O transe amazónico em diferentes tempos e lugares na cinematografia de Jorge Bodanzky
No início da década de 1970, quando Jorge Bodanzky começou a filmar o real nos territórios amazónicos, o Regime Militar brasileiro (1964-1985) promovia um imaginário irreal sobre a Amazónia, com o fim de desmatar a floresta, explorar as suas terras, integrá-las num projeto colonizador megalómano. Para chamar os colonos de todo o Brasil, as campanhas da ditadura vendiam a Amazónia como uma “terra sem homens para homens sem terra” ou como “um deserto verde”. Oficialmente, a “Revolução chegava à selva” mas, de facto, o que se implementava era uma sanha destruidora que não se deteve até aos dias de hoje.
Enquanto militares e empresários ampliavam fronteiras colonialistas, Bodanzky abria fronteiras através do cinema, com o registo da degradação social e ambiental em curso. São da sua autoria as primeiras imagens dos incêndios que devastavam a floresta - fazem parte do filme Iracema, Uma Transa Amazônica (1974), um clássico do cinema brasileiro realizado em parceria com o cineasta brasileiro Orlando Senna. O impacto destas imagens catalisou as atenções, sobretudo do público europeu, para uma tragédia que passava despercebida no Brasil, onde pouco se sabia, na época, sobre a Amazónia e os seus territórios. A informação que circulava era veiculada pela propaganda oficial; os meios de comunicação brasileiros não lhe dedicavam atenção e o cinema brasileiro estava focado noutras regiões.
Jorge Bodanzky, realizador, guionista, produtor e fotógrafo brasileiro, natural de São Paulo, colocou, há mais de cinquenta anos, a Amazónia no centro da sua cinematografia. Desde a sua primeira viagem à região, em 1968, como repórter fotográfico para a Revista Realidade, que a maior floresta tropical do planeta é “o destino certo para a sua câmera”1. Lá gravou grande parte das obras de uma extensa filmografia, que abrange ainda outras geografias.
Antes de iniciar-se na realização cinematográfica, em 1971, Jorge Bodanzky trabalhou como repórter de imagem2, durante os anos das ditaduras, em vários países da América do Sul, onde gravou em lugares de acesso condicionado ou arriscado, com a câmara ao ombro, integrado em pequenas equipas e, no Brasil, fez câmara e direção de fotografia para filmes de realizadores como Maurice Capovilla, João Batista de Andrade, Eduardo Escorel, Regina Jeha e Hector Babenco. Estas experiências moldaram-lhe o estilo de filmar e apuraram-lhe o olhar.
Na sua biografia Jorge Bodanzky: O Homem com a Câmera, o cineasta conta que entrou no cinema pela câmara: “através dela desenvolvo todo o meu processo de criação. Há realizadores que trabalham a partir de textos, pesquisas, etc. Não é o meu caso. A câmera é a minha caneta e o meu instrumento de investigação. (…) O plano-sequência é uma forma de dirigir com a câmera. Em vez de interromper e mudar de lugar para fazer um corte, eu deixo a cena correr – ou melhor, vou empurrando a cena, acuando os personagens com a minha câmera” (Mattos, 2006: p.339). Bodanzky construiu, assim, uma cinematografia que resulta dos diferentes modos de fazer cinema pelos quais transitou, de uma admiração especial pelo Cinema Direto e da convicção de que o “real é a sua ficção” (Mattos, 2006: p.339).
A desconstrução do mito que apregoava o milagre económico na Amazónia.
Iracema, Uma Transa Amazônica é um filme que surgiu entre o risco de circular pelo real e o desafio de o representar no cinema. Bodanzky, Senna e a sua equipa lançaram-se na aventura de filmar uma primeira-longa metragem na contramão do empreendimento emblemático do Governo Militar brasileiro: a estrada Transamazónica, cuja construção arrancou em 1970. Com a abertura da via já avançada, ambos os realizadores rodaram na estrada, focados nas suas margens, para descobrir o sentido contrário do “milagre económico que abria caminho na região”, segundo a propaganda oficial. A Transamazónia era anunciada como um marco de integração do território amazónico no Brasil. O filme foi o marco inaugural da inclusão da Amazónia no cinema brasileiro.
