Migro, logo existo
Eu migro de línguas. Salto do português para o kriol. Arranho inglês. Falo um bom portunhol. Desenho e danço. E entendo um bocado de emojis. Também falo por silêncios. Tacteio. Cheiro. Ouço. Lambo. Grito pelos olhos. Estreito laços; tecelão. E sou bastante fluente em desencontros. Migro entre linguagens e línguas, porque escolho definir o meu espaço e procuro definir as minhas circunstâncias à minha maneira. Tipo, eu quero comungar, quero comunicar, quero partilhar, quero aceitar, quero ser aceite, quero ser, ou não ser, sem baliza, sem definição. Não há cá é de mim. É de todos, de todos. Sem baliza. Sem definição. Não há cá é de mim. Não há HDMI. Sem definição.
Nasci na Guiné. Virei português. Mas sei que sou mais do que estas construções fictícias, etiquetas e selos desbotados carimbados com tinta baça por Estados controlados a medo. Se me definirem pela genética, bem, tenho antepassados cabo-verdianos, papéis, fulas, mandingas, biafadas, portugueses, franceses e alemães. E sobre esses meus antepassados nem consigo imaginar os veios das suas veias, ou as curvas das suas raízes. Sou como o tarrafe, o mangue, sou uma alteridade constante de raízes e troncos, uma dança infinita de raízes entroncadas e troncos enraizados em movimentos, em devires e em advires, protegendo a existência de erosão. Raízes enroscadas na terra e no mar, em portos e em navios, em galés e em convés, em gritos e em silêncios, acorrentando e acorrentadas. Então, se sou as minhas raízes, logo sou do mundo. Sou um ser em constante movimento. Sou de todos os lugares. Sou de lugar nenhum. Sou um migrante. Sou.
Nasci na Guiné-Bissau, para ser mais preciso, há uns bons pares de anos. E vivo em Portugal há outros bons pares de anos. Cheguei cá como imigrante para estudar. Na verdade, nem sei se era imigrante ou expatriado, os termos confundem-me. Expatriado porque eu tinha vindo também com os dias contados, quatro anos, diploma na mão. Tchau! Adeus Portugal. Mas fui ficando e fui ficando e fui ficando, agora olho para trás e, bolas, foram dezanove anos. Dezanove anos! Dezanove anos, e ainda me chamam imigrante. Imigrante, termo curioso.
Penso: quando é que uma pessoa deixa de ser imigrante? Ouço: imigrante da primeira, da segunda, da terceira geração. Oitava geração Afrodescendentes. Pergunto, quando é que se deixa de ser imigrante? Por que é que pessoas que nasceram num território ainda são consideradas imigrantes? Quantas gerações são precisas para ser apenas… pessoa? Terá a ver com o tempo, ou talvez com o nascimento, ou é com a cor da pele? Os pretos nascidos nos brasis, nas américas, ou mesmo nas europas, cujos antepassados foram levados para lá à força, ainda são imigrantes? Se não são, então por que ainda usam o prefixo “afro”? O prefixo é uma chancela. Afro-brasileiro. Afro-americano. Afro-português. Afro-africano? Ou só vão deixar de ser estrangeiros quando a melanina se dissolver e o lixiviamento se tornar consistente? Mas… Bem… Creio que neste planeta somos todos imigrantes. Todos.
Apresentação de Migro, logo existo, Galerias Municipais, Porto, foto de Manuela São Simão
Onde estávamos antes de termos nascido? Não será o nosso nascimento uma migração? Saímos de um plano de não-existência e passamos para este plano chamado vida. Migro logo existo. Migro. Logo. Existo. Existo porque emigro. Migro. Existo. Existo porque me movimento. Verbo. Caminho. Lugar. Somos seres feitos de migração. Parte de mim migrou dos testículos do meu pai, abraçou a outra parte que estava no útero da minha mãe. Nove meses depois, nova migração. Vim cá para fora. Sonaco. Bissau. Lisboa. Mem Martins. Aeroportos. Nasci. Não tive escolha sequer. Consentimento? Niente. Ninguém me perguntou nada. Não me queixo porque gostei de ter vindo para o plano vida.
Nasci. Deram-me logo nome. Um nome. Uma nacionalidade. Uma história. Uma origem. Uma religião. Uma língua. Uma pátria. E disseram-me: isto és tu, tens que ser isto. Esta é a tua família… ama-a. Este é o teu sobrenome… honra-o. Este é o deus para o qual tens que rezar… não aceites que façam menos dele. Esta é a tua pátria, se alguém falar mal dela… salta-lhe ao pescoço, morde, arranha, finca-lhe os dentes, arranca a carne… sangue, sangue, sangue. Tira sangue. Sangra. Sangra. E sangra pela tua pátria. Dá a vida pela tua pátria. Sê patriota… Sê idiota. Sê. Sê isto. Sê aquilo…
E cresci a ser o que outros escolheram para mim, nada foi escolha minha. Não escolhi os meus pais. Amo-os, mas não os escolhi. Não escolhi nascer na Guiné-Bissau. Gostei de lá ter crescido e gosto de lá estar, mas não a escolhi. Nem o meu nome escolhi. Estão a ver? Mas o mundo acha normal eu ser definido por características que me foram atribuídas sem consulta, sem aviso, sem negociação, sem a mais ínfima hipótese de objeção. Contudo, quando comecei a escolher… tornei-me num problema. Escolhi vir para Portugal, escolha consciente. Mas aí disseram-me: “calma, meu, calma, tu és imigrante, tu não nasceste aqui”. Também se diz: “ah, tu és preto, não és português puro… mesmo tendo nascido cá.” Uns ainda me disseram: “Não reclames a nacionalidade portuguesa, porque estás a negar a tua africanidade e a reforçar o colonialismo. Seu Negropeu! Negropeu! Pele negra, passaporte branco”. É incrível como sou definido por circunstâncias que não escolhi: o meu nascimento; a minha pele; a cultura que me amamentou. Histórias e traumas de outras pessoas são forçadas sobre mim, só porque partilhamos geografia, mas não o tempo.
