E de repente o ar se esboroa
A sombra de seu cheiro vibra a meus pés
Minha terra é apenas uma ilha de areia perdida
E minha pele um alvo escuro
Um tecido rígido de lamentos
Quem imaginaria uma mãe capaz de algo diferente do amor
16.03.2011 | por Céléstin Monga
O LUGAR DO MORTO
Neste espaço escritores já desencarnados reflectem, a partir do além, sobre os dias que correm.
"O Pensamento nunca é totalitário. O pensamento é sempre revolucionário. A estupidez, sim – a estupidez é fascista."
15.03.2011 | por José Eduardo Agualusa
Baía morena da nossa terra
vem beijar os pézinhos agrestes
das nossas praias sedentas,
e canta, baía minha
os ventres inchados
da minha infância,
sonhos meus, ardentes
da minha gente pequena
04.03.2011 | por Alda Espírito Santo
Lobato estava certo. Certíssimo. Até hoje, muitos dos que o leram não vêem nada de errado em seu processo de chamar negro de burro aqui, de fedorento ali, de macaco acolá, de urubu mais além. Porque os processos indiretos, ou seja, sem ódio, fazendo-se passar por gente boa e amiga das crianças e do Brasil, "work" muito bem. Lobato ficou frustradíssimo quando seu "processo" sem ódio, só na inteligência, não funcionou com os norte-americanos, quando ele tentou em vão encontrar editora que publicasse o que considerava ser sua obra prima em favor da eugenia e da eliminação, via esterilização, de todos os negros.
18.02.2011 | por Ana Maria Gonçalves
As próprias letras das canções e os respectivos vídeo-clipes são um culto da ostentação oca e bacoca. Meninos de fatos italianos, cheios de penteados (a mostrar que lhes pesa mais o cabelo que a cabeça) e com dourados a pender dos dedos, dos dedos e do pescoço (a mostrar que precisam apenas de mostrar), meninos que cantam pouco e se repetem até à exaustão, fazem o culto deste vazio triste...
16.02.2011 | por Mia Couto
No decorrer do último século – e sobretudo depois do fim da guerra-fria – o mundo mudou como talvez nunca antes, ao longo da história humana. Acontece o mesmo com a África. Longe de ser a aldeia continental que se comprazem a imaginar, ela está literalmente atomizada. Os seus estados voltam as costas uns aos outros e as suas populações têm, por razões práticas, a maior dificuldade em se encontrarem. É preciso passar à acção. A melhor forma de forçar as portas do futuro, é fazer com que, ao menos, os nossos imaginários possam conversar.
02.02.2011 | por Boubacar Boris Diop
No Heilongo a Ercília não pára de perguntar, alguma vez viste o mar?
“É assim, o mar tem telhas de zinco azul transparente e paredes de nuvens. Os peixes têm camisas prateadas e casacos de lapelas douradas. Os lagartos jardineiros alisam a areia para que nas águas dancem flores de sal colorido.”
30.01.2011 | por Aida Gomes
Tempo! Em que Monstro
Retalhas a chicote o meu corpo e os sonhos?
Para que diabólica risada
Arrastas o meu riso outrora deslumbrado pela vida?
Fito a infância nos olhos –
E logo viro a cara horrorizado.
12.01.2011 | por Dambudzo Marechera
Há mais de quarenta anos que ando pelos trópicos e há mais de vinte e cinco anos que me fixei na Guiné. Percorri toda a África desde a Argélia à África do Sul, desde o Egipto a Marrocos, utilizando aviões, comboios, vapores, carros e canoas. Dormi nesses maravilhosos hotéis que o engenho humano criou e dormi também nas mais modestas palhotas das mais modestas tabancas africanas.
Bebi aquela água barrenta, de aspecto leitoso, que se colhe nos poços das povoações perdidos no mato; atravessei rios e pântanos sob um calor escaldante; torneei florestas densas e subi montanhas abruptas; percorri as areias imensas dos desertos africanos; tiritei de frio e abrasei-me e longamente conversei com Tcherno Bokar, a quem Teodoro Monod, com aquele sentido de penetração das coisas africanas que só ele possui, chamou «um homem de Deus».
03.01.2011 | por Artur Augusto Silva
O May be man descobriu uma área mais rentável que a especulação financeira: a área do não deixar fazer. Ou numa parábola mais recente: o não deixar. Há investimento à vista? Ele complica até deixar de haver. Há projecto no fundo do túnel? Ele escurece o final do túnel. Um pedido de uso de terra, ele argumenta que se perdeu a papelada.