“Filmamos no auge da construção da Transamazônica, quando a obra se revestia de toda uma estratégia militar. O percurso da estrada era pontuado por barreiras militares e os ecos da guerrilha do Araguaia chegavam muito frescos à região”3 (Mattos, 2006: p.167). Bodanzky relata que “camponeses do sul do Brasil estavam trocando suas pequenas terras, ameaçadas por latifúndios como o da soja, por promessas de imensidão disponível na Amazônia. Não percebiam que, sem investimento, nem infra-estrutura, aquilo podia dar em nada. Na primeira ocupação, extraíam a madeira de lei, que dava um bom dinheiro. Depois queimavam a terra, faziam um primeiro e um segundo pasto, que ainda eram excelentes por causa da terra recém-queimada. Mas, passado o segundo ano, a área se desertificava e aos lavradores só restava seguir em frente, deixando para trás a terra arrasada. Esse anti-modelo foi trazido pela estrada e alastrou-se pelas vicinais [estradas secundárias, quase sempre, ilegais], prevalecendo até hoje” (Mattos, 2006: p.163).
O filme percorre o espaço fronteiriço entre a ocupação colonizadora e a floresta. Com a Transamazónica, o assalto económico já exibia, de forma evidente, o seu fracasso: “abrir fronteira é contratar informalidade, desarranjo e, em última instância, o crime” como descreve João Moreira Salles na reportagem A fronteira é um país estrangeiro, de janeiro de 2021, para a Revista Piauí. O jornalista e cineasta refere-se a esta prática generalizada e vigente, como “oportunismo político: ganham-se votos levando estradas inviáveis até povoados distantes.” E, assim, a fronteira avança “deixando para trás um legado de devastação ambiental e criminalidade”. Quase cinquenta anos depois, os efeitos devastadores da abertura da estrada, que Bodanzky mostrou em Iracema, continuam a reduzir a floresta e a marginalizar as populações, o que reveste o filme de uma contemporaneidade desalentadora.
Na estrada amazónica, a abrir novos caminhos para o cinema brasileiro.
Iracema, Uma Transa Amazônica não se move só numa fronteira geográfica, política e económica, a obra cruzou também fronteiras no cinema: edificando-se de forma ambígua entre géneros, abriu um novo caminho no cinema brasileiro, como escreve o crítico Carlos Alberto Mattos na introdução à biografia de Bodanzky: “Admirador de Jean Rouch e John Cassavetes, Bodanzky criou uma forma inédita de mestiçagem entre a invenção ficcional e o compromisso documental. Transformou diálogos em entrevistas, gente de verdade em personagens, cenários reais em sets de filmagem não-invasiva, e colocou as convenções do road movie a serviço da denúncia social. A novidade, exibida clandestinamente em tempos de censura, exerceu forte influência em muitos cineastas que viam exauridas as formas de representação eleitas pelo Cinema Novo para dar conta da realidade brasileira. Passou-se a falar no gênero ‘semidocumentário’, denotando uma interação de linguagens que nunca mais deixaria de inspirar parcela significativa e avançada do nosso melhor cinema.”
Para transpor os limites que as circunstâncias do real impunham, Bodanzky e Senna optaram pela estratégia de colocar os atores em situações nas quais eram induzidos a improvisar, a provocar diálogos e a impulsionar uma encenação esporádica registada de forma documental por uma câmara que dirigia a cena, sem segundo take. Os protagonistas e um, muito pequeno, grupo de personagens coadjuvantes, todos fictícios, interagiam com pessoas comuns que traziam o real, de outra forma dificilmente alcançável. Jorge Bodanzky recorda com frequência, que era o modo possível de fazer um filme na Amazónia, naquele contexto.
