Isolados no emaranhado da violência amazónica: "A Invenção do Outro", de Bruno Jorge
As imagens da reunião de indígenas Korubo isolados e os seus familiares, há muito tempo separados, transmitem uma rara beleza e uma extrema subjetividade que engrandece o repertório do cinema brasileiro realizado na Amazónia. Os indígenas Korubo vivem ou isolados na floresta, ou em comunidades em diversas regiões do extremo oeste do Estado do Amazonas. O seu encontro é o culminar de uma expedição pelo Vale do Javari, liderada pelo indigenista1 Bruno Pereira, em abril de 2019. A viagem foi registada durante trinta e dois dias pelo realizador Bruno Jorge. Com início na cidade de Tabatinga, a expedição segue pelo rio Solimões rumo à floresta do Javari em busca do grupo isolado. A Invenção do Outro (2022) acompanha o reencontro entre familiares Korubo, afastados em consequência de conflitos com os vizinhos indígenas Matis.
Três anos após a expedição, o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips seriam brutalmente assassinados no mesmo Território Indígena (TI) do Vale do Javari, na fronteira tripla do Brasil com a Colômbia e o Peru. Cinco meses depois do assassinato, em novembro de 2022, o filme A Invenção do Outro estreou no Festival de Brasília, distinguido em quatro categorias, entre as quais a de Melhor Longa-Metragem. A estreia aconteceu três anos depois das filmagens e após um longo processo de montagem assumida pelo realizador Bruno Jorge. O indigenista teve ainda oportunidade de ver uma das versões do filme quase finalizado.
Povos originários em isolamento, indigenistas em missão e cineastas com a câmara.
No TI do Vale do Javari, a segunda terra indígena mais extensa do Brasil, encontra-se a maior concentração do planeta de indígenas em isolamento ou recentemente contatados. Isolados é o termo usado para grupos ou povos originários que evitam os indivíduos de fora da sua comunidade, sejam indígenas ou não indígenas. No entanto, o fato de evitarem esse contato, não quer dizer que não o tenham mantido alguma vez ou não o mantenham esporadicamente. O isolamento é, em geral, uma opção dos próprios indivíduos, mas nem sempre é voluntário.
Na floresta amazónica, os isolados procuram áreas remotas, de difícil acesso, onde vivem da natureza. Contudo, os indígenas isolados não estão somente na Amazónia. No Brasil existem estudos que estimam um total de cento e vinte povos a viver deste modo no país, sendo que apenas vinte e oito destes estão oficialmente confirmados. Na América Latina há dados sobre a existência de grupos isolados no Peru, Colômbia, Equador, Venezuela e também na região do Gran Chaco entre o Paraguai e a Bolívia.
Depois de muitos anos sendo alvo de todo o tipo de violências, sobretudo em decorrência de invasões que destruíram os seus territórios, o direito à autodeterminação dos povos indígenas em isolamento foi declarado em 1987 e incorporado na Constituição Federal Brasileira de 1988. A coordenação das políticas oficiais dirigidas a estes povos ou grupos ficou sob a responsabilidade da Funai, atualmente denominada Fundação Nacional dos Povos Indígenas. Compete a este órgão governamental promover os direitos e a proteção dos originários, sendo que para tal assumem a vigilância das suas terras e, por vezes, a missão de os contatar para garantir a sua sobrevivência.
Em várias ocasiões, alguns cineastas brasileiros e estrangeiros juntaram-se aos indigenistas da Funai, em missão de contato com os isolados. Ao longo do tempo foram produzidos o que Clarisse Alvarenga, professora e pesquisadora de cinema brasileiro, classifica de “filmes de contato, um tipo raro de cinema feito no Brasil”. Algumas das obras mais notáveis deste conjunto também reencenam ou recordam o encontro, mas raramente se limitam a abordá-lo. Em geral, estes filmes apresentam o contato como marco transformador e, a partir deste, oferecem uma perspetiva temporal das suas consequências – abordagem que a pesquisadora classifica de “movimentos extensos”.
