Dez filmes num livro sobre o cinema político brasileiro para tirar “os morcegos do baú”.
Autoritarismos no Brasil: o olhar de dez realizadoras brasileiras contemporâneas, da autoria de Lídia Mello (ed. Outro Modo) é um livro sobre cinema político. O livro reúne dez filmes que, como sugere uma das cineastas entrevistadas, Beth Formaggini, tiram “os morcegos do baú”, porque há que conviver com eles para resolver questões em aberto na sociedade brasileira. Os filmes foram realizados entre 2011 e 2019. Segundo a autora, neste período registou-se, no Brasil, o maior número de lançamentos de filmes sobre a Ditadura Civil-Militar assinados por mulheres cineastas.
No prefácio de Autoritarismos no Brasil, a realizadora portuguesa Susana de Sousa Dias classifica este grupo de filmes como “um arquivo sensível que comporta dimensões de subjectividade e afectos, que dá valor epistémico a experiências íntimas, tradicionalmente arredadas da historiografia mais conservadora” (Pág. 15).
Lídia Mello, brasileira de Belo Horizonte, Minas Gerais, vive em Portugal1, onde se “autoexilou” depois das eleições presidenciais de 2018. Um ano depois, a autora publicou Do Cinema de Béla Tarr, o primeiro livro editado no Brasil, dedicado ao cineasta húngaro. Autoritarismos no Brasil é o seu segundo livro e foi lançado em Portugal, em setembro de 2022, pela Editora Outro Modo. Depois de uma primeira apresentação na Casa do Brasil em Lisboa, o livro teve um segundo lançamento, em novembro passado, no Museu do Aljube, numa sessão que contou com a presença de Susana de Sousa Dias2 para uma apresentação crítica da obra.
Depois do prefácio, Autoritarismos no Brasil inclui as “palavras introdutórias” da autora num texto intitulado “Cinema político como meio de resistência e combate ao autoritarismo brasileiro”. No texto, Lídia Mello escreve sobre a motivação para a elaboração do livro, que surgiu da pesquisa que desenvolveu no Pós-Doutoramento em Estudos Artísticos/Fílmicos, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, entre 2019 e 2021. A autora afirma que o livro é um ato de resistência contra a postura política do governo brasileiro [2019-2022] e uma forma de se posicionar “através das vozes das realizadoras, de seus filmes e personagens” (Pág.24)
Na terceira parte do livro estão reunidas as entrevistas às realizadoras, organizadas pela seguinte ordem: Marighella (2011) de Isa Grinspum Ferraz, Setenta (2013) de Emília Silveira, Hoje (2013) de Tata Amaral, Retratos de Identificação (2014) de Anita Leandro, Os Dias Com Ele (2014) de Maria Clara Escobar, Pastor Cláudio (2018) de Beth Formaggini, Torre das Donzelas (2018) de Susanna Lira, O Processo (2018) de Maria Augusta Ramos, Deslembro (2018) de Flávia Castro e Democracia em Vertigem (2019) de Petra Costa.
Oito dos dez filmes em análise centram-se, direta ou indiretamente, no período da Ditadura Civil-Militar no Brasil (1964-1985), aos quais se juntam os filmes de Maria Augusta Ramos e Petra Costa que abordam a destituição da Presidenta Dilma Rousseff (2016) e o autoritarismo contemporâneo. Conforme a autora, trata-se de uma seleção de títulos que dialogam de forma rizomática3 “por múltiplas conexões: por linhas de militância, modos de resistência, gestos de narrar e testemunhar, como modo de aproximar ou distanciar memórias e o tempo presente, por afinidade ou diferenciação das heterogêneas estéticas fílmicas e por subtemas/temas internos” (Pág. 51).
No texto de contracapa, a investigadora e professora da Universidade Nova de Lisboa, Maria do Carmo Piçarra, refere a publicação do livro como um “gesto ético e político” necessário “quando o direito à memória e à verdade histórica é contrariado pela ascensão da extrema-direita, e o cinema é espoliado de apoio e condicionado.” A investigadora inicia o seu depoimento com uma menção à filósofa alemã Hannah Arendt para apontar um título alternativo para a obra de Lídia Mello: “Realizadoras brasileiras em tempos sombrios.”
Cinquenta e oito anos depois, as sombras da Ditadura Civil-Militar estão presentes na sociedade brasileira, que passou a ter que lidar com os ataques de um governo de extrema-direita, com a deformação democrática e, consequentemente, com a radicalização dos autoritarismos contemporâneos. Esta conjugação é discutida pelas realizadoras, não apenas no contexto temático das suas obras, mas também no das suas vivências como cineastas e mulheres brasileiras.