Em Iracema, Uma Transa Amazônica, a narrativa avança através dessa relação ambivalente entre a ficção e o documentário, com a ficção a funcionar como mecanismo para alcançar a realidade. A protagonista feminina, Iracema, é uma jovem menor de idade, interpretada pela amazonense Edna de Cássia, que nunca antes tinha trabalhado como atriz. A jornada de transformação de Iracema, que chega do interior da floresta, por rio, à capital Belém do Pará, tem início nas zonas degradadas da cidade, onde homens depredadores, que vivem atrás da exploração das riquezas da floresta, se cruzam com as populações excluídas, sobretudo com mulheres e crianças que sobrevivem da prostituição. De Belém, Iracema sai pela estrada Transamazónica com destino a São Paulo, num trajeto errático, com “várias caronas [boleias] no sentido contrário” como lhe aponta Tereza, a sua companheira mais próxima, interpretada pela atriz Conceição Senna.
Iracema é uma personagem que não se situa somente na encruzilhada transamazónica mas também numa intersecção narrativa de carga simbólica discordante. A leitura mais recorrente desta personagem associa-a, de forma controversa, à protagonista indígena do livro Iracema4 (1865), de José Alencar. Segundo Ismail Xavier, crítico de cinema brasileiro: “vítima de um lance tão predatório quanto o da construção da Transamazônica, a moça se faz alegoria do desastre embutido no milagre brasileiro, uma inversão antirromântica do sacrifício de Iracema, mãe do futuro, no romance de José de Alencar.”5 Embora, em certa medida, Iracema de Bodanzky dialogue com a Iracema da obra literária, o empenho em evidenciar esta analogia desloca, da centralidade do filme, a condição da mulher amazónica, enquadrando-a num destino inevitável de degradação, como uma peça mais da engrenagem do processo predatório, o que, de alguma maneira, desconsidera-a como ser atuante e serve à impunidade dos opressores.
Contudo, com a personagem Iracema e com as personagens femininas com quem a jovem se cruza, o filme de Bodanzky e Senna proporcionou, pela primeira vez no cinema brasileiro, uma certa visibilidade para as problemáticas que enfrentam as mulheres amazónicas, marginalizadas por um modelo de ocupação que, ainda hoje, as faz deslocar, voluntaria ou involuntariamente, dos seus territórios, lançando-as num universo de desconexão social, onde a pobreza e a violência se impõem de forma dificilmente contornável. Quase cinquenta anos depois da realização do filme, mais histórias precisam ser contadas sobre e pelas mulheres amazónicas para um melhor entendimento da complexidade da região.
No seu trajeto, Iracema adentra-se no novo mundo aberto pela estrada com Tião Brasil Grande, um motorista de camião que circula pela Transamazónica, interpretado pelo ator Paulo César Pereio. O motorista vem do extremo sul do Brasil, onde alemães e italianos foram, em tempos do Império Brasileiro, convidados a instalarem-se em terras, outrora, indígenas. A correlação de forças entre o opressor e o oprimido é sintetizada na relação entre Tião e Iracema. Tião é um ufanista que reproduz a ideologia do Regime ditatorial, um homem que “andou por todo o país e acredita no seu futuro”. Ao longo da narrativa, o motorista vai materializando essa ideologia nas transações que faz e nas que apregoa, sempre com o propósito de transformar tudo em mercadoria, desde o corpo da jovem aos recursos naturais amazónicos.
Seguindo o périplo dos protagonistas na zona fronteiriça da Transamazónica, atalhos narrativos são abertos em direção às questões sociais e ambientais que os realizadores queriam trazer para o filme, como resume Bodanzky na sua biografia: “Além da questão das prostitutas, queríamos falar da morte da floresta secular, do contrabando de madeiras de lei, do conluio entre polícia e grileiros de terra, da utilização de trabalho escravo e da ideologia do “ninguém segura esse país”, mote de propaganda da ditadura” (Mattos, 2006: p.164).
