Estou te dando muito trabalho, não é, minha filha? Me desculpa, disse a mãe, os olhos lacrimejando. Seus olhos sempre lacrimejaram com facilidade, mas aquele dia estavam como uma bacia, as órbitas azuis circulando como duas luas sem rumo.
A filha não se deixava lacrimejar.
19.09.2010 | por Christiane Tassis
_É chegada a minha hora,
balbuciou a velha, que se encontrava havia mais de três meses no seu leito, diga-se mais morta do que viva, com forças apenas para aquelas palavras, como se as tivesse poupado para, desse modo, dar por anunciado o fim da mulher mais beata que o mundo alguma vez conhecera, estranha pronúncia foi aquela, a penúltima, uma cabala de uma morte evidente, porque a última da morte ninguém sabe, mas todos sabiam que era sem dúvida o adeus esperado da mais abnegada pessoa que a igreja e a sociedade alguma vez baptizaram naquelas ilhas abandonadas...
17.09.2010 | por Mário Lúcio Sousa
espichei as pernas bobas e esbarrei com a minha mãe na cozinha, «Acordou, meu filho?», olheiras enormes, assustado perguntei cadê a Biz, e ela descreveu, lamuriosa, que me apresentei «Completamente», hesitou em dizer bêbado, mas frisou, entristecida, «Tonto», não conseguia nem parar em pé, e que entreguei a ela o peso da moto e saí tropicando, e, não sabendo o que fazer, encostou a Biz no fícus, junto ao muro em frente de casa, pegou uma cadeira e passou a noite inteira vigiando pra ninguém roubar
28.08.2010 | por Luiz Ruffato
A força de superarmos a nossa condição histórica reside dentro de nós. Saberemos como já soubemos antes conquistar certezas que somos produtores do nosso destino. Teremos mais e mais orgulho em sermos quem somos: moçambicanos construtores de um tempo e de um lugar onde nascemos todos os dias. É por isso que vale a pena aceitarmos descalçar não só os setes mas todos os sapatos que atrasam a nossa marcha colectiva.
25.08.2010 | por Mia Couto
“Observa” diz o homem branco numa língua selvagem, mas que a menina negra compreende pelo medo. Ele aponta-lhe um corpo de um menino português que, ninguém sabe, mas também foi um pastor antes de o terem embarcado à força. O menino está muito maltratado. O pirata ri uma gargalhada por conseguir assustar uma menina.
20.08.2010 | por Miguel Gullander
Jorge Barbosa jamais foi ao Brasil; Ribeiro Couto jamais pôs os pés em Cabo Verde. "Eu gosto de você, Brasil, porque você é parecido com a minha terra. Eu bem sei que você é um mundão e que a minha terra são dez ilhas perdidas no Atlântico (...)"
17.08.2010 | por Jorge Barbosa e Ribeiro Couto
Foi depois da libélula que reparou na mulher encostada ao seu portão, de olhos fechados, pareceu-lhe, a ouvir a música de Adriana: “tenho por princípios nunca fechar portas, mas como mantê-las abertas o tempo todo...”.
22.07.2010 | por Ondjaki
A cidade, essa missanga grande, esse vidrilho, esse
espelhinho delicado, forrado de seda, com que se tentava entreter e seduzir as mulheres grandes para que estas amaciassem as decisões dos dignitários da terra, tudo isso se diluiu neste traçado, lugar de desembarque e depois de muitos desenhos por onde correm as gentes e as coisas.
Penetremos, pois, nesse colar multicolorido, afagando-lhe algumas das contas, as de um certo e improvável Zefanias Plubios Sforza, um moçambicano com qualidades.
22.06.2010 | por Luís Carlos Patraquim
Numa altura em que milhões de pobres lutam dia a dia pela sobrevivência, o trabalho da teoria, da arte e da cultura consiste em traçar o caminho para uma prática qualitativa da imaginação, sem a qual não teremos nem nome, nem rosto e nem voz na História. (...) Detesto a ideia que faz da vida em África um simples despojo: um estômago vazio e um corpo nu à espera de ser alimentado, vestido, cuidado ou alojado. A concepção ancorada na ideologia e na prática do “desenvolvimento”, indo contra a experiência pessoal quotidiana das pessoas com o mundo imaterial do espírito, particularmente quando ela se manifesta em condições de precariedade extrema e de incerteza radical. Este género de violência metafísica e ontológica tem sido há muito tempo um aspecto fundamental da ficção do desenvolvimento que o Ocidente procura impor aos que colonizou. Devemos opor-nos a isso e resistir a tais formas sub-reptícias de desumanização.
09.06.2010 | por Achille Mbembe
Dos tigres, e outros distúrbios bizarros, que sucederam na cidade de São Paulo da Assunção, antes denominada Luanda, e mais tarde São Paulo da Assunção de Luanda, após a morte de Dona Ana de Sousa, a Rainha Ginga, aos 83 anos, no dia 17 de Dezembro de 1663. Neste capítulo se revela ainda a existência de antigos manuscritos que conteriam uma colecção de palavras novas - paleoneologismos, portanto - roubadas no século XVII às aves de Angola.
05.06.2010 | por José Eduardo Agualusa
TEMPO DE BICHOS
A múmia baça / o bolorento / o gri-gri tanso /a lagartixa
Modorra santa / de bicho lasso / no charco coaxa /o sapo ranço
05.06.2010 | por Mito Elias
Centraremos a nossa conferência num problema essencial: as relações de dependência e de reciprocidade entre a luta de libertação nacional e a cultura.
Se conseguirmos convencer os combatentes da libertação africana e todos os que se interessam pela liberdade e pelo progresso dos povos africanos da importância decisiva deste problema no processo da luta, teremos rendido uma significativa homenagem a Eduardo Mondlane.
27.05.2010 | por Amílcar Cabral
Os intelectuais africanos não têm que se envergonhar da sua apetência para a mestiçagem. Eles não necessitam de corresponder à imagem que os mitos europeus fizeram deles. Não carecem de artifícios nem de fetiches para serem africanos. Eles são africanos assim mesmo como são, urbanos de alma mista e mesclada, porque África tem direito pleno à modernidade, tem direito a assumir as mestiçagens que ela própria iniciou e que a tornam mais diversa e, por isso, mais rica. É preciso sair dessa armadilha.
23.05.2010 | por Mia Couto
Lily vai à igreja, reza o mais que pode, depois pergunta a si própria quando é que, finalmente, este filho da p*** de Jesus se vai decidir a bater à sua porta: truz, truz, truz...
12.04.2010 | por Barthélémy Toguo