Clarisse Alvarenga é autora do livro Da cena do contato ao inacabamento da história: Os últimos isolados (1967-1999), Corumbiara (1986-2009) e Os Arara (1980-1983), (Edufba, Editora da Universidade Federal Da Bahia, 2017), no qual analisa os filmes de Adrian Cowell, Vincent Carelli e a série de Andrea Tonacci, respetivamente. No prefácio do livro, o professor e também pesquisador de cinema brasileiro, André Brasil, refere-se a estas obras cinematográficas como “testemunhos da tragédia que o progresso impôs e continua impondo aos povos indígenas no Brasil” (Alvarenga. 2017. Pág. 13).
A Invenção do Outro de Bruno Jorge não faz o “movimento extenso” mencionado por Alvarenga, concentra-se na expedição e no momento do encontro que a pesquisadora chama de cena de contato, que descreve “como aquela cuja singularidade está no fato da relação entre quem filma e quem é filmado ser colocada em xeque – permanecer sob ameaça constante – a partir do contato físico que os indígenas estabelecem com a câmera, com o cineasta e com sua equipe” (Alvarenga. 2017. Pág. 59).
Antes da cena de contato, Jorge filma as várias etapas da expedição da Funai, desde o agrupamento da equipa, aos preparativos da missão. O realizador, na posição de observador, segue a rotina dos expedicionários, sem perguntas nem comentários. Ao contrário do que acontece em alguns filmes incluídos na pesquisa de Clarissa Alvarenga, o realizador não assume o papel de narrador, nem tem nenhum tipo de intervenção direta no desenrolar da missão.
Como escrevi, Bruno Pereira convidou para filmar a expediçãoo cineasta e amigo pernambucano Bruno Jorge, corealizador, com Mariana Oliva e Renata Terra, do documentário Piripkura (2017), cuja temática é igualmente dedicada a indígenas isolados e no qual Jair Candor, indigenista veterano que é também participante da missão ao Javari, é um dos protagonistas.
A primeira longa-metragem de Jorge foi gravada na região conhecida como Arco do Desmatamento, uma das áreas onde a agricultura avança fortemente sobre a floresta amazónica, no noroeste do Mato Grosso. É aqui que se encontra o Território Indígena Piripkura sob vigilância da Frente de Proteção Etnoambiental Madeirinha-Juruena chefiada por Candor. Conforme consta no site da Funai, estas unidades, conhecidas como Frentes de Proteção, garantem “a autodeterminação dos povos indígenas isolados sem contatá-los e sem nenhuma interferência nos seus modos de vida”. No entanto, o reconhecimento ou renovação do estatuto jurídico dos territórios indígenas, com as respetivas normativas contra intrusões, exige provas de que estes vivem ou circulam nos territórios a proteger. Trata-se de um procedimento burocrático que impõe inevitavelmente a busca periódica dos isolados ou dos seus vestígios e, por vezes, o contato forçado.
O documentário Piripkura segue Candor na floresta em busca dos isolados – com quem se relaciona desde 1989 – precisamente para comprovar se continuam a viver nas mesmas terras, um território cobiçado por madeireiros, fazendeiros e grileiros. O filme centra-se na história dos únicos isolados da região - Pakyî e o seu sobrinho Tamandua - e conta ainda com a participação da irmã de Pakyî, Rita, que vive em comunidade noutra região e que foi considerada, durante muito tempo, a única sobrevivente do massacre do povo Piripkura.
O filme venceu o Prémio de Direitos Humanos no Festival de Cinema Documental de Amesterdão e saiu do Festival de Cinema Rio 2017 com a distinção de Melhor Documentário. Esta obra revelou um olhar cuidadoso para com a realidade dos povos indígenas isolados, o que terá sido uma das razões que motivou o convite de Pereira a Jorge, para filmar a expedição ao Vale do Javari. O álibi que o indigenista encontrou para o colocar na expedição foi justamente o de legitimar a missão da Funai perante o próprio governo, conforme contou Jorge ao jornalista Bernardo Esteves da revista Piauí, em julho de 2023. O filme serviria, assim, o propósito de contrastar a política de desmonte da proteção dos povos indígenas e dos seus territórios, executada pelo governo bolsonarista.
A Invenção do Outro acaba por cumprir implicitamente esse objetivo, embora a conjuntura política não se encontre diretamente da narrativa; está antes documentada na tensão que as imagens e os diálogos revelam e dificilmente será ignorada ao vermos o filme que Bruno Jorge dedica in memoriam a Bruno Pereira.