Em entrevista ao site Scream & Yell, em junho de 2021, questionado sobre quem seriam os atuais Tiões Brasil Grande, Jorge Bodanzky diz: “Os Tiões de hoje são os garimpeiros. São aqueles que falam as mesmas coisas que falava o Tião em cima do caminhão. A política oficial deste Governo é exatamente aquilo que o Tião fala. O projeto dos militares que construíram a Transamazônica foi a base de todos os projetos que vieram depois. (…) Veja o que o general Mourão [atual vice-presidente do Brasil] está falando. É a mesma coisa, hoje. Absolutamente a mesma visão. Em 50 anos, não conseguiram enxergar a Amazônia de uma maneira diferente.”6
Entre 2016 e 2018, Jorge Bodanzky, em parceria com realizador brasileiro Fabiano Maciel, revisitou a estrada que foi cenário de Iracema, numa viagem que resultou na série documental Transamazônica, Uma Estrada Para o Passado, para o canal HBO Brasil. Os seis episódios da série percorrem a estrada desde o seu quilómetro zero, na costa este, na Paraíba. Atualmente, a via tem mais 4000 km e liga o oceano Atlântico ao interior da floresta, porém, continua a ser uma estrada inacabada que alterna o asfalto com o chão de terra batida, com tramos semiabandonados ou recuperados pela natureza depois da desistência do colonizador. No último episódio da série, Bodanzky - que também é narrador – descreve assim o lugar onde termina a Transamazónica: “é uma espécie de resumo de tudo o que eu vi e vivi nos últimos quarenta anos. (…) Aqui quase tudo é abandono, isolamento, solidão e esquecimento (…) quando vim, a primeira vez, a exceção era justamente a abertura [da estrada], que eram os pontos que não tinham floresta e agora é ao contrário, a exceção é a floresta”.
Na região amazónica, nos dias de hoje, a abertura, reconstrução ou prolongamento de estradas continuam adentrar a floresta. A sua teia são vias abertas para o estrangulamento de um bioma que se alimenta dos rios, também estes em processo de deterioração.
Seguindo a utopia de um político amazónico.
“Todo um novo capítulo do meu trabalho na Amazônia começou no dia em que conheci o Senador Evandro Carreira, do [partido] PMDB. Ele me procurou solicitando algumas imagens de Iracema para apresentar numa entrevista à TV Bandeirantes. Embora achasse o pedido um tanto insólito, cedi porque vi nele uma figura interessante” (Mattos, 2006: p.215). “Ele pregava uma “Amazônia auto-sustentável, defendia um extrativismo que não danificasse a floresta e se opunha aos empreendimentos da grande indústria multinacional. O Senador “Pororoca” – como o chamavam devido à prolixidade – era contraditório, espalhafatoso, fazia uma política antiquada, mas conhecia profundamente seu território e demonstrava preocupações legítimas” (Mattos, 2006: p.216-217). Jorge Bodanzky descreve assim o protagonista inusitado do seu filme Terceiro Milênio (1980), uma obra essencial da filmografia do cineasta e outro clássico do cinema brasileiro.
Antes deste filme, o Senador Evandro Carreira (1927-2015) foi o facilitador da produção da média-metragem Jari (1979). Foi a partir de um convite do político que Bodanzky e o seu sócio alemão e corealizador, Wolf Gauer, conseguiram filmar o polémico megaempreendimento Jari, que comportava atividades industriais, agrícolas e de extração mineral, localizado nas margens do rio com o mesmo nome, entre o Estados do Pará e o Amapá. A pequena equipa do filme entrou, no complexo, integrada na comitiva da Comissão de Inquérito Parlamentar presidia por Carreira. Ao Buala, Jorge Bodanzky recordou que o político “foi absolutamente pioneiro, em pedir a primeira comissão de inquérito [a um projeto amazónico] e levar isso adiante, nos anos 70, quando não se falava da questão ambiental e muito menos da questão Amazônica.”
O megaempreendimento Jari era um projeto do bilionário estadunidense Daniel Ludwig que chegou a ser o dono da maior extensão de terras, jamais detida por um único proprietário, na Amazónia. Tratava-se de uma área do tamanho da Bélgica. “Daniel Ludwig era uma espécie de Fitzcarraldo da indústria: tinha mandado construir nos estaleiros Ishikawagima, do Japão, uma fábrica completa, que foi rebocada sobre plataformas flutuantes, através de oceanos e rios, até o local.” (Mattos, 2006: p.217), conforme conta o realizador na sua biografia.
