentos que os guardiões têm finalmente acesso (drones, rádios transmissores, localizadores GPS, câmaras fotográficas e de vídeo e, inclusive, telemóveis) tornaram possível documentar as denúncias de forma precisa. Os indígenas mais jovens têm recebido formação para trabalhar com estes equipamentos como ferramentas estratégicas na proteção das suas terras. Bitaté que também é fotógrafo destaca a câmara entre estes instrumentos; na sua opinião, esta é uma “arma”.

 

“Combater com a câmera na mão”.

Na última década, o empenho de comunicadores, profissionais do audiovisual e cineastas indígenas na construção das suas próprias narrativas e formulações políticas têm-lhes permitido alcançar uma ampla visibilidade nas redes sociais, em meios de comunicação e, sobretudo, no cinema, área na qual os povos originários emergiram com um dos mais importantes movimentos cinematográficos da América Latina.

Vale a pena mencionar Zawxiperkwer Ka’a – Guardiões da Floresta de Jocy e Milson Guajajara (2019), uma média-metragem relevante na cinematografia indígena brasileira - produzida durante uma ação de formação do projeto Vídeo nas Aldeias, no TI de Araribóia - que aborda igualmente as atividades do grupo Guardiões da Floresta. Os realizadores Jocy e Milson Guajajara têm um conhecimento profundo da realidade que trazem para o seu filme, uma vez que são guardiões na Terra Indígena Caru, área que faz parte do mesmo complexo verde da floresta amazónica no Maranhão. 

No texto “Guardiões da Floresta: Câmeras em Ação!” (2019), Ruben Caixeta de Queiroz, professor na Universidade Federal de Minas Gerais, ressalta que neste filme a câmara “funciona a favor dos indígenas como testemunha e como arma na proteção do território, e da vida! (…) de certa forma, age como uma arma ou uma câmera de vigilância não ligada de forma ininterrupta (algumas vezes camuflada e observando de longe, outras de muito perto, disposta sempre a partir do ponto de vista dos índios, não do inimigo), mas pronta a ser disparada assim que seja detonada do outro lado (do invasor, de frente para a objetiva) uma reação armada ou violenta.” 

Os Guajajara Jocy e Milson, Flay e Erisvan Bone (Ka’a zar ukyze wà: Os Donos da Floresta em Perigo) e Edivan Guajajara assim como Tangãi e Bitaté Uru-Eu-Wau-Wau fazem parte de um coletivo, cada vez maior, de indígenas que escolheram “combater com a câmera na mão”, conforme as palavras do pensador indígena Ailton Krenak – estes sabem da importância do seu uso a favor das causas dos seus povos. Edivan Guajajara assumiu as filmagens de Somos Guardiões quando os realizadores estado-unidenses tiveram que regressar ao seu país, após o anúncio da pandemia Covid-19, mas este jovem cineasta já tinha dedicado outros trabalhos cinematográficos ao seu território. Além da curta sobre os indígenas isolados, citada anteriormente, Edivan participou com Erisvan Bone Guajajara no guião e na fotografia da curta-metragem Arariboia 45 graus (2018) realizado por Mauro Siqueira.

Edivan Guajajara foi também um dos fundadores do coletivo Mídia Indígena, um projeto que surgiu em 2015, numa ação de formação de audiovisual no território Araribóia e que, atualmente, é um dos principais veículos de comunicação dos povos originários do Brasil, reunindo comunicadores de diferentes povos e regiões. A Mídia Indígena faz uma ampla cobertura das lutas dos povos originários, representando uma frente de contestação e de atualização de informação, com a qual a comunicação social tradicional é, em geral, displicente. 

A divulgação das circunstâncias do combate travado na floresta é uma chamada à mobilização global pela Amazónia, no sentido de equilibrar as forças para que este bioma deixe de ser a região com o maior nível de conflitos e assassinatos no Brasil e para que documentários como O Território e Somos Guardiões, gravados em pontos geográficos distantes e com povos indígenas distintos, não tenham guiões tão semelhantes.

por Anabela Roque
Afroscreen | 5 Agosto 2024 | Amazónia, floresta, O Território, resistência, Somos Guardiões