Caro Amigo Revolucionário (os Dez Mandamentos)
Caro amigo revolucionário,
Espero que esta carta te encontre de boa saúde, a gozar a juventude em toda a sua plenitude, que nunca madures e que continues sempre cheio de ideais nobres de uma mudança que valha o seu nome, pois, meu caro, da forma como isto anda nesta banda, esta demanda de mudar o mundo está cada vez mais a ir para o fundo e eu acho, meu caro revolucionário que, neste caso, ao contrário do que proclamamos, o problema somos nós. Pois…
… Enchemos a cabeça de conceitos e preconceitos, e achamos que daqui somos os melhores sujeitos, os poucos com a visão clara do que é o mundo; e dizemos fecundos que este mundo absurdo é imundo; que este conjunto de humanos moribundos no fundo não são mais que defuntos; e que nesta baia são todos da mesma laia, vistam calças ou saia, escravos do capital, dominados e formatados pelo sistema social, a fazendo um caminho trivial, vivendo com mordaças na andança de um Sísifo, sonhando com o idílico num pesadelo nítido, mas com os olhos húmidos e túmidos, empurrando montanhas, comprando banhas de cobra, por isso só lhes sobra a nhanha que transborda pela boca, pois nem uma foda decente este povo invoca; todos Sísifos estúpidos que vivem em falácias.
Até memorizamos os nomes dessas falácias, em latim, pois assim dá para fazer chinfrim e mostrar que somos a nata beata desta casta de intelectuais, e mais, usamos os nomes dessas falácias para atirarmos com audácia, cagança e pujança na cara de todos os outros, porque os outros são uns grossos. Intelectuais?… Os intelectuais somos nós! Sim, podem também ser outros, mas só uns poucos e só um pouco, só na medida em que concordam connosco. Reclamamos todos nós, no alto da intelectualidade de sermos os donos da verdade ou, quanto muito, somos os amigos dos donos. E como o resto do mundo está enganado, cabe então a nós a tarefa de acordá-lo.
Caro irmão revolucionário, a revolução será desta vez, pois somos donos da sensatez, somos fiéis às nossas fés de que vamos desfazer à desfaçatez dessa gente incoerente sem viés decente. Será a revolução final, pois será a revolução mental, por isso, é preciso ensinar a esses tipos que querem fazer este serviço os DEZ MANDAMENTOS para ser por certo um revolucionário atento, erudito e convicto.
Revolucionaaaaaários! Em marcha!
ARTIGO PRIMEIRO: O revolucionário tem que ser porreiro. Então dá jeito teres uma camisola à altura, que manifeste a tua postura. Revolucionário que se preze dever ter uma camisa estampada com a cara de Che Guevara, comprada ali na Zara ou em qualquer outra banca… coitado do Che Guevera, que odiava o capitalismo e agora é vendido pelos tipos contra os quais lutava aos tipos que dizem que o amam… mas na falta de Che Guevara aceita-se um pano estampado com uma folha de canábis, pois revolucionário de verdade tem que puxar no haxixe, pois isso é que é fixe, e tem de dizer que o mundo só é infeliz porque aqui o haxixe é tratado como se fosse um vício, por isso lá na Jamaica é que é o paraíso, pois pelos vistos ali é só festa e dança e o sofrimento não existe.
ARTIGO SEGUNDO: O revolucionário tem de parecer imundo. Por isso, pára de te pentear, o tempo à frente do espelho é para desarranjar, só desta forma é que mostras que cagas nas normas. Usa dreadlocks, cortes loucos, penteados a Zé, camisa de Bob Marley, pano camuflado, gorros jamaicanos e charros, é claro. Se puderes, vai mais além e pára de te lavar, com essa atitude vais mostrar que estás ciente dos teus privilégios, aproveita esse ensejo de não banhar para mostrar que ao poupar água estás a ajudar as pobrezinhas das criancinhas na África que não têm água potável nem sequer para beber.
ARTIGO TERCEIRO: O revolucionário deve ser expresso. Tens de criar uma marca para a revolução, uma marca que abarca a tua preocupação, mesmo que seja uma coisa banal, por exemplo… hmmm… usa um zmiovka checo, como o de Amílcar Cabral, um boné preto caído à Pantera Negra, usa a cor preta, combina-a com verde, vermelho e amarelo. Não importa se esses cotas eram autênticos e originais e que todo o mundo topa que, sem tento te esvais, a fazer cosplay. Vai lá, vai! O teu nome original é ordinário para revolucionário, escolhe um nome de uma paleta africana (?), escreve-o com YpsYlon, dabliW e Kappa, porque essas letras são africanas(?), percebes a manha?… Não? Lê o MYA KOWTO e vais entender a piada. Como bom revolucionário, tens de vestir sempre um pano de batik, mesmo que esse pano seja originário de Indonésia, não tem problema, porque nesta cena, tudo o que não é branco privilegiado é então irmão amado, além do mais, esse pano é agora africano.
Revolucionaaaaaários! Em marcha!
