O que se passa no mar Egeu? Olhar a brutalidade da Europa a partir das ilhas gregas

Texto de Maria Luz, Miguel Carmo e Manuel Bívar

 

No dia 19 de Agosto viajámos da ilha de Icária para Atenas. O barco que tomámos partiu das ilhas norte do mar Egeu, parou na ilha de Samos, e de seguida em Icária. Quando entrámos no barco percebemos que centenas de refugiados sírios e iraquianos ali estavam a caminho de Atenas. Falámos com alguns jovens sírios, dois deles fluentes em inglês. Os relatos das travessias da costa turca para as ilhas gregas são assustadores. As pessoas com quem falámos pagaram mil dólares pela travessia da costa turca para a ilha de Samos – um estreito de 5 Km – num bote atulhado com 40 pessoas. Vários fizeram várias tentativas. Ahmet contou-nos que nas suas duas primeiras viagens foram intercetados por um barco de guerra não identificado (referido por eles como “comandos”), que foram atacados por militares com máscara e que falavam alemão, e que lhes furaram o motor e o casco do bote deixando-os ao largo e à morte. Foram resgatados as duas vezes pela polícia turca. Dizia também que são comuns os roubos, que esses mesmos militares sacam com desfaçatez os telemóveis, iphones, e maços de dólares a quem vai nos botes.

Bote com refugiados chega a ilha de Lesbo, na Grécia, após cruzar o mar Egeu desde a Turquia.Bote com refugiados chega a ilha de Lesbo, na Grécia, após cruzar o mar Egeu desde a Turquia.

No porto de Icária, conhecemos um professor universitário turco que dá aulas em Ancara. Contou-nos que visitou seus pais em Bodrum, na costa mediterrânica. Que do alto da colina onde seus pais têm casa e donde se avista o porto e o mar, são correntes os bandos abundantes de aves marinhas fazendo círculos em alto mar. Em Bodrum todos sabem o que as aves comportando-se assim significam – mais o afundamento de um bote. Os tais botes de 40 pessoas, 1000 dólares a cabeça. Mulheres com miúdos ao colo. Tudo mar adentro a chorar e até sempre. Viva a Europa!

Nesse dia 19 tomámos contacto com uma realidade que começava a ser noticiada intensamente nos telejornais e imprensa. Pudemos assistir na semana seguinte, já em Lisboa, ao avanço dia a dia entre fronteiras que nos tinha sido descrito com pormenor pelos sírios: Porto de Pireu, norte da Grécia, Macedónia, Sérvia, Hungria, Áustria e Alemanha. Alguns deles queriam seguir para a Bélgica. Duas semanas depois, a foto de uma criança afogada a levar com ondas no areal e de seguida a ser recolhida pela polícia turca espanta o mundo. Era na costa de Bodrum de que nos falava o professor de Ancara. O que surpreende na produção de notícia é não existir qualquer interrogação sobre as causas materiais de tantos naufrágios num mar que, nesta altura do ano, é um espelho de água, sem ondas e vento. Entre Bodrum e Kos, para onde se dirigia o barco, não há sequer 5 Km de mar.

Com estes relatos, decidimos interpelar os deputados portugueses no parlamento europeu do BE e do PCP em busca de mais informação e de um eventual pedido de esclarecimento à Comissão Europeia. Respondeu-nos pelo PCP, Inês Zuber, explicando que em Junho passado foi aprovada uma operação militar contra as travessias do mediterrâneo por migrantes, através de uma missão da EUNAVFOR MED1, por decisão da Comissão Europeia e do Conselho Europeu. Refere ainda que têm proposto cortes na dotação orçamental da UE2016 para a operação FRONTEX, de controlo das fronteiras externas da UE com “cariz policial e repressivo.” Fomos pesquisar. A 22 de Junho foi anunciada pelos serviços do Conselho Europeu a criação da EUNAVFOR MED: “O Conselho lançou hoje a operação naval da UE contra passadores e traficantes de seres humanos no Mediterrâneo. A sua missão é identificar, capturar e destruir navios e bens utilizados, ou sob suspeita de serem utilizados por passadores ou traficantes de migrantes.” Logo de seguida, o texto cita a Alta Representante para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança, Federica Mogherini: “A UE nunca levou tão a sério como agora a questão das migrações. Com esta operação, estamos a atacar o modelo de negócio daqueles que beneficiam da miséria dos migrantes.” Temos assim as instituições europeias e seus altos representantes a determinar que os problemas de imigração se resolvem atacando os passadores e as máfias de transporte, numa fantástica inversão: não são os milhões de refugiados e migrantes e as fronteiras fechadas que geram economias de passagem, mas são estes interesses que geram a oportunidade de salto2. Não foi com inversões deste calibre que os racismos europeus discursaram durante um século, nomeadamente o nazi?

