Diário de um etnólogo guineense na Europa (dia 6)
19 de fevereiro – o homem que lavou o racismo de Portugal
Os tugas têm uma relação estranha com a água. Não consigo entender nada. Têm muita água, mas só a usam para sacalata. Vou explicar: o tio Paulo Banho dissera-me uma vez que os tugas não gostam de tomar banho, mas passam o tempo a lavar o carro.
Não entendia isso, o carro estar limpo é melhor do que a pessoa limpa? Mas depois percebi que provavelmente o tio Paulo Bano também não deve ter conhecido muitos tugas. E os tugas de Portugal dizem aqui que os tugas de França é que não tomam banho, e os tugas de França dizem que os tugas do Canadá é que não tomam banho. Uai!, é cada um a acusar o outro que não dá para acompanhar. Mas nota-se a relação estranha dos tugas com a água.
Aqui as bombas funcionam bem, abres a torneira e sai água limpa puss, mas os tugas também não a bebem, preferem ir comprar na taberna. Ah, aqui eles não têm nar, têm chineses e indianos. As tabernas aqui são muito grandes, eles chamam de supermercado. Mas estava a dizer, têm água limpa na torneira, mas andam sempre com bidões de água. Aqui, se não tiveres dinheiro para comprar água, estás nhanido, porque os tugas não patem, não oferecem mesmo, comem à tua frente no comboio e tu ficas a olhar e a engolir a alma e eles nem convidam. Mas já falo disso logo. Distraí-me de novo.
Os tugas não gostam de lavar, tinha dito o Tio Paulo Bano, mas eu descobri que os tugas lavam tudo e lavam muito. Por exemplo, há pouco tempo eles fizeram uma eleição onde apareceu um gajo chamado André Tontura… Tortura (?)… Sei lá, só sei que o miúdo é tonto, e ele disse que os tugas brancos são gente de bem, que os tugas pretos não são tugas e o que os tugas ciganos têm medo de sapos… Ehhhh! Lembrou-me que lá na Guiné também dizemos que os nar-kabras têm medo de kakris… (Kakris? São aquelas coisas que parecem com caranguejos). Hmm!, falando nisso, agora penso que lá na Guiné somos tão tontos como o André Tontura aqui… Adiante…
Esse tal de André Tontura vendeu ódio contra os tugas ciganos e os tugas pretos e os pretos que não são tugas, e lucrou com muitos votos, ele mandou uma tuga preta chamada Jassine para a sua terra, mas os chefes tugas disseram: “pá, isso é normal, é liberdade do expressionismo alemão”. Liberdade do Expressionismo alemão é um estilo inventado por um tal pintor chamado Hitler. Mas não acabou bem, porque virou nazismo. Mas “está tudo bem assim e não podia ser doutra forma”, como dizia o antigo chefe tuga Salazar, os chefes tugas de hoje lavaram essa ação do tonto do André Tontura.
Os chefes tugas lavam tudo, lavaram o colonialismo, dizem que foi o melhor colonialismo do mundo, um colonialismo amoroso, a maior fábrica de mulatos de todos os colonialismos, e que não era um colonialismo racista, mas lusotropical… mas lusotropical só lá nos trópicos, aqui na Metrópole, bem branco. Mas isso do “melhor e maior do mundo” é tão normal nos tugas. Eles até tiveram um gajo chamado Fernando Pessoa, eles colocam-no em tudo, cartões de banco, paredes de metro, postais para turista, papel higiénico, etc, porque ele era a maior pessoa do mundo, tão maior que até era cinco em um, por isso o chamaram de Pessoa… acho eu.
Divagações… divagações…
O Tontura foi votado por muitos tugas para mandar a Jassine para a sua terra, mas os chefes tugas em vez de pensarem que algo está errado, disseram: “pá, isso é normal, é a democracia. Nem sequer é anticonstu… anticonstipacional… anticonstitucional”. Isso, anticonstitucional. O Tontura disse ao presidente Marmelo que os pretos são bandidos e que não são fotogénicos e o Marmelo sorriu paternalista… grande Marmelo, ele abraça a todos, sem distinção, mesmo os que são anti-abraços. Sabem, o Tontura tem três pretos de estimação: primeiro, a Jassine, segundo, o Mamade (na verdade, o nome dele não é Mamade, mas como muitas pessoas, tanto homens como mulheres, têm andado a escrever por aí #eusoumamado, logo eu tentei aqui manter o género neutro), e, terceiro, o Lombito, tsc, tsc (estou a piscar o olho esquerdo… dá-lhe no lombo, dá-lhe).