ARTIGO QUARTO: O revolucionário tem de odiar os bancos (e brancos, se der jeito, mesmo que sejas um, mesmo que só a fingir). Por isso não pára de mostrar a este povo ordinário que se mata a trabalhar para um mísero salário, de que o melhor a fazer é despedir-se, e que só ganha mal porque quer continuar nesse trabalho infernal que só alimenta o capital. Grita a plenos pulmões que odeias o capital, mas não faças o pecado de negar de herdar o dinheiro do papá… ou da mamã. Fala mal da burguesia, mas não largues a mordomia de ter o pilim todos os dias. Passa o tempo nos bares a fazer esgares, em conferências de copos, onde possas gritar como louco de como é um nojo que o nosso povo insosso não tenha nem um pouco para encher o bojo.
ARTIGO QUINTO: O revolucionário tem de ser distinto. O motivo mais lindo de um revolucionário é também fazer um trabalho de missionário. Lembras-te do Che Guevara, o homem que nunca parava, que andava de terra em terra atrás de uma boa guerra? Pois, não te peço esse preço, mas tens que mostrar o teu apreço indo para a África ajudar os pobres pretos, pois isso é o mais certo. Mas enquanto estás em aqui no centro, podes continuar cego às pessoas ao teu cerco, pois este esterco europeu não merece o teu zelo, aliás nem tem estilo ajudar esses matrapilhos, porque se fizeres fotos não ganhas muito gostos como os que ganhas quando fazes fotos com miúdos pretos. Louco, hein!, certo?
ARTIGO SEXTO: O revolucionário tem de ter um doutoramento. Não podes ser um pé-de-chinelo intelectual, tens de saber te movimentar pelas filosofias de quintal, conhecer os autores e citá-los tal e qual, mas ao mesmo tempo não te podes calar, tens que continuar a falar mal do sistema académico, enquanto preparas a tua tese respeitando o arquétipo para saíres dali doutorado e com mérito. Um bom revolucionário é aquele que é um dos três A: ou Académico, ou Artista ou Ativista, mas se fores um A3 ou um Triplo A, acredita que não há, e possivelmente nem haverá, revolucionário mais chato do que tu.
Revolucionaaaaaários! Em marcha!
ARTIGO SÉTIMO: O revolucionário deve ser ético. Mas não deixes que isto de ser ético te torne caquético, porque se fores muito reto a tua revolução vai falhar. Tens de batalhar pelo teu politicamente correto, desde que não te afete, entretanto, não vás com jeito de olhar para os campos cinzentos, agarra-te apenas ao teu conceito, mesmo que se torne abjeto falar em nome da tua liberdade para asfixiar a liberdade de outras gentes.
ARTIGO OITAVO: O revolucionário deve defender os direitos humanos. Não têm necessariamente de ser todos os humanos, mas quanto mais fulanos tiveres debaixo dos teus braços ou cobrires com as tuas asas, melhor é para as tuas causas. Não faças pausas, continua, faz a luta, se faltarem inimigos, espeta o próprio umbigo; vá, continua, cria figuras, inventa brumas, ebraceja, donquixoteia, afinal os moinhos estão aí mesmo para isso. E se não te chegarem os humanos, há os direitos de animais, mas não queiras ser vegano, nem partilhar com os demais, pois todos os animais são iguais, mas um revolucionário é o mais igual dos animais.
ARTIGO NONO: O revolucionário dever mover o povo. Até aqui, nada de novo, pois esta sociedade move-se como uma roda, e todo grande conservador já foi um passado revolucionário, e todo o grande revolucionário é um futuro ditador. Por isso, tens de começar a treinar novas formas de despotismo, cria novos classismos, novos ismos, mesmo que cópias maquilhadas de ismos já antes urdidos, porque depois da revolução vais reclamar com vazão o direito de ser potestade, porque foi o teu ativismo que libertou a sociedade.
Revolucionaaaaaários! Em marcha!
ARTIGO DÉCIMO: O revolucionário deve escrever textos. O revolucionário escreve longos textos para debitar as suas rimas e as suas críticas vazias, onde fala de problemas sociais, de outros tantos e muito mais; onde fala de revolucionários bem-intencionados que não fazem um caralho para ajudar os outros ao seu lado, e que só procuram estrelato usando os outros como planos; fala de revolucionários perdidos em questões existências e que não sabem mais o que procuram e então se entretêm a brincar a anti-isto e anti-aquilo, mas que não arredam um centímetro e mandam tudo para os brejos quando se mexem com os seus privilégios; fala que a sociedade está zumbificada, parecendo por vezes que ele conhece a estrada; fala, num discurso igual, que é preciso uma mudança radical para acabar com o capital, mas consumista também não vive sem comprar e nem quer abandonar o conforto de um lar, de uma casa e de uma cama, e no resto dos dias da semana, também anda com a manada. Mas a contragosto, diz ele, vê-se no meu rosto.
E… o revolucionário gosta de cenas alternativas, se é preto vai à música céltica, se é branca vai ao B’leza.
Revolucionaaaaaários! Em marcha!
Caro amigo revolucionário, perdoa-me pelo comprimento deste texto, eu quis explorar a maior parte dos contextos, e perdi-me em subtextos, mas podes usar isto como um pretexto para protesto contra o que aqui atesto. Eu queria mostrar-te algum caminho, mas confesso que também estou perdido e ando nisto muitas vezes sem saber se é por raciocínio ou apenas por instinto… instinto de sobrevivência. Mas caro irmão revolucionário, não é só uma questão da resistência, mas também… da existência.