Diário de um etnólogo guineense na Europa (dia 13)
8 de janeiro – na parede
O tio Paulo Bano disse-me: “Sobrinho, nunca critiques a comida dos outros: o cassequé e o netetu, que tu adoras, cheiram horrivelmente mal e podem provocar asco a outras pessoas. Mas não gostarias que falassem mal da tua comida, pois não?”. É verdade, eu estava chateado com os meus colegas tugas ali nas obras que me gozavam pois nunca me tinham visto comer qualquer outra coisa que não fosse arroz e eu respondi mal, e falei mal do bacalhau e das suas primas… não das primas do bacalhau, mas das deles… mesmo à pimba. Noutro dia conto, não vem ao caso agora.
Os tugas são muito orgulhosos da sua comida, à qual chamam de dieta mar mediterrâneo, e levam tão a sério essa coisa, muita carne e muito peixe, e deixam pessoas queimar calorias a nado no Mediterrâneo, talvez para engordar os peixes… quer’zer, deixam nadar as pessoas pobres que enchem barcos e querem vir brincar aos descobrimentos na Europa, porque houve uma vez que uns quantos homens ricos quiseram encontrar aquela porta onde a Rose não deixou o Leonardo de Carpa subir, naquele filme de barco Tita & Nick, mas deram-se mal e afogaram. Aí tentaram resgatá-los de todas as formas, gastando milhões que salvariam milhares de mortes horríveis com a dieta mar mediterrâneo.
Os tugas têm essa mania de qualificar pessoas, entre importantes e zé-povinho, mas adoram falar de direitos humanos. Quando falam disso é tão poético e tão lindo que até sentes vontade de arrancar o teu coração e entregar-lhes, mas logo depois percebes que afinal não é sobre humanos, mas sobre direitos de tugas brancos ricos. Por isso é que o André Tontura e os acólitos chamam a si mesmos de “tugas de bens”, apesar da maior parte dos acólitos que apoia essa tontice seja tão pobre material, espiritual e emocionalmente. Tadinhos.
O André Tontura é o maior impulsionador da restituição na Tugalândia, ganha até ao Magrão e ao Marmelo. Mas ele não quer restituir bens ou artes, ou coisa alguma, apenas pessoas, o slogan dele é “volta para a tua terra”. Ele sabe muito bem a catástrofe que seria se todos voltassem para a sua terra: imagina se todos os tugas pretos nascidos na Alfredo da Costa voltassem para Saldanha, o negócio dos hotéis e do alojamento local colapsaria, não haveria casas para tanta gente. E se aqueles tugas brancos nascidos nas Áfricas ou Ásias ou Américas ou outras Europas também voltassem? O Tontura não quer falar disso, apenas manipular um magote de pobres de espírito que se acham tugas de bens. É a miséria que os leva a isso, muitas vezes mais espiritual do que material. O tio Paulo Bano uma vez me disse: “Sobrinho, quem não gosta de si mesmo tende a achar-se superior a todos os outros, mas para disfarçar a insegurança, e sem noção de si mesmo, pensa que o mundo lhe deve alguma coisa. Quando é cobarde e fraco procura mostrar valentia atacando os que estão em mais fraca posição.” Não sei se concordo com tudo o que o tio Paulo Bano disse, mas concordo que uns atacam outros para se sentirem superiores ou transferindo a agressão.