Após acompanhar a visita oficial do Senador, a equipa de filmagem conseguiu permanecer e circular pela área do empreendimento, que era um enclave fechado, sobretudo a jornalistas. Sorteando os vigilantes, Bodanzky conseguiu gravar imagens inéditas que justificavam as denúncias que gerou a Comissão de Inquérito. No documentário Jari, o Senador já questionava: “O que é progresso? O que é desenvolvimento?”. Reivindicava a revisão das políticas que estavam em curso e defendia alternativas que respeitassem a centralidade da água, porque a Amazónia, dizia Carreira, “não é um continente, é uma Polinésia, um arquipélago”, uma perspetiva que pontua o filme Terceiro Milênio.
As profecias do Senador para o terceiro milénio.
Tal como Iracema, Uma Transa Amazônica, o filme Terceiro Milênio acompanha a deslocação do protagonista, de barco pelos rios amazónicos, sendo, portanto, um river movie. Se em Iracema o foco está no que acontece à beira da estrada, aqui dirige-se às margens de alguns dos rios da Amazónia ocidental brasileira: o Solimões, o Iça e o Javari. A viagem, com paragens em vários lugares, começa em Tabatinga, cidade da fronteira tripla entre o Brasil, Peru e Colômbia e segue até Manaus, capital do Estado do Pará.
O filme acompanha o périplo eleitoral de Evandro Carreira, então candidato a Governador do Estado do Amazonas, nas primeiras eleições diretas desde o início dos anos 1960. O Senador viajava em busca de votos; Jorge Bodanzky e Wolf Gauer - com quem dividiu a realização, produção e fotografia do filme - seguiram-no, dispostos a fazer um filme. Ninguém tinha planos ou guião. O caminho errático do candidato permitiu-lhes, mais uma vez, registar o imprevisto nas visitas que o político fazia e nos breves encontros que mantinha, assim como gravar o seu quotidiano, igualmente imprevisível, dentro do barco, enquanto navegavam.
Apesar dos interlocutores do candidato se revelarem personagens interessantes, Terceiro Milênio está ancorado em Evandro Carreira que, consciente da presença da câmara, extrapola o seu afã performativo. Para João Moreira Salles, o Senador poderia ser uma “personagem de Werner Herzog, que se tivesse feito um filme sobre o Evandro Carreira, seria o filme que Jorge Bodanzky dirigiu. Não seria melhor. (…) Evandro Carreira é uma figura um pouco profética; é alguma coisa entre o Glauber da Terra em Transe e os delírios do Herzog. É um personagem completamente fascinante, você não consegue tirar o olho dele (…). É um desses casos clássicos em que a presença da câmera estimula o que há de mais teatral no personagem, que é teatral por si. O personagem não está mentido, pelo contrário, ele está se expondo naquilo que ele tem de mais original”.7
Nos seus discursos, Evandro Carreira mostra uma preocupação pela situação da Amazónia, diz que esta “desafia o homem do futuro” e reclama “uma nova Revolução Copernicana, através da qual os humanos sejam conscientes do seu verdadeiro lugar no planeta, de modo a deixarem de se considerarem o centro da terra.” Esta seria, a seu ver, uma mudança fundamental para garantir o futuro da floresta, ameaçada pela “sociedade consumista, antropófaga e capitalista”. Embora sagaz nas suas críticas, o Senador não deixava, no entanto, de atuar ao estilo dos antigos – e ainda atuais – coronéis amazónicos: recorrendo à informalidade, a declarações controversas e aos clichês coloniais. Estas contradições da personagem ampliam o espectro narrativo do filme permitindo que este se situe, de forma engenhosa, entre o universo documental e o ficcional.
A complexidade narrativa de Terceiro Milênio não se limita, contudo, ao seu protagonista. A composição - figura e fundo - captada com maestria pela câmara, expõe com subtileza, o objeto da filmagem: a desastrosa realidade nas orlas da “Amazônia aquática”, assim chamada pelo Senador. Gravado em agosto de 1980, o documentário é uma espécie de cápsula do tempo, cujo recheio foi fortalecido pela passagem dos anos, tornando-se numa obra fundamental para entender a atualidade, na maior bacia de água doce do planeta e, sobretudo, na zona do Vale do Javari8, onde no passado mês de junho, foram assassinados o indigenista brasileiro Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips.