03.11.2010 | por Mia Couto
Os nossos pais tiveram filhos à vontade, somos famílias numerosas onde não há tédio, deixamos de curtir as nossas próprias emoções para desfrutar da onda dos filhos, sobrinhos e netos. E como somos mãos largas, os homens sustentam várias mulheres, mas estas também os sustentam mais os seus rebentos de dentro e de fora do casamento, e fica tudo em família. Por isso há muitas farras, aniversários, baptizados, bodas de ouro e de prata, pedidos de casamento, caldos de poeira.
01.11.2010 | por Sílvia Milonga
1998
a cidade de Bissau
gritou sem socorro
enquanto os homens lhe batiam,
Bissau continuou gritando
a sua dor e maldizer...
os filhos refugiaram-se
no regaço da morte
nos destinos incertos
esperanças frustradas
07.10.2010 | por Eliseu Ié
LÚCIA
O pai foi para Moçambique muito novo. Sabes? Ele foi para Moçambique com a mesma idade com que eu vim para aqui: aos seis anos. Se eu voltasse agora para Moçambique também não me ia sentir em casa.
BEATRIZ
E quantas décadas ele precisava para se adaptar aqui?
21.09.2010 | por Nuno Milagre
Estou te dando muito trabalho, não é, minha filha? Me desculpa, disse a mãe, os olhos lacrimejando. Seus olhos sempre lacrimejaram com facilidade, mas aquele dia estavam como uma bacia, as órbitas azuis circulando como duas luas sem rumo.
A filha não se deixava lacrimejar.
19.09.2010 | por Christiane Tassis
_É chegada a minha hora,
balbuciou a velha, que se encontrava havia mais de três meses no seu leito, diga-se mais morta do que viva, com forças apenas para aquelas palavras, como se as tivesse poupado para, desse modo, dar por anunciado o fim da mulher mais beata que o mundo alguma vez conhecera, estranha pronúncia foi aquela, a penúltima, uma cabala de uma morte evidente, porque a última da morte ninguém sabe, mas todos sabiam que era sem dúvida o adeus esperado da mais abnegada pessoa que a igreja e a sociedade alguma vez baptizaram naquelas ilhas abandonadas...
17.09.2010 | por Mário Lúcio Sousa
espichei as pernas bobas e esbarrei com a minha mãe na cozinha, «Acordou, meu filho?», olheiras enormes, assustado perguntei cadê a Biz, e ela descreveu, lamuriosa, que me apresentei «Completamente», hesitou em dizer bêbado, mas frisou, entristecida, «Tonto», não conseguia nem parar em pé, e que entreguei a ela o peso da moto e saí tropicando, e, não sabendo o que fazer, encostou a Biz no fícus, junto ao muro em frente de casa, pegou uma cadeira e passou a noite inteira vigiando pra ninguém roubar
28.08.2010 | por Luiz Ruffato
A força de superarmos a nossa condição histórica reside dentro de nós. Saberemos como já soubemos antes conquistar certezas que somos produtores do nosso destino. Teremos mais e mais orgulho em sermos quem somos: moçambicanos construtores de um tempo e de um lugar onde nascemos todos os dias. É por isso que vale a pena aceitarmos descalçar não só os setes mas todos os sapatos que atrasam a nossa marcha colectiva.
25.08.2010 | por Mia Couto
“Observa” diz o homem branco numa língua selvagem, mas que a menina negra compreende pelo medo. Ele aponta-lhe um corpo de um menino português que, ninguém sabe, mas também foi um pastor antes de o terem embarcado à força. O menino está muito maltratado. O pirata ri uma gargalhada por conseguir assustar uma menina.
20.08.2010 | por Miguel Gullander
Jorge Barbosa jamais foi ao Brasil; Ribeiro Couto jamais pôs os pés em Cabo Verde. "Eu gosto de você, Brasil, porque você é parecido com a minha terra. Eu bem sei que você é um mundão e que a minha terra são dez ilhas perdidas no Atlântico (...)"
17.08.2010 | por Jorge Barbosa e Ribeiro Couto
Foi depois da libélula que reparou na mulher encostada ao seu portão, de olhos fechados, pareceu-lhe, a ouvir a música de Adriana: “tenho por princípios nunca fechar portas, mas como mantê-las abertas o tempo todo...”.
22.07.2010 | por Ondjaki