Descolonizar a descolonização - parte 1

Em 2022 fui convidado para fazer uma aula aberta no Porto e sugeri o tema “descolonizar a descolonização”. A ideia era discutir e analisar os lugares comuns do discurso “descolonizante” que aparece nas academias europeias e nos meios artísticos.  

Antes de avançar, quero observar que este ensaio é sobre a minha relação com temas que aqui vou abordar, portanto, não se deve esperar um “cameo” bibliográfico ou um buffet de citações (a elencar celebridades para parecer mais lido do que sou), ainda mais porque se distancia do formato académico. Também não é um texto autoetnográfico, termo que aliás não entendo, porque auto é individual e o indivíduo não faz o povo (ethno). Talvez volte a isto.

O verbo descolonizar tem vindo a ser usado levianamente para quase tudo: descolonizar as cidades, descolonizar os museus, descolonizar a cultura, descolonizar a arte, descolonizar a academia, descolonizar a poesia, descolonizar as mentes, descolonizar o imaginário, descolonizar os corpos, descolonizar a linguagem, descolonizar o meio ambiente, descolonizar o turismo, descolonizar a espiritualidade, descolonizar as equipas de trabalho, descolonizar… sei lá… o ayhuasca. Há tanta coisa a descolonizar que sugiro, como prioridade, descolonizar a palavra descolonização ou, resumindo, descolonizar a descolonização.

Não haja dúvidas que a “descolonização” é necessária, porém, fora de pressupostos, linguagens, abordagens e relações baseadas nas estruturas coloniais ainda intactas. De outro modo, será apenas um discurso que logo se esvazia na prática. Por vezes parece mais um desejo de substituição de pessoas em lugares de poder e estatuto do que a destruição dessas estruturas do poder que hierarquizam e reduzem determinados grupos e pessoas a nada, ou a muito pouco. A descolonização é financiada pelo Ocidente, para simplificar, o grande motor do capitalismo global, que dá continuidade à exploração e à manutenção das colónias, velhas e novas, agora com denominações e agentes mais simpáticos: se antes eram missionários, hoje são expatriados, cooperantes ou voluntários, se antes eram as igrejas hoje são as ONG e fundações mundiais, filantropas e com fins culturais até. De boas intenções está a descolonização cheia. 

Daí a pergunta: como é que um colonizador descoloniza? 

Nos últimos anos da luta da libertação da Guiné, agora Guiné-Bissau, liderada pelo PAIGC, ou guerra colonial na Guiné contra os terroristas (dependendo a quem se pergunte), para anular as vantagens mobilizadoras e unificadores de Amílcar Cabral, o General António Spínola instituiu o Congresso do Povo da Guiné, no qual régulos, djargas, tchernos, juízes da paz, chefes e líderes eram convocados para assembleias para falarem em nome dos seus povos. Enquanto parte da governação portuguesa, sentiram-se decisores, com poder e estatuto reconhecidos, tornaram-se inimigos do PAIGC, que só estava a perigar tais relações e as suas posições. Muitos desses líderes e régulos tinham sido nomeados pelos próprios colonialistas, principalmente os juízes da paz, porque os anteriores não queriam cooperar, e este tornaram-se porta-vozes dos povos que juravam proteger, mas não distribuíam os privilégios e os benefícios que advinham dessa representação. Aliás, mesmo excluindo a estrutura colonial, esses líderes já possuiam privilégios reais dentro do seu contexto de poder.

A pergunta então é: estaria Spínola a fazer a descolonização ao atribuir uma sensação de poder aos líderes dos povos?

A “descolonização” parece-me um programa e agenda ocidental. Não se vê a China ou a Rússia a operarem nesse âmbito ou a financiar programas afins. Aliás, se estamos tão desconfiados dessas duas potências e preferimos os futseros que já conhecemos, deve-se à relação já desenvolvida com os últimos: a ideia de que há uma descolonização a operar e que em breve vamos fazer parte do programa.