O documentário evita uma construção heróica da personagem do indigenista e limita-se a testemunhar como exerce o comando de forma discreta, comprometido com o êxito da expedição e com os indígenas isolados. A missão de contato com os Korubo foi a última do género realizada por Pereira como funcionário da Funai. Nesta participaram cerca de trinta pessoas: especialistas da Funai, profissionais de saúde da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), mateiros (pessoas especialistas em se mover na floresta), intérpretes e dezassete colaboradores indígenas dos povos Mayoruna, Marubo, Kanamari e Korubo – praticamente todos presentes no documentário.
Havia ainda planos para outros filmes guardados. Numa entrevista a Ricardo Daehn do Correio Braziliense, em novembro de 2022, o cineasta falou do projeto de realizar uma iconografia dos isolados durante os próximos anos: “o que Bruno Pereira faria era articular com os Marubo do Alto Curuçá para que fizéssemos o segundo filme juntos, desta vez sobre uma missão de proteção e segurança na aldeia.” Mais tarde surgiu também a ideia de filmar o trabalho do indigenista na União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), uma equipa de guardiões que fazem a vigilância da região. Pereira passou a pertencer à Univaja após ser exonerado da Funai, na sequência da Operação Korubo que destruiu mais de sessenta balsas de garimpo ilegal na região, em setembro 2019.
Em maio de 2023, poucos meses depois da posse de Lula da Silva, a Funai fez uma declaração pública sobre o despedimento de Bruno Pereira, onde esclareceu que o indigenista “sofreu perseguição dentro do órgão que deveria protegê-lo e foi exonerado de sua função de confiança por incomodar criminosos, ou seja, por cumprir o seu dever como funcionário do Estado. Lamentavelmente, o servidor pagou com a vida pelo comprometimento inabalável que tinha com os povos indígenas.”
Na época da expedição de contato com os Korubo, Bruno Pereira era o responsável pela Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai. É interessante observar a relação entre a motivação de Pereira para filmar a expedição, o final das suas funções na Funai e a declaração que Jair Candor deu ao site Terras Indígenas do Brasil, Instituto Socioambiental (ISA), um ano depois do assassinato do colega: “Bruno era um cara guerreiro, um cara lutador, cara que fazia diferença no trabalho público. Eu tive a oportunidade de fazer alguns trabalhos com ele, lá no Vale do Javari, e logo percebi isso nele, que era um cara que ia para cima e queria resultado mesmo. A gente estava sempre trocando ideia, sempre se alinhando, ainda mais nesses últimos quatro anos de bolsonarismo ele ajudou para caramba nós, ali da Frente Madeirinha, inclusive toda hora tinha pedido de exoneração para mim na mesa do presidente [da Funai, Marcelo Xavier] e ele segurava as paradas lá.”
Destruição da floresta amazónica - uma história antiga
O lastro nefasto da política de destruição da floresta amazónica que ignora os seres que a habitam, humanos e não-humanos perdura no tempo. Em determinado momento da viagem, o realizador regista uma conversa entre os indigenistas Candor e Pereira sobre o processo traumático vivido pela população indígena, durante o regime da ditadura militar (1964 – 1985). Jair recorda que em tempos do Plano de Integração Nacional da Amazónia “o contato era mal feito” e Pereira recorda a lógica de então: “Amansa [os indígenas] que lá vai a estrada! Amansa que lá vem não sei o quê…”.
O período da ditadura militar foi especialmente devastador para a floresta e para os seus povos, sobretudo com a chegada de grandes obras de infraestrutura como a da estrada Transamazônica, no início dos anos setenta do século passado. A abertura da via ocupou terras onde viviam vários povos indígenas: no Estado do Pará, o povo Arara viu a área, por onde circulava, cortada ao meio. O assalto colonizador dispersou a comunidade em grupos e subgrupos que fugiram da frente de expansão - alguns Arara acabaram a viver em isolamento em lugares remotos. No seu livro, Clarisse Alvarenga atribui estes acontecimentos a “políticas governamentais nas quais o índio era – e ainda é, mesmo após a democratização do país – deliberadamente deixado de fora, excluído e exterminado em função de interesses econômicos em suas terras”. (Alvarenga. 2017. Pág. 263).
A série Os Arara, do cineasta Andrea Tonacci, reúne a experiência traumática vivida por este povo. Nos dois primeiros episódios, o indigenista Sydney Possuelo narra a história que levou os originários à situação de isolamento. Do terceiro, embora inacabado, fazem parte as imagens do contato feito com o grupo isolado dos Arara, Caribe do Pará.