Os tugas de bens ficaram fartos de tentar restituir os pretos de volta para a África, não está a dar resultado. Também acharam que a dieta mar mediterrâneo não está a ser eficaz o suficiente, principalmente agora que a dieta das moambas, das cachupas e dos caris estão muito na moda. Começaram então a dizer: “Pá, assim não dá, pá. Chegam cá e tomam os nossos trabalhos, pá, e tomam as nossas mulheres, pá, nós não parimos e eles parem como coelhos, pá, estão a renovar a nossa população, pá, tornam-se deputados e primeiro-ministros, pá, até estão a pagar mais impostos de que nós, pá. Não, assim não pode ser, há cada vez menos tugas tugas. O que vamos fazer, pá?” Então, nessa de policiar os pretos, quando ouviram aquela música d’As Gingas, Encosta na Parede, tiveram uma ideia: “vamos encostar-lhes à parede, pá, e vamos fazer cartazes a dizer ‘não se venham’, pá, e vamos pôr a palavra ‘encostar’ entre aspas, pá, assim eles vão perceber que só podem vir-se contra a parede e logo não vão ter filhos, pá.” Decidiram mandar a polícia fazer isso, mas como nem há muito tempo a polícia tinha morto um preto, acharam melhor dar uma folga aos pretos e foram atrás dos sul-asiáticos, não vá o diabo tecê-las. “Sabem, temos de mostrar aos pretos que agora são nossos amigos, pá, que somos todos lusotropicalistas e tal, pá, vamos atacar os sul-asiáticos, pá”… o tio Paulo Bano disse-me para não escrever “mon… tez”, para não reforçar termos depreciativos, mas é claro que os tugas não dizem sul-asiáticos; também acho que agora que essas pessoas ficaram relevantes no campo da opressão tuga, precisou-se de um termo, para as encaixotar a todas no mesmo pacote, e sul-asiático pareceu o mais simpático, porque ásia-meridionalense é muito difícil de dizer… continuando… os sul-asiáticos são the new black e são muitos.
Os tugas de bens ficaram com medo que eles unissem forças com os pretos, então começaram a dizer que os pretos são lusófonos, partilham a cultura, rezam avé-marias e não são obrigados a jejuar trinta dias por ano. Muitos pretos embarcaram na cantiga e chegaram até a votar no clube do Tontura, porque, dizem: “é o único clube que vai parar com essa sem-vergonha da invasão dos indianos. Os indianos chegam e arrendam as casas todas por preços altos e nós ficamos sem maneira de ter casas; depois aceitam trabalhos por preços mais baixos e nós ficamos lixados. Além do mais, nós somos pobres quando chegamos lá das Áfricas, mas eles chegam logo com muito dinheiro. Temos de proteger a nossa cultura lusófona, senão as nossas mulheres vão acabar todas acabar a usar lenços e a falar árabe.” (Eu nem sabia que os indianos falam árabe… desculpem, sei que agora não é politicamente correto dizer “indianos”, tem que se dizer “nativo-americanos”, mas vou permitir-me dizer indianos, porque eu não sou racista, tenho amigos pretos.)
Os tugas de bens pobres, quando percebem o vazio na conta bancária e na própria existência ficam confusos, frustrados e desiludidos com a vida, refugiam-se numa construção nacionalista e artificial de uma tugalidade com cheiro a bacalhau de Noruega (nem o bacalhau é tuga). A pobreza é uma cena mesmo lixada, pois em vez de gerar solidariedade, pode ser usada como ferramenta para a criação de hierarquias fictícias, para manter os pobres ocupados a guerrear uns com os outros. Os Tonturas e companhia aproveitam-se disso, manipulam ressentimentos e fomentam ódio e confusão, encontrando nos pretos ou nos imigrantes bodes respiratórios para os fiascos da vida dos tugas tugas, e esses não percebem que a questão é a exploração e a má distribuição de recursos, que afeta todos os que não são da elite. Os tugas de bens pobres são atirados contra os negros e os ciganos e esses contras os sul-asiáticos, e todos uns contra os outros. Agora também quem é usado para fazer o trabalho sujo é a Pessipê.
A Pessipê foi lá no Martin Moniz (aquele lugar onde uma vez um tuga se entalou num portão), e disse que é para reconquistar Lisboa, mas como o Castelo de São Jorge já está tomado pelos turistas ricos, então sobrou para a rua do Benformoso. É uma espécie de justiça social, dizem, para os pretos não andarem pra aí a dizer que são os únicos que são encostados à parede, principalmente os adolescentes e jovens nas noites lisboetas ou em bairros sociais. A Pessipê estava tão orgulhosa do seu feito, quando um chefe dos tugas, o Luís Mortenegra, deu-lhe um tatau na mãozinha e disse: “é pá, sou muito honesto, pá, visualmente aquilo não ficou bem, pá, não é nada cinematográfico, pá, até parecia um filme de Manoel de Azeite Oliveira, pá, estava tudo parado e encostado à parede, pá. Faltou dinâmica e bom enquadramento, pá, mais cores, mais cores, pá”. Não sei o que ele queria, talvez algum caril espalhado pelo chão ou atirado para o ar, mas se fosse isso podia ter programado o encostamento à parede para durante um festival holi. Ou talvez o Mortenegra pensou que a Pessipê queria fazer uma performance de estátuas vivas na parede à la Borubodur.