A “descolonização” serve para amainar os ânimos, para controlar os pensadores, os sonhadores e os inquietos, e torná-los disponíveis para seguirem a cartilha e fazerem uma revolução que siga o guião desenhado, sem rupturas perigosas. Desde que não se arranhe a superstrutura, podemos brincar cá em baixo a substituir os peões, a pender para direitas ou esquerdas, mas sempre atrelados a agendas por outros estabelecidas. 

Em Portugal, por um lado, os esquerdistas podem usar a descolonização como aquela palmadinha nas costas em jeito de pedido de desculpas, num autoflagelo orgiástico de culpa branca, reiterando sempre como os brancos são horríveis e uns privilegiados do caraças, que só sabem fazer mal ao resto do mundo. Aparentemente esse absurdo e autocentrado mea culpa torna o mundo mais justo e, abracadabramente, esfuma todas as questões da opressão. Por outro lado, até os direitistas podem usá-la para alimentar mais o seu ódio infundado e os seus laivos de grandeza baseados num passado romantizado de conquistas e dominações como mostras de superioridade intelectual e racial.

No fim, a polarização continua e é útil ao poder. 

Quanto aos agenciadores da descolonização, estarão verdadeiramente interessados em mudar a dinâmica dos privilégios e a ordem social? Suicidariam as suas classes?

Terceiro Congresso do Povo da GuinéTerceiro Congresso do Povo da Guiné

 

LUGAR DE IGNORÂNCIA

Não sou um teórico da “decolonização”, nem algo que pareça. Devo ainda manifestar o meu lugar de ignorância, pois neste ensaio atrevo-me a falar da “descolonização” e da “decolonização” sem ter lido nenhum dos grandes pensadores da dita “decolonialidade”, nem citar os grandes nomes afro-américo-latinos do costume, ou os mais recentes. Nem Franz Fanon li integralmente. As teorias que conheço têm mais a ver com o anti-colonialismo, e provêm de pensadores como Amílcar Cabral, Kwame Nkurmah, Thomas Sankara e alguns outros autores africanos, portanto, são perspectivas de épocas e contextos específicos. 

Sobre a decolonização, como disse, fiz apenas leituras avulso sobre este ou aquele tópico, um ou outro assunto. Assim, não consigo discutir com propriedade as propostas de autores (nem a isso me proponho), mas tampouco quer dizer que não possa opor ou corroborar ideias, uma vez conhecidas, a partir de outras perspectivas e de outros conhecimentos. Aliás, creio ser este um dos pontos fortes da decolonidade: a negação de um saber universal. 

Ouso falar do assunto porque, apesar de tudo, devo ter lido tanto quanto boa parte dos ativistas, artistas e académicos que por aí andam a querer decolonizar tudo e mais alguma coisa. Posto isto, avanço que as minhas observações têm a ver com a ideia da descolonização ou decolonização pop e mainstream, não adentram no campo underground dos pensadores obscuros que realmente querem provocar mudanças.

Bem, alguns assuntos que vejo serem desenvolvidos sobre a decolonização, em artigos académicos, performances, ativismos, filmes e outras manifestações, têm normalmente a ver com identidade, cultura, arte, conhecimento, reparação e restituição. Esses temas cruzam-se, são, ou podem ser, interseccionais (como tudo agora), mas também podem ser analisados de modo independente e desdobrar-se em outros subtemas. 

Feito o compromisso do lugar de ignorância, estabeleçamos pontos de concordância sobre colonialismo e colonização. 