Outros partidos viram o sucesso de Tontura e bateram palmas, descobriram que a melhor forma de ganhar votos é criar uma relação de amor-ódio com os pretos, ou então perderiam para o Tontura. Então, tanto o Ru-Paul Rio, o travesti da direita, do PSD (Pípol Sem Direção), como o Menino Chiquinho, do CDS-PP (Cristãos Dealers de Submarinos – Paulo Portas) começaram a procurar os seus pretos de estimação, tipo o Lombito, porque a Jassine e o Mamade são sacos de pancada públicos, ninguém pode reclamar propriedade sobre eles.
Eis senão quando morre um preto chamado Marcelino Mata, e então foi corrida ao ouro: que preto é melhor que um preto morto? Pensaram os ditos-cujos. Que melhor forma de mostrar que Portugal não é racista e que o colonialismo tuga foi português suave e que há tugas pretos de bem (na verdade, apenas um tuga preto, os outros voltem para a sua terra)?
De repente, todos os tugas patriotas odiantes de pretos começaram a carregar o Marcelino Mata nos ombros, o herói nacional, só depois de ele ter morrido, é claro, o grande preto Português. Agora que Marcelino Mata voltou para a sua terra, aquela terra que não rejeita a ninguém, e que todos temos em comum, ele é o máximo. Agora só falta dizerem que vão fazer uma estátua dele no Estádio de Alvalade, porque o Estádio da Luz já tem Eusébio. Afinal, Portugal não é racista e gosta de pretos, desde que eles conheçam o seu lugar, mantenham a matraca fechada iem!, e só cumpram ordens, “sim senhor branco!, sim senhor branco!”, mesmo que essas ordens sejam odiar e matar outros pretos. Como escreveu uma vez um conterrâneo meu, Martinho que Pina:
“Deus!, havia soldados pretos, na mata, a nata que mata, nascidos na Guiné, lá dentro, bem no centro, que bateram o pé e se tornaram comandos africanos e lixaram os seus próprios manos.”
A coisa é que ninguém quer saber do Marcelino que Mata, ele era apenas bom para ser usado como um símbolo anti-racista português, mas infelizmente ele dera muitos tiros e nem foi pela culatra. Portugal não é racista, e nem é racista os representantes do país tomar com herói alguém que é considerado um sanguinolento criminoso de guerra (com todas as verdades e mitos à volta disso) no país onde nasceu e ao qual não podia voltar.
Repito, nem o Marmelo, nem os generais, nem o Tontura, nem o Ru-Paul Rio, nem o Chiquinho querem saber do Marcelo, ele é uma pedra no sapato na tugalidade de hoje e na ideia da grande e justa nação tuga, mas tem de ser defendido a todo o custo, porque, vamulá só ver:
Marcelino Mata foi um chefe de António Spínola, que lhe dava as missões e continuava a dar missões apesar de saber da sua alegada crueldade e sanguinolência. Mas Marcelino era uma boa ferramenta, e Spínola foi também quem lhe recomendava e lhe dava as missões, as nomeações e as distinções. Mas Spínola é um herói português, um dos capitães de Abril, um dos mentores da liberdade tuga. Sendo assim, negar a heroicidade e as distinções do Marcelino não seria colocar em questão a heroicidade e as distinções do Spínola, um dos seu titereiros? Spínola seria tão ou mais criminoso que Marcelino.
É preciso então, senão lavar a imagem do colonialismo português suave, pelo menos não a deixar sujar-se, porque para quê fazer uma mea culpa, se a culpa foi desses pretos turras que não queriam deixar-se montar por pessoas claramente superiores a elas. Até o Marcelino Mata percebeu isso, por isso ajudou. Mas também não entendo muito bem a polémica, as forças armadas de qualquer país servem para matar, para matar e destruir, em nome da nação, e quem mais mata leva mais medalhas, foi e é sempre assim, se queremos mesmo indignarmo-nos com os medalhamentos de soldados matadores, não será que devíamos condenar primeiro a existência de braços armados dos donos do poder?
Acho que foi para não colocar em questão a ideia da nação, a ideia do simbolismo spinólico e outras tretas nacionalistas, que o Marmelo e toda aquela gente foram ao funeral do Marcelino prestar honras ao homem que lavou o racismo de Portugal. Mas quem sabe!
Todavia o que não entendo mesmo são os outros odiantes de pretos que querem expulsar um tuga preto de Portugal, para manter o bom nome de um tuga preto que nem sequer conhecem e a quem provavelmente diriam, se tivessem que disputar com ele um lugar na fila da loja de cidadão: “volta para a tua terra”.