A reunião de um grupo de realizadoras de gerações e regiões diversas, experiências profissionais e cinematografias diferenciadas é um dos pontos a destacar do livro de Lídia Mello, embora seja de assinalar a ausência de realizadoras negras e periféricas no recorte seletivo. Não se trata aqui de uma falha de critério por parte de Mello, mas sim de um indicador da desigualdade de oportunidades na sociedade brasileira, que atinge também a produção cinematográfica.
Ao longo das entrevistas, as realizadoras descrevem processos criativos e investigativos, expõem as diferentes motivações e, sobretudo, discorrem sobre os “seus modos singulares de pensar um tempo histórico e o presente político do Brasil” (Pág. 36), conforme escreve a autora, que revela ainda que “queria perceber para além dos depoimentos e experiências políticas dos personagens dos filmes, o que as realizadoras pensam sobre o seu conteúdo, dentro e fora da tela, e apreender múltiplos olhares e vozes, com a intenção de fazer chegar este material a um amplo e diversificado público, que assistiu ou assistirá os filmes ou que terá acesso a este livro” (Pág. 55).
A pesquisa de cinema sobre a Ditadura Civil-Militar elaborada por Lídia Mello recua a 1965. Desde então, e até 2011, os filmes realizados por mulheres cineastas foram apenas cinco. Ao citar unicamente estes cinco títulos, sem mencionar outras produções dedicadas a esta temática, Mello não nos proporciona uma visão abrangente que enquadre a sua seleção. Já no âmbito do seu recorte, sente-se a falta de uma referência particular, mesmo que breve, ao trabalho de Lúcia Murat4, realizadora, ex-guerrilheira, presa política e vítima de tortura na Ditadura, que desde a década de 1980, trabalha a matéria fílmica e os elementos-chave em análise neste livro.
Lídia Mello atribui o número significativo de mulheres a dirigir filmes sobre o período ditatorial, entre 2011 e 2019, “a um contexto histórico sócio-político brasileiro apenas possível nos últimos governos de esquerda” (p. 23). De fato, a maioria das realizadoras convocadas reconhece que os modos de produção e distribuição mudaram nos governos de Lula da Silva e Dilma Rousseff. Várias citam que os seus filmes foram produzidos com apoios estatais, através do Fundo Setorial do Audiovisual ou de editais (concursos) regionais.
A realizadora Maria Clara Escobar, cujo filme Os Dias Com Ele é uma coprodução entre Portugal e o Brasil, relembra, na sua entrevista, que teve apoio financeiro do Edital Histórias que ficam, um concurso dirigido a documentários criativos - que já não existe - e acrescenta que “Bolsonaro destruiu a possibilidade de se fazer Cinema no Brasil com recursos do Estado. Mesmo os filmes que estavam em processo de contratação, já selecionados, foram afetados” (p.132).
Embora outras realizadoras se refiram a esta mesma problemática, Lídia Mello não nos oferece informação sobre estes mecanismos de apoio que incentivaram a produção cinematográfica brasileira, com especial incidência no género documental. Teria sido interessante apontar o marco transformador que representa a criação, em 2001, da Agência Nacional de Cinema (ANCINE)5, responsável por linhas de financiamento como o Programa Petrobrás Cultural (2003) e o, já citado, Fundo Setorial do Audiovisual (2006) que existiram ininterruptamente até à destituição da presidenta Dilma Rousseff. Depois, estes programas foram paralisados ou transformados.
Em contrapartida, em Autoritarismos no Brasil, Lídia Mello explora, com a relevância devida, outra das questões cruciais para entender a presença da temática da violência do Estado no cinema brasileiro contemporâneo: a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em 2011, com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período do Regime Militar. Embora a Comissão não tenha acionado processos de punição, os dados divulgados por esta tiveram um importante papel na efetivação do direito à memória individual e coletiva, assim como à verdade histórica.
Das diversas referências à CNV no livro, destacaria a contextualização feita pela realizadora Anita Leandro que a enquadra numa abertura política que teve outras repercussões como “o acesso das mulheres negras à universidade ou o acesso às informações de assassinatos de mulheres no Brasil com a Lei Maria da Penha”. Esta abertura ampliou “a presença das mulheres na vida cultural, política e social brasileira ao ponto de termos uma Presidenta mulher, mas que o machismo reinante não aceitou, ou melhor, aceitou no primeiro mandato, contudo, no segundo, não” (p.117).