 

COLONIALISMO E COLONIZAÇÃO

O colonialismo é entendido como o processo histórico que transformou o mundo nesta confusão em que agora estamos e que se metamorfoseou em outro sistema de opressão e dominação, representando-se hoje pelo capitalismo. O colonialismo estabeleceu-se através da colonização, que se define como a dominação de um território, através do controlo militar, com imposição de estruturas próprias legais, políticas, económicas, culturais, linguísticas, religiosas, entre outras, ignorando, apagando e substituindo as dos colonizados. Esse domínio físico e psicológico, controlo do corpo e da mente, que uma parte da Europa fez sobre o resto do mundo, ainda hoje se sente nas regiões afetadas pelo colonialismo histórico, Áfricas, Ásias e Américas. Eu disse aqui parte da Europa, porque houve colonização interna na Europa, porém, parece que o termo apenas se dedica a países ditos “não-brancos”, porque parece que é inconcebível colonizar brancos. A própria ideia do colonialismo acaba assim por se assentar num viés racista: quando branco coloniza branco, é expansão e ocupação, quando branco coloniza preto, é colonialismo. Quando preto coloniza preto, é ditadura, quando preto coloniza branco… é kizomba. 

O colonialismo é mais do que um mero processo histórico, por não ser um processo que sumiu após as ditas independências das regiões dominadas. O colonialismo continua e exerce o seu poder, razão porque os termos pós-colonialismo, pós-colonial e afins, não fazem nenhum sentido, porque o colonialismo não desapareceu, a colonização continua, a dominação e a opressão continuam, de uma maneira mais organizada e mais globalizada, criando as “colonialidades”. 

As colonialidades aqui são os colonialismos satélites, como o colonialismo que temos na Guiné-Bissau e em outras partes de África, onde um estado surgido da dominação europeia, copia a norma dos seus antigos dominadores e continua a dominação dos povos e dos territórios criados na Conferência de Berlim (1885), em nome dos seus mestres, e assim temos hoje os países lusófonos, anglófonos, francófonos e castelhanófonos(?) – latinos(?). 

 Praça dos Mártires de Pindjiguiti, 2019. Pela democratização da arte e do espaço público. Praça dos Mártires de Pindjiguiti, 2019. Pela democratização da arte e do espaço público.

A África contemporânea é uma criação europeia: as fronteiras, as estruturas geradas, a ideia das nações é tudo ocidental. Há povos que antes de Berlim (a.B.) eram irmãos, como os fulas por exemplo, mas que hoje se separam para defender bandeiras nacionalistas, fulas da Guiné-Bissau a desprezarem fulas da Guiné Conacri, porque esses não sabem o que é a guinendade. E ainda sob a mesma bandeira, temos o “tribalismo” a operar, por exemplo, balantas em conflito com os fulas (durante as eleições), porque são povos e culturas diferentes, e de guinendades diferentes (?). Até à luta da libertação o termo era a portugalidade, procurava-se uma portugalidade, esse sentimento unificador e transformador, que faria os povos todos reverenciar uma mesma bandeira e abraçarem-se como irmãos. 

Depois da independência, procura-se a guinendade, mas ninguém a considera um processo de dominação e de apagamento das outras dades que existem no território. Todavia, pelo lado positivo, a ideia da guinendade ajuda a amainar vários conflitos que poderiam existir no território devido à multiplicidade cultural dos vários povos que aí convivem, porém também faz um apagamento e uma homogeneização política e cultural… a mesma coisa que a portugalidade fazia. Hoje há muitas crianças que não sabem falar a sua língua étnica, porque aprendem só o kriol. Isto acontece porque a guinendade, cujo expoente máximo é o kriol, substituiu a portugalidade. A grande diferença, contudo, é que, apesar desta unicidade que a guinendade aspira e tenta impor, a convivência das multiplicidades étnicas e culturais no território é vista com otimismo e incentivada, com todos os seus quês, senãos e entãos, porque se está a tentar formar uma nova identidade dentro de um paradoxo interessante. Se tivéssemos uma política explícita de miscigenação, seria a guinendade: uma kriolização ou guino-tropicalismo que, embora tenda para um apagamento e homogeneização das diferentes identidades que habitam o território, não deixa de se construir a partir de empréstimos dessas identidades.

(…)

por Marinho de Pina
Mukanda | 9 Dezembro 2024 | Descolonizar a descolonização