Das heranças e dos herdeiros
(Este texto foi escrito em setembro de 2023 para ser publicado num caderno da MICAR, não sei se chegou a ser publicado, mas republica-se aqui, com ligeiras revisões.)
O racismo está bem fundamentado na escravatura. Se hoje revoltamo-nos porque pessoas são equiparadas a mercadorias, durante muitos séculos a escravatura estabeleceu que determinadas pessoas, por vestirem uma pele diferente não eram humanas, não eram pensantes, portanto, produtos, seres inferiores.
A religião cristã foi usada para legitimar essa ideia, negando alma às pessoas negras ou chamando-lhes de netos amaldiçoados de Noé, descendentes de Cam, marcados pelo deus cristão para servir os outros. A utopia cristã do pós-vida aceitava a convivência do leão e do cordeiro no paraíso, ou seja, de animais, mas era inconcebível hospedar um preto nesse lugar (nem mesmo como porteiro ou limpador das nuvens fofas ou como cuidador de bebés anjinhos brancos).
A ciência e a filosofia eurocêntricas reforçaram essa ideia do preto ser inferior, tirando-lhe a capacidade de pensar e negando-lhe a história, de tal modo que ainda hoje se fala como se o mundo africano só tivesse começado a existir a partir do século XV. A história da África é, muitas vezes, catalogada em pré-colonial, colonial e pós-colonial, sempre em função da Europa. Com políticas de chicote e da cenoura, algumas violentas de controlo e de repressão, outras pintadas com possiblidades de proximidade aos lugares de poder, desde que se converta e se aceite a superioridade branca (como a lei de Indigenato, por exemplo), os pretos começaram a acreditar mesmo nessas concepções criadas para os violentar e menosprezar. A ponto de, anos após as ditas independências, vemos países africanos reproduzirem estruturas coloniais e, mesmo na academia, ainda se fala de pós-colonialismo em vez de pós-independências (ainda que fictícias). E, se a coisa é tão má nesses países africanos, onde é o negro que governa o preto, para as diásporas negras em “terras-de-brancos”, é então pior, porque o racismo estruturou as nações mundiais e deixou um legado.
Ao falar desse legado, Debaixo do Tapete, de Carlos A. Costa e Catarina Demony (2023), parece um filme corajoso, considerando o seu ponto de partida. Uma beneficiária do sistema colonial esclavagista aponta o dedo à sua própria família, trazendo à tona, ela mesma, o que todos os outros falam em segredo. Os Matosos da Câmara foram escravocratas, isso não espanta, podia ter sido outro nome qualquer. O que espanta mais é que hoje, enquanto portugueses negros (descendentes de territórios invadidos que viraram agora países) batalham muito em Portugal para repensar os nomes das ruas e os monumentos que exaltam o passado colonial português, em Angola, por exemplo, Matoso da Câmara é nome de uma rua. Sim, enquanto em Portugal o movimento negro luta e exige o reconhecimento pelo Estado da violência do passado colonial e o fim da sua glorificação e exige pedidos de desculpas, os nossos líderes lá, ainda colonizados económica e mentalmente, porque mantêm o sistema capitalista e classista a operar, estão a lutar para segurar as suas máscaras brancas, subservientes das potências europeias.
Há um tempo, Marcelo Rebelo de Sousa pediu desculpas a Inácio Lula da Silva por Portugal ter colonizado o Brasil, naquilo que é só uma piada de mau gosto para os países africanos que foram realmente colonizados e que reforça e põe a nu o racismo estrutural e institucional. É um presidente branco de um país branco a pedir desculpa a um presidente branco de um país branco que se criou num território não-branco e que ainda hoje oprime os não-brancos e que continua a colonizar os indígenas e os quilombolas, retirando-lhes cada vez mais territórios. Foi o filho do rei de Portugal que se tornou o primeiro rei do Brasil, foram os filhos dos nobres portugueses que se tornaram os novos governadores brasileiros. Aquilo não foi independência, foi herança, foi continuidade, uma linha edipiana. Quem Portugal começou a colonizar não foram esses brancos, foram os indígenas e foram os africanos desterrados (Portugal vendia, Brasil comprava), e o Brasil continuou a colonização, mas agora coloca-se como vítima. Esse pedido de desculpa do Marcelo ao Lula é outra vez mais uma ativação do comércio triangular, Portugal a tomar, desta feita, a revolta e a indignação dos países africanos que colonizou e a canalizá-los para o Brasil, com vista a ganhar mais mercados e mais benefícios económicos. Todavia, é bom dizer, não conheço nenhuma manifestação dos nossos líderes africanos a exigir também esse pedido de desculpas, mesmo que hipócrita.