Na mesma época, no Vale do Javari, os Korubo enfrentavam os forasteiros que procuravam petróleo e gás na região. Em defesa das suas terras, os originários reagiram com violência e mataram, com cacetes de madeira, dois trabalhadores da companhia estatal, Petrobras. Em decorrência desses ataques, a empresa abandonou a prospeção, mas não desistiu do Vale do Javari. Em 2014 foram anunciadas, sem consultar previamente a população, novas prospeções, o que voltou a provocar protestos. A história repete-se, seguindo a lógica mencionado por Alvarenga.
Há décadas que as invasões atingem os indígenas isolados, nas terras do Vale do Javari. O povo Korubo é um dos mais afetados, também por ser dos mais guerreiros; diversos conflitos provocaram a sua dispersão em grupos e sub-grupos. A sua história foi profundamente afetada pelos ciclos predatórios que assolaram a região, provocando vítimas: às vezes massacres indígenas, outras vezes mortes de serigueiros, madeireiros ou pescadores. No filme percebemos como é crucial, no momento do encontro, o empenho dos indígenas que fazem parte da expedição em explicar aos isolados quem são estes Brancos que se aproximam e porque o fazem.
Os perigos visíveis e invisíveis
No filme A Invenção do Outro, os indígenas isolados são protagonistas muito antes de entrarem em cena. Bruno Jorge não se parece importar com a sua ausência em cerca de metade do filme, uma vez que esta impulsiona a ação. A sua presença está no fora-de-campo, fora do enquadramento fílmico. Nesta etapa do documentário, a ausência surge com a potência da promessa ou do risco. Ter consciência do que está fora-de-campo completa o entendimento da narrativa, acrescenta ao visível o campo do invisível.
O realizador, responsável pela montagem das mais de sessenta horas de material gravado, não abrevia o guião para antecipar o encontro com os isolados; interessa-lhe explorar detalhadamente os espaços percorridos em vão, as estratégias de busca do grupo e dos seus vestígios como sinais da concretização iminente do contato. Os isolados são procurados pelos elementos da expedição e pela câmara de Bruno Jorge direcionada para o entrançado da floresta.
Na primeira metade do filme, parte da narrativa é construída pela abordagem dos riscos, inerentes à missão, que exigem uma preparação prudente da busca e do encontro. Em vários momentos do documentário, Bruno Pereira explica os perigos e os modos de procedimento aos participantes da expedição.
Em entrevista ao Correio Braziliense, o realizador descrevia o risco real: “Estávamos todos em perigo e o tempo todo, ninguém, que ali estivesse, não sabia disso. Na floresta a morte é, talvez, algo mais íntimo, dela se fala e frequenta de diversas formas. Seis colaboradores da Funai já haviam sido mortos em tentativas de contato anteriores com os korubo, o último por uma bordoada por trás enquanto filmava. Para além disso, havia as outras ameaças da selva, como invasores, animais e acidentes. O medo é uma premissa de sobrevivência, não há outra forma de permanecer por lá muito tempo sem fazer uso dela. Em compensação, a chave mental é não deixar esse medo te paralisar. O jogo é esse”. Bruno Jorge justifica assim a decisão “de incorporar a morte como sujeito [no filme]. Ela estava não somente em suspensão ou iminência, mas ali nos objetos daquela cultura, na rotina, nas narrativas, na nutrição, nos afetos. Todos os korubo têm trajetórias sangrentas incorporadas intimamente ao eu de cada um.”
Desde o início do filme, sabemos que a região “sofre pressões predatórias constantes”. Segundo informações publicadas em outubro de 2019, numa reportagem do projeto Amazônia Sem Lei da Agência Pública - agência de jornalismo de investigação - o TI do Vale do Javari “se transformou, desde o governo Bolsonaro, num dos focos de invasão de garimpeiros, ladrões de madeira, caçadores e pescadores ilegais em busca de tracajá (tartaruga de água doce) e pirarucu nas calhas dos rios Ituí, Itacoaí, Curuçá e afluentes do Javari.” Bruno Pereira e Dom Phillips foram assassinados, segundo apontam as investigações, precisamente por pescadores ilegais de pirarucu ligados ao crime organizado.