Alguns andam praí a dizer que aquilo é para provocar sensação de insegurança, aumentar o policiamento, pressionar o bairro até chegar ao expurgo dos sul-asiáticos da zona para ajudar o negócio imobiliário, e como bónus ganhar votos dos pobres tugas de bens e pretos distraídos. Mas eu cá desconfio que tem muito a ver com a dieta mar mediterrâneo. O tuga tuga tem orgulho do seu arroz malandro e pão alentejano, não quer isso substituído pelo byriani e cheese nan, e essa rua é a representação disso, então a Pessipê foi lá para controlar a zona. Isto é bem paradoxal, porque de acordo com um vídeo que anda por aí, de um tuga chamado Zé Herman José Saraiva, o tuga de verdade come tudo, seja mulher negra escurecida ou mulher de olhos estranhos, e faz filhos à fartote, por onde quer que passe. E deve ser isso o grande problema, porque os homens tugas tugas dizem sempre que os imigrantes vêm cá tirar o seu trabalho e a suas mulheres, por isso agora andam desempregados e a fazer trabalhos manuais, sem patrões e sem mulheres que os valham, logo, de bolsos vazios, não podem fazer filhos para honrar a grande alma tuga. Então eles ressentem-se das suas mulheres, que também têm alma tuga e que também honram a herança gloriosa dessa dieta que não olha para a cor e feitio dos pratos, e resolvem atacar a concorrência… Bem, basta de sexidade.
Enfim, imagino o que fariam os tugas de bens se toda essa gente que limpa as cidades, colhe as frutas e tomates cherries que enchem as suas mesas, calceta os seus passeios, limpa as suas casas e escritórios, leva-os de uber de um sítio para outro e entrega as suas comidas, se fossem embora. Se os tugas de bens pobres, ou os pretos, ou os ciganos, ou os sul-asiáticos distraídos, acordassem para as questões das desigualdades estruturais, do medo e da diferença usados para dividir, entenderiam que a luta não é uns contra os outros, mas todos ao lado uns dos outros, porque os problemas são comuns: salários baixos, habitação precária, falta de oportunidades, escassez de transportes públicos, guetização, falta de acesso a espaços culturais, entre outros. Os tugas de bens deviam largar essa ilusão de superioridade e tugalidade exacerbada, para verem a realidade. Que dá muito trabalho, dá, mas, no fim, percebe-se que não é a língua diferente ou a cor da pele que cria a desigualdade social.
Por causa desse encostamento nada cinematográfico da Pessipê, milhares de pessoas sairam à rua para manifestar a indignação. Muitas pessoas a dizer a mesma coisa: “não nos encostem à parede” e a estragar a música d’As Gingas. O Tontura e uns dezenas de acólitos também saíram do outro lado. O Luís Mortenegra, ao ver isso, excitou-se a pensar já nos votos e disse: “Estão a ver, pá, é tudo extremistas, pá. De um lado estão extremistas da direita, a querer violentar e deportar toda a gente, e do outro lado estão extremistas a pedirem pacificamente para não serem violentados… que extremismo, pá. Já não podem ser violentados em paz que agora levantam-se logo e põem-se a marchar atrapalhando o trânsito, pa. É pá, já não se fazem vítimas como antigamente, pá, que sofriam calados, pá. Por isso, nós, nós é que somos o centro, pá, somos os pilatos, pá, os razoáveis, pá, porque tanto criticamos a estética dos violentadores, como o barulho dos violentados, pá.” Já imagino slogans da próxima campanha: “para abusos mais estéticos e menos ruidosos, vota o Pessidê!”, “entre racistas e vítimas não se mete a… crítica” (tem de rimar). É só um a tentar tomar o lugar do André Tontura, estão todos a sair do armário.
Contudo, tenho de dizer que fico sempre surpreendido com os bons tugas que, apesar das cagadas dos seus chefes da Tugalândia, ainda fazem a coisa certa. Foi muito fish ver na rua toda essa gente unida: muitos tugas brancos, tugas pretos, pretos aficionados a tugas, pretos pretos, sul-asiáticos, norte-asiáticos, médio-orientais, orientais, americanos, norte-americanos, sul-americanos, africanos, europeus… desisto.
Parece que mesmo na unidade ainda dá para dividir.