O pedido de desculpas do Marcelo ao Lula não parece ter criado ondas de indignação dos portugueses brancos. Essa onda é simplesmente reservada para qualquer ativista negro que se atreva a falar de racismo ou de justiça social, porque isso, Portugal não tolera. Portugal pode ter tudo, mas tudo: padres pedófilos, juízes homofóbicos e machistas, ladrões do erário, pais que violam filhas, assassinos de mulheres, entre tantos outros criminosos, mas Portugal não tem racistas e, muito menos, é racista. Aliás, como se diz, ninguém pode ser culpado pelos crimes coloniais (apesar de ser beneficiado por eles), sem falar que, na altura, aquilo era bem normal. E também se diz que não se deve olhar o passado com olhos do presente. E se parece haver racismo em Portugal a culpa é do Mamadou Ba, da Joacine e desses pretos todos que falam disso e até se atrevem a queixar-se dos polícias.
A negação do racismo em Portugal, inclusive pelo Estado português (a não ser quando lhe parece conveniente, como no caso de António Costa), constrange os movimentos antirracistas, coloca alvos nas costas dos ativistas, alimenta a prática e institucionaliza-a. O Estado português gosta de sacudir a responsabilidade do colonialismo (afinal, foi por isso que se fez o 25 de Abril, não?), mas glorifica os títulos imperiais que originaram esse mesmo colonialismo e dos quais é herdeiro.
Debaixo do Tapete foca bem essa questão da herança colonial e da redução de alguns seres humanos a nada e a negação de direitos e oportunidades a eles. São precisos mais filmes corajosos deste tipo para falar do racismo e desse passado violento colonial que ainda reverbera neste presente em outras formas de violências, porque é uma história que partilhamos todos, tanto quem sofre com ela como quem se beneficia dela, portanto, devemos todos falar dela. É preciso brancos também entrarem na discussão, mas sem controlar a roda. Todavia, falar não basta. O filme, no quesito da herança de benefícios não me satisfaz. Começa com a narradora a dizer que tem consciência dos seus privilégios e acaba com uma outra pessoa, do mesmo lugar que ela, a dizer que é obrigação de toda a gente falar dessas práticas que no passado eram normais e que beneficiaram muita gente, e fica por aí. Porém, eu quero ver um segundo filme no qual, essas pessoas que se reconheceram privilegiadas, contam se redistribuiram os seus privilégios depois de terem conhecimento deles e a forma como o fizeram. Se não, as suas falas podem acabar reduzidas a uma mercantilização da culpa branca.
Na esfera social, os privilégios existem quando faltam direitos a outros, mas não é porque alguém reconhece os seus privilégios que os outros ganham direitos. Portanto, não basta apenas falar, pedir desculpas, bater no peito ou fazer monumentos que se tornam pontos turísticos e ajudam a cidade e o país a fazer mais dinheiro, capitalizando-se de sofrimentos que causou (vejamos o caso de Auschwitz quem depois de ter sido um campo de morte e de horrores, agora movimenta milhões e é bem instagramável).
Repito, é necessário fazer mais que monumentos, filmes ou pedidos de desculpa. É preciso, entre muitas outras coisas, trabalhar os discursos, trabalhar as formas de educação, investir na educação das populações mais vulneráveis, trabalhar e melhorar as relações entre os povos e os países, melhorar as condições de trabalho e de acesso aos espaços e meios de circulação à população preta e pobre portuguesa ou em Portugal, dignificar as histórias dos países africanos que foram colonizados, sem criar ou repetir narrativas que promovam complexos de inferioridade.
Claro que tudo isto que acabei de elencar não é o papel do filme ou da realizadora, mas estou à espera do segundo filme.