Nos últimos quatro anos, as atividades ilícitas como tráfico de drogas, roubo de madeira, garimpo e pesca ilegais têm-se associado e multiplicado no vale do rio Javari e em outros rios da Amazónia. No Tapajós, a principal ameaça é o garimpo ilegal. Foi para lá que Jorge Bodanzky apontou a sua câmara no seu mais recente filme Amazônia, a nova Minamata? que terá estreia em breve. Um resumo de trinta minutos do filme já foi apresentado, em janeiro de 2020, na Universidade de Oxford, em Inglaterra, durante um colóquio sobre a Amazónia e, em novembro passado, foi exibido um teaser do mesmo na Cop26 de Glasgow, na Escócia.
O avanço de um mal invisível.
O garimpo de ouro transforma os rios amazónicos em cursos de lama tóxica. Os ecossistemas fluviais que alimentam a vida na floresta tornam-se rapidamente num despejo de contaminação e morte. Quanto mais se expande o garimpo ilegal mais se estende a poluição na bacia hidrográfica amazónica. Um dos principais elementos tóxicos desta atividade é o mercúrio, um metal pesado que funciona como íman para isolar o ouro dos sedimentos dragados do leito dos rios ou da terra escavada. Na água, o mercúrio transforma-se em metilmercúrio que contamina plantas e peixes e chega aos humanos pela cadeia alimentar, provocando danos irreversíveis à saúde: causa sérios problemas neurológicos e desencadeia outras doenças graves.
Embora identificada há décadas, desconhece-se ainda a extensão exata da contaminação pelo mercúrio na Amazónia. Sabe-se, porém, que é um problema panamazónico que atinge as áreas impactadas pela extração de ouro, mas o seu estudo e monitoramento ainda não são os adequados. Qual a dimensão desta crise sanitária e ambiental? Será possível detê-la? Estas são algumas das questões que o filme de Bodanzky coloca para poder responder à interrogação formulada no seu título: Amazônia, a nova Minamata?.
O filme estabelece um paralelo entre o que ocorre na Amazónia e o desastre de Minamata, cidade japonesa, onde, a partir de 1930 e durante mais de vinte anos, uma fábrica de fertilizantes químicos despejou mercúrio na baía que a rodeava, envenenando a população através do peixe. Os efeitos dessa contaminação só foram detetados em meados dos anos 1950, quando se identificou uma síndrome neurológica nos pacientes, que ficou conhecida como o Mal de Minamata. No Japão, as crianças foram as primeiras vítimas do envenenamento, que as afetou especialmente assim como às mulheres grávidas, causando a deformação dos seus fetos. Na baía de Minamata, não pereceram somente pessoas, foram igualmente afetados pelo desastre peixes, pássaros e animais domésticos.
Como os efeitos da contaminação evoluem, de forma impercetível e lenta, existe uma grande preocupação sobre o que possa estar a acontecer com as populações indígenas e ribeirinhas amazónicas, que são as mais expostas, sobretudo porque o peixe é indispensável na sua dieta. No rio Tapajós, Jorge Bodanzky visitou aldeias da etnia Munduruku e falou com os seus líderes, que contam como vivem a destruição dos seus ecossistemas e lidam com uma crise que lhes ameaça a subsistência. No filme, um desses líderes, o cacique Juarez Saw, da Aldeia Sawré Muybu, denúncia que o seu povo tem interdito o seu principal alimento, o peixe que pescava no seu território, e que a presença de mercúrio no sangue dos seus parentes já ultrapassou os níveis recomendados.
O documentário segue o trabalho do médico neurocirurgião paraense Erik Jennings que, há mais de duas décadas, dá assistência à saúde dos povos indígenas no Estado do Pará e estuda os efeitos da intoxicação pelo mercúrio, cujo impacto procura conhecer com exatidão. Para Jennings “a urgência sanitária é a ponta de um iceberg que revela uma situação social, ambiental, cultural e económica grave”. No filme, o médico expõe esta preocupação, ao mesmo tempo que mostra quais as dificuldades com que se depara ao enfrentá-la.
Um cineasta entre mundos.