Por seu lado, a realizadora Flávia Castro reforça a ideia da ligação entre a CNV e a produção cinematográfica surgida no período que o estudo de Lídia Mello aborda: “para além da importância de ter sido criada, com todas dificuldades que ocorreram para ela existir, foi fundamental e recolocou as questões da Ditadura no espaço público. Então, neste sentido, acho que ela foi muito importante, sim, para os filmes que vieram depois de 2011, porque as pessoas estavam novamente interessadas em ver as coisas.”
A CNV permitiu também a abertura de muitos arquivos da polícia política da Ditadura Civil-Militar. Lídia Mello procurou, no seu livro, mostrar como estes nutriram o cinema político, dando-lhe novos significados. Anita Leandro explica que o seu filme Retratos de identificação, que reúne materiais relacionados com quatro prisioneiros políticos, foi feito “nesta tentativa de valorizar os arquivos brasileiros […]. Descobri um material riquíssimo do ponto de vista estético, histórico e jurídico, pois há muitas provas de crimes nas fotos” (pp. 107-108).
Assim como os arquivos, Autoritarismos no Brasil trabalha também o potencial dos testemunhos como matéria fílmica. Exemplo disso é a análise do notável documentário Pastor Cláudio de Beth Formaggini, construído a partir dos depoimentos de um torturador: Cláudio Guerra, delegado ex-chefe da Polícia Civil, ex-agente do Serviço Nacional de Informações e responsável por incinerar militantes que se opunham ao Regime.
As vivências biográficas de algumas realizadoras também estão presentes na cinematografia trabalhada por Lídia Mello. Nas entrevistas, a autora e as cineastas conversam sobre a importância do cruzamento entre as memórias pessoais e as histórias narradas. Emília Silveira, ex-prisioneira política, afirma que fez o seu filme Setenta para compreender melhor a sua história e a da sua geração. Tata Amaral, que foi militante estudantil do final dos anos 1970 a 1980, revela que, com a sua longa-metragem de ficção Hoje, pôde entender “o dispositivo do esquecimento e apagamento que acontece na sociedade brasileira acerca da Ditadura” (p.96). Já Flávia Castro, que viveu exilada durante os tempos da repressão, recorreu às suas memórias afetivas para abordar a memória coletiva sobre os anos do Regime Militar no filme Deslembro.
Outros filmes, abordados neste livro, surgem da relação familiar das realizadoras com os seus personagens, colocando em confronto memórias e heranças traumáticas entre gerações. É o caso de Maria Clara Escobar, Isa Grinspum Ferraz e Petra Costa. A primeira coloca-se, inclusive, como personagem no seu filme Os Dias Com Ele, no qual o protagonista Carlos Henrique Escobar, seu pai, lida com a dificuldade de contar a sua experiência enquanto preso e vítima de tortura. Isa Grinspum Ferraz fez um documentário sobre o seu tio, o político e revolucionário Carlos Marighella. Já Petra Costa, filha de militantes que viveram na clandestinidade “coloca em conexão a história e a política nacional com a trajetória da sua própria vida e da sua família” (p.50) no documentário Democracia em Vertigem.
A proximidade das realizadoras às suas histórias não é exclusiva dos filmes selecionados por Lídia Mello, é uma tendência marcante na cinematografia que aborda esta temática no Brasil e nos países vizinhos. Este fenómeno merecia ter sido mencionado, enquadrando o vasto reportório fílmico que os países da América do Sul têm produzido sobre os seus regimes autoritários, sobretudo a Argentina e o Chile.
Embora o livro de Lídia Mello discorra substancialmente sobre as formas de revisitar e representar o passado, um dos seus principais propósitos é, com isso, colocar em discussão o presente. A transcendência, que esta reflexão instiga, fortalece a importância de Autoritarismos no Brasil. A questão formulada no título do prefácio de Susana de Sousa Dias: “O que falhou entre os autoritarismos do passado e do presente no Brasil?” é um dos pontos mais relevantes para a compreensão da força do atual fascismo no país. A questão atravessa toda a obra, como sinaliza a realizadora portuguesa no seu texto, e é abordada de forma direta nas entrevistas.