Por outro lado, nos anos anteriores à expedição, os confrontos entre os Korubo e os Matis, indígenas que circulam pela região dos rios Branco e Coari, tinham provocado mortes de ambas partes. Um dos objetivos do contato era acabar com esses embates trágicos, comunicando aos Korubo isolados a existência de um acordo sobre a partilha do território. Ao longo do filme, a hostilidade entre as duas etnias ganha protagonismo como responsável pela separação do grupo dos Korubo em confrontos ocorridos em 2015.
Entre os indígenas Korubo participantes da expedição está Xuxu, personagem fundamental para a construção narrativa. Os seus diálogos, em língua nativa, ampliam a compreensão do conflito. O indígena reencena um embate com os Matis, numa cena performativa que traz para o documentário um testemunho íntimo do carácter do seu povo, que o realizador apresenta sem condescendência, atento às suas particularidades.
Dentro deste contexto de perigos diversos, incluindo o clássico flagelo de contágio de doenças, o contato com os Korubo isolados era aguardado com tensão, depois de oito anos de preparação. Sobre a complexidade do momento, a pesquisadora Clarisse Alvarenga escreveu: “A circunstância concernente ao primeiro contato entre colonizadores e grupos indígenas se atualiza sistematicamente, desde a chegada dos colonizadores em 1500. Da atuação das frentes de expansão colonial até as políticas indigenistas empreendidas pelo Estado, o que está em jogo nesse controvertido encontro intercultural é uma intensa produção de significados e de implicações históricas, tanto para a sociedade nacional quanto para a população indígena que sobrevive e busca caminhos para se reerguer” (Alvarenga. 2017. Pág.17).
No encontro, a suspensão dos perigos dá lugar à aproximação coletiva
Na segunda metade do filme, o grupo dos isolados liderados por Makwëx transita finalmente do fora-de-campo para o centro do ecrã e comparte o protagonismo com os seus parentes. As cenas catarse do contato poderiam fazer parte de uma mise-en-scène pensada para culminar a narrativa do filme, mas são simplesmente resultado da emoção do reencontro filmado com empenho ético por Bruno Jorge, seguindo a intenção de captar tanto a riqueza estética como a força sensível do momento.
Em A Invenção do Outro, a realidade é transferida para o filme sem artificialidades e, nesta ocasião em particular, a câmara de Bruno Jorge aproxima-se em busca da troca, de certo modo equivalente, de olhares, diálogos e gestos. Sob as condições da imprevisibilidade e da descoberta, a vulnerabilidade atravessa os distintos sujeitos - o realizador, os expedicionários e os indígenas - e sustenta um retrato cinematográfico muito particular da transcendência amazónica.
O cinema brasileiro conta com outros registos importantes de momentos de contato ou da tentativa de o alcançar que desafiaram os limites da ética cinematográfica. Um dos mais emblemáticos faz parte do filme Corumbiara, no qual o realizador Vicent Carelli tenta gravar imagens, em 1996, na TI Tanaru, em Rondônia, do indígena isolado conhecido como Índio do Buraco. Falecido em agosto de 2022, este homem viveu anos sozinho na floresta e era o último sobrevivente do genocídio do seu povo.
O cerco ao indígena que recusava o contato, entrincheirado no seu esconderijo, durou seis horas. À aproximação da câmara de Carelli, o isolado “expõe, agudamente (na ponta de sua lança) os dilemas éticos implicados nesse avanço (da sociedade nacional sobre a vida dos índios; da câmera sobre os corpos; do visível sobre o invisível)” segundo escreve André Brasil no prefácio do livro de Alvarenga (Alvarenga. 2017. Pág.15). No filme, Vicent Carelli comenta este momento: “Ele só tentou me flechar por causa da câmera. (…) Por ironia da história é a câmera que fez ele existir perante a justiça.” Essas imagens permitiram confirmar a sua presença no território e a sua proteção através de uma série de interdições judiciais.
Com os Korubo, Bruno Jorge capta um encontro que se constrói sobre outra abordagem, tanto da parte da expedição da Funai como do próprio cineasta. Uma atualização da forma de contato que suspendeu o isolamento para o substituir por rituais de alegria, manifestações de confiança, trocas de conhecimentos. Uma articulação, mesmo que temporária, de um outro mundo possível.
- 1. Especialista em questões relativas aos povos e culturas indígenas.