A circulação entre continentes, países ou regiões longínquas tem sido o modo de vida de Bodanzky9. O seu cinema segue-o nesse trânsito, surge e desenvolve-se a partir deste. No início da sua carreira, como realizador, os seus primeiros filmes foram viabilizados pelo canal público alemão ZDF, que não só apoiou a sua produção como garantiu a sua exibição, aproveitando o facto de que as questões ambientais amazónicas já despertavam algum interesse na Europa. “No Brasil, na época, fazer documentários era muito difícil, não tinha como conseguir recursos para isso. E o público europeu, nos anos 70, já tinha uma curiosidade, uma preocupação com a Amazônia” disse o cineasta ao Buala.
Inicialmente, estava prevista apenas uma apresentação de Iracema, Uma Transa Amazônica no canal ZDF, em fevereiro de 1975, mas o impacto que esta primeira emissão causou fez com que o filme conseguisse outras exibições no canal e em escolas de todo o país, por onde circularam 100 cópias da obra. Ainda em 75, o filme foi distinguido com o galardão de prata para os melhores programas de televisão – o prémio Adolf Grimme -, o que impulsionou a sua distribuição por outros canais de televisão europeus. Em França, Iracema recebeu também o prémio Georges-Sadoul atribuído a realizadores principiantes e respetivas primeiras obras e, em 1976, o filme foi selecionado para a Semana da Crítica do Festival de Cannes. No mesmo ano, estreou em Portugal, no Festival de Cinema da Figueira da Foz.
No Brasil, o filme esperou anos até alcançar a visibilidade que merecia: foi interditado pelo Governo Militar com a alegação de que não se podia classificar como Filme Brasileiro, por ter sido revelado e montado na Alemanha. Sem esse reconhecimento, este não podia ser distribuído nas salas de cinema. Só em 1980, Iracema conseguiu participar no Festival de Brasília, onde foi distinguido com os prémios de Melhor Filme, Melhor Atriz para Edna de Cássia e Melhor Atriz Secundária para Conceição Senna. Em 1981, pôde finalmente ser exibido, acabando por ser um dos filmes brasileiros mais premiados da década em festivais nacionais. Atualmente faz parte dos 100 melhores filmes brasileiros, uma lista elaborada pela ABRACCINE, Associação Brasileira de Críticos de Cinema.
O filme Terceiro Milênio também estreou no canal alemão ZDF, em 1981, numa rubrica dedicada ao cinema experimental. Tal como Iracema, Uma Transa Amazônica, o filme recebeu o prémio Adolf Grimme, em 1983. No mesmo ano, foi selecionado para o Festival de Cannes – de onde saiu com o prémio Juene Cinéma - e para o Festival Cinéma du Réel, em Paris, onde foi igualmente premiado. Em 1992, fez parte da mostra Documentaire sur Grand Écran, em Paris. No Brasil, os filmes Terceiro Milênio e Jari não tiveram distribuição comercial, foram exibidos em cineclubes, associações académicas, clubes de imprensa, sindicatos e comités do Movimento de Defesa da Amazónia.
Embora tenham sido muitas as projeções neste circuito alternativo, Jorge Bodanzky disse ao BUALA que “não havia grande interesse pela Amazônia, havia um interesse na política e, por isso, os filmes circulavam muito em cineclubes que faziam um trabalho de conscientização contra a ditadura, mas, particularmente, a Amazônia não era apelativa, como eu acho que não é até hoje”. Referindo-se ao filme Terceiro Milênio, Marina Bedran, professora de literatura e cultura lusófona, defende que o “seu lugar marginal na história do cinema brasileiro também reflete a falta de apelo que tinha a Amazónia mesmo para o cinema político daquele período.”10
Resultado do reconhecimento europeu do trabalho de Bodanzky, em 1983, o cineasta francês Jean Rouch dedicou-lhe uma retrospetiva na Cinemateca de Paris, à qual deu o título: Uma Lição de Cinema Direto Vindo da Amazónia. Esta Mostra viajou, posteriormente, a Espanha, tendo sido exibida nas cinematecas de Madrid, Barcelona e Valência. Na mesma época, Iracema, Jari e Terceiro Milênio foram exibidos em Nova York, no Public Theatre. No Brasil, só mais tarde é que começaram a ser realizadas mostras dedicadas ao trabalho de Bodanzky. São exemplo disso as apresentações em Manaus, Brasília e Salvador, esta última foi organizada pelo Goethe-Institut da Bahia, com o título de Retrato de um Cineasta de dois Mundos.