Quando falo de migração, refiro-me ainda a questões como a raça e a sexualidade. Por exemplo, não se permitem migrações raciais, ou melhor, da cor da pele. A cor é tabu. Michael Jackson migrou de preto para branco, todo o mundo o censurou. Eu também o fiz. Era como se ele tivesse que ficar preto quando queria ser branco. Martina Big, ou Malaika Kubua, a alemã, migrou de branca para preta. Também todos acham que não bate bem da bola. Mas a cor é um território. A sexualidade, território. A crença, território. O corpo, território. O género, território. A memória, território. A dança, território. O cabelo, o sonho, o luto, o trauma, a língua e a linguagem, são todos territórios. Territórios, não propriedades privadas. Mas queremos colocar fronteiras, colocar linhas e marcas em tudo, apesar de todos vivermos em migrações constantes. A pessoa que éramos quando nascemos e a pessoa que somos agora são pessoas completamente diferentes (embora exatamente iguais), considerando que houve mudanças em todos os aspetos: a nível físico, a nível químico e elétrico, a nível económico, a nível ideológico, a nível psicológico, amoroso, sexual, etc… a nível celular, as células que éramos, quando nascemos, já não existem, mudaram, migraram… morreram.
Estamos sempre em mudança, estamos em contínuo movimento, criando e recriando espaços, territórios, lugares e comunidades. No entanto, insistimos em fixar fronteiras num mundo em renovação constante, limitando dessa forma a sua fluidez. Definimos “nós” e “outros” e geramos exclusões e vigilância. Perdemos a fluência na tentativa de fixar identidades, fixar eus e fixar egos. Vivemos em lugares criados e criamos espaços e territórios, mas estamos sempre prontos para dizer a alguém que, por exemplo, porque nasceu com um pénis, não pode e nem deve gostar sexualmente de outro alguém com pénis; não pode e nem deve migrar, tornar-se mulher, e vestir o papel de género que desejar. Porque não se pode abandonar o uniforme com que se veio ao mundo, não se pode trair o acaso. É como se o corpo fosse sentença, uma marca permanente, como se não existisse a alma, só esta caixa de carne, como se o desejo tivesse fronteiras, como se mudar fosse crime.
fronteiras mistas (Malafo), foto de Marinho Pina
Vigiamos afetos, vigiamos desejos, barramos identidades na alfândega dos costumes. Na bagagem, só traga o que o padre disse. Somos rápidos no gatilho, metralhado palavras: Isso não é natural. Isso é ofender a deus. Isso é confusão. Isso é capricho. Isso é uma agenda. Isso é moda. Moda? Bolas! Quê os afetos dependem, por exemplo, da estação? Ama-se à sul global na primavera. Mas no verão, poliamoristas, por favor. Nos saldos do outono, ama-se à direita. Só veganos e vegetarianos no inverno. Hmmmm. Que treta!
Vigiamos migrações afetivas, migrações sexuais, migrações identitárias, migrações espirituais, migrações estéticas, migrações linguísticas, migrações de gênero, migrações raciais, migrações territoriais, até mesmo migrações de pensamento. Negamos as migrações do ser, como se possuíssemos um mapa para a alma, uma cartilha de como a alma deve ser. Nós, que nem sabemos bem o que queremos, mas procuramos sempre definir as querenças do outro. Esquecemos recorrentemente de que o corpo é um veículo, mas a alma é passageira, de que o corpo é matéria, mas a alma é imprecisa, de que o corpo é casa, mas a alma é nómada, de que o corpo se toca, e a alma também. Esquecemo-nos que a alma também pode pedir asilo num outro corpo.
E se há quem mude de cidade, de país, de religião, de profissão, de sotaque, de comida, de afeto, de objeto, de roupa, de família, de esposo, de amante, de atitude, de consciência, por que alguém não pode mudar de si mesmo até se encontrar na sua própria completude? Por quê? Por que alguém não pode mudar de si mesmo até encontrar a sua felicidade? Por quê? Por que permitimos mudar de tudo, menos daquilo que nos disseram que somos? Por quê? Somos assim tão cegos ou é só hipocrisia e vontade de oprimir? Por que não deixamos outros serem felizes do modo que querem, quando isso não magoa a terceiros?
Era bom encontramos os pontos em comum, os pontos de comunhão e de comunicação, e ver como é possível diminuir, através de maior entendimento, as tensões criadas pelas migrações. Não faz sentido reclamar propriedade sobre o que existia antes de nós e continuará a existir depois de nós. Podemos apenas tornar a nossa estadia neste planeta mais agradável, em partilha, em comunhão e em comunicação, pois, neste plano de existência, nesta realidade que conhecemos, somos todos migrantes. Todos. Somos migrantes, imigrantes, emigrantes e integrantes deste grande caldo de movimento e ação. Migro, logo existo. Podemos deixar os outros existirem em paz?