As realizadoras apontam problemáticas fundamentais para o debate da contemporaneidade brasileira, como a conivência da sociedade com a violência de Estado de antes e de agora. Alguns depoimentos recordam a Lei da Amnistia, de agosto de 1979, que embora tenha concedido o perdão aos perseguidos políticos, deixou os militares opressores impunes, contribuindo para o silenciamento dos crimes cometidos. Flávia Castro diz, a propósito, que “não foi feito no Brasil um trabalho sistemático sobre a memória, nem os governos Lula e Dilma o fizeram a contento, ainda que tenha havido iniciativas fundamentais de grupos diversos, como o Tortura Nunca Mais, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos…” (p.176)6.
Anita Leandro menciona, na sua entrevista, outro ponto essencial: o revisionismo. “É o que a extrema-direita faz hoje no Brasil […] não houve isso, não houve aquilo, não houve nem Ditadura. Vemos até juízes de direito dando novas versões para as violações de direitos humanos gravíssimas que aconteceram neste período” (p.107). Susanna Lira recorda o momento emblemático da votação do impeachment de Dilma Rousseff para entender esse revisionismo: “quando uma pessoa chega no Congresso brasileiro e homenageia um torturador e esta pessoa não sofre dano nenhum [referência a Jair Bolsonaro], é como se tivesse a garantia de que isso é possível” (p.156). O filme de Maria Augusta Ramos, O Processo incorpora esse momento na sua narrativa. A propósito, a realizadora ressalta: “quando ele fala isso publicamente […] E seu filho, também deputado, defende o Golpe de 1964. Eles legitimam toda uma violência e alimentam o fascismo, o militarismo e o preconceito de parte da população que pensa assim” (p.164).
Beth Formaggini atualiza este contexto a partir do que propõe no seu filme que, segundo aponta, “fala da violência do Estado na época da Ditadura, mas tenta compreender o Brasil de hoje, a situação em que vivemos de assassinatos diários da população mais pobre da periferia, lideranças camponesas, quilombolas, lideranças indígenas. Uma compreensão deste tempo presente onde vemos diariamente pessoas sendo assassinadas pela polícia, por grupos de milícias e paramilitares (ex-policiais militares) […]. Se formos buscar a origem da violência do Estado, chegaríamos ao Brasil Colônia” (p.136).
Com estas e outras reflexões neste sentido, o livro de Lídia Mello ganha a amplitude do registo do Brasil contemporâneo, um contexto que reforça a importância da produção e distribuição de um cinema implicado politicamente, assim como da edição de livros como Autoritarismos no Brasil.
Os ataques violentos e golpistas que se têm registado no Brasil nas últimas semanas - decorrentes da falta de reconhecimento da derrota eleitoral por parte do ainda Presidente da República - confirmam a pertinência do debate sobre a continuidade do passado autoritário no presente e são um exemplo inquietante da complexa realidade brasileira discutida no livro de Lídia Mello.
- 1. Lídia Mello é uma das sócias fundadoras e a Presidente do Conselho Fiscal da MUTIM, a Associação de Mulheres Trabalhadoras das Imagens em Movimento criada em 2022, em Portugal. Lídia Mello é também investigadora e crítica de cinema, e colabora também festivais de cinema em áreas como programação e curadoria.
- 2. A realizadora Susana de Sousa Dias é também professora e investigadora. Em grande parte da sua cinematografia trabalha questões relacionadas com a Ditadura portuguesa a partir dos arquivos do Estado Novo, alguns deles da P.I.D.E., a polícia do regime fascista português. Sobre esta temática realizou Natureza Morta (2005), 48 (2009) e Luz Obscura (2017).
- 3. Lídia Mello segue a noção metodológica do rizoma deleuziano: “Segundo Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995), um rizoma é composto por dimensões movediças, é um sistema a-centrado e não hierárquico” (Pág. 36). A autora utiliza os seus três primeiros princípios: de conexão, heterogeneidade e multiplicidade para promover a conexão entre os filmes e as realizadoras.
- 4. Os filmes de Lúcia Murat que abordam a temática dos “Anos de Chumbo” no Brasil: Que Bom Te Ver Viva (1989) Quase Dois Irmãos (2004) Uma Longa Viagem (2012) e A Memória Que Me Contam (2013).
- 5. A ANCINE foi criada no final do governo de Fernando Henrique Cardoso, mas começou a funcionar em pleno durante o primeiro governo de Lula da Silva.
- 6. A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos foi extinta pelo governo de Bolsonaro, no passado dia 15 de dezembro, duas semanas antes do final do seu mandato.