Atualmente, Bodanzky é frequentemente homenageado em festivais e mostras no Brasil e fora do país, onde a sua filmografia é reconhecida como um testemunho vigente, deflagrador de debates e denúncias. Com os seus filmes – e também com os muitos programas documentais realizados para canais de televisão brasileiros e estrangeiros11 - o cineasta construiu um riquíssimo acervo imagético sobre a Amazónia, um conjunto de obras através do qual o cineasta procura decifrar a intrincada realidade de diferentes lugares da região, numa perspetiva histórica, social e ambiental. Trata-se de uma trajetória singular12 no cinema brasileiro, que começou numa época em que “quem filmava a Amazônia eram basicamente estrangeiros”, como recorda o realizador ao Buala. Com o seu percurso construiu um legado que contrasta com o que o crítico Carlos Alberto Mattos classifica de “cinema meramente extractivista, que suga suas energias [da Amazónia] sem deixar nada em troca, ou quando muito um punhado de clichês ecológicos ou etnográficos quaisquer”.13
- 1. Na biografia Jorge Bodanzky: um homem com a câmera organizada pelo escritor e crítico Carlos Alberto Mattos. Coleção Aplauso Cinema Brasil. Imprensa Oficial. Fundação Padre Anchieta, 2006. São Paulo. (p.227)
- 2. Jorge Bodanzky esteve em diversos países da América do Sul, para uma série de trabalhos para o canal alemão ZDF, feitos em parceria com o jornalista alemão Karl Brugger.
- 3. A Guerrilha do Araguaia foi uma campanha revolucionária amazónica que surgiu no final da década de 60 e durou até meados dos anos 1970.
- 4. No romance Iracema, a protagonista é uma mulher indígena que se envolve com um colonizador português, no século XVII. A partir deste relacionamento, José Alencar representa o mito de origem da nacionalidade brasileira. O livro é o expoente do movimento romântico nacionalista e indigenista da literatura brasileira.
- 5. Xavier, Ismail, Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. Cosac Naify. São Paulo. 2013.
- 6. Entrevista a João Paulo Barreto, em julho de 2021. http://screamyell.com.br/site/2021/03/07/entrevista-jorge-bodanzky-fala-...
- 7. João Moreira Salles no Podcast do Conde, episódio “Campanhas eleitorais no cinema”, junho 2022. https://www.youtube.com/watch?v=xOgPYT1vtY0
- 8. O rio Javari, um dos visitados pelo Senador, é um dos maiores afluentes do rio Amazonas. A região circundante, o Vale do Javari é a região brasileira com a maior densidade de povos indígenas isolados no mundo e a segunda maior terra indígena do país.
- 9. À parte de ter filmado em vários lugares do Brasil, Bodanzky também realizou filmes fora do país. O cineasta especializou-se em direção de fotografia, na Alemanha, na Escola de Design/ Film-Gestaltung de ULM, no departamento coordenado pelo realizador alemão Alexander Kluge, um dos autores do Manifesto de Oberhausen que deu origem ao Novo Cinema Alemão. No Brasil, Bodanzky estudou na Universidade de Brasília, UnB, nos primeiros anos da existência desta instituição.
- 10. Bedran, Maria, Terceiro milênio: o recado amazônico de Jorge Bodanzky. Revista Rosa. Novembro 2020.
- 11. Desde os anos 1970 até meados dos anos 2000, Jorge Bodanzky trabalhou como realizador, produtor, diretor de fotografia e/ou operador de câmara para canais alemães, em dezenas de filmes, geralmente documentários.
- 12. Jorge Bodanzky também desenvolveu projetos de fomentação da educação e veiculação de informação em pontos remotos da Amazónia. Os filmes Navegar Amazônia – Uma Viagem com Jorge Mautner (2006), corealizado com Evaldo Mocarzel e No Meio do Rio Entre as Árvores (2009) registaram essas ações e as comunidades a que se dirigiram.
- 13. No prefácio do livro Soranz, Gustavo org. Filmar a Amazônia, Rizoma Audiovisual, Manaus, 2020.