Na torrente de reportagens que acompanham a crise dos refugiados, ouvimos que os pagamentos para entrada ilegal na Europa desceram a pique nos dias em que a Alemanha manteve as fronteiras abertas. A segunda interrogação que salta à vista é como pensa a EU atacar as redes de transportes sem atacar migrantes. O observatório Statewach disponibiliza um dossier imenso em permanente atualização sobre a “EU refugee crisis”, onde revela um documento da Comissão Europeia, no qual se admite «o alto risco de danos colaterais incluindo a perda de vidas» de uma operação que contará com «amplos meios marítimos, de terra e ar», incluindo unidades de forças especiais. Inês Zuber relata que, numa visita aos centros de acolhimento de Pozzallo e Lampedusa (Itália) onde falou com pessoas detidas, bem como com organizações de apoio aos migrantes, foi-lhe dito que muitas vezes os barcos que transportam os migrantes não levam qualquer traficante, uma vez que são os próprios migrantes obrigados a pilotar os barcos. E, ainda, que em várias situações, migrantes e refugiados, muitas vezes perseguidos políticos, são submetidos, de forma abusiva, a constantes interrogatórios3. No passado dia 14 de Setembro, a EUNAVFOR MED entrou na sua segunda fase que possibilita que “a operação naval da UE contra os passadores e traficantes de seres humanos no Mediterrâneo proceda à subida a bordo, busca, confisco e desvio em alto mar de navios suspeitos de serem utilizados na introdução clandestina de migrantes.”4 O uso repetido da palavra “suspeitos” nos textos oficiais parece evidenciar o carácter meta-legal destas missões militares.

Para abrir o quadro é necessário olhar para a Agenda Europeia para a Migração 2015 apresentada em Maio de 2015, onde se prevê, em suma, a multiplicação de fundos para operações militares e policiais, como o programa FRONTEX (onde se inclui a operação Tritão), o reforço da cooperação de instituições policiais, como o Eurojust e a Interpol, com a política de asilo da UE, de forma a facilitar a identificação de migrantes e os processos de repatriamento, e o prosseguimento de uma política de seleção de força de trabalho qualificada de acordo com as necessidades das empresas da UE. Em nenhum lugar se concebe ali a criação de canais seguros para acolhimento de pessoas que se dirijam à Europa em condições precárias e procurem, por exemplo, agrupamento familiar. A UE considera, enquanto tranquila banalidade, que o movimento de pessoas através das fronteiras do espaço Schengen é uma questão policial, de solução repressiva, e uma questão de mercado. Bastará escutar as declarações “chocadas” do Alto Comissário para os Refugiados da ONU para acedermos rapidamente ao essencial da política europeia para a migração.

Voltemos às ilhas gregas. Que pensar do relato de “comandos” de cara tapada a atacar botes cheios de pessoas, deixando-as à deriva e à morte, e que falam alemão? Quem é esta gente? A plataforma Watch the Med, a trabalhar desde 2012, tem monitorizado e mapeado on line as mortes e violações dos direitos dos emigrantes nas fronteiras marítimas da UE no mediterrâneo. O seu objetivo é documentar a violência no mar “enquanto resultado estrutural da militarização da fronteira sul europeia”.5 Têm como atividade principal um centro de informação que recolhe, a partir de um número de telefone, pedidos de auxílio no mar, seja naufrágio, ataques ou desvio ilegais para o país de partida (pushbacks). Esta organização identificou cerca de 20 situações semelhantes à que nos foi relatada pelos Sírios e na mesma área (ilhas gregas-Turquia)6. O modus operandi é o mesmo: unidades especiais armadas e de cara tapada; danificação do motor e perfuração do casco; abandono das pessoas à deriva. A informação recolhida aponta para ações da guarda costeira grega, em colaboração com elementos e embarcações do FRONTEX. Pelo que podemos ler, estas práticas são usuais na fronteira marítima entre a Grécia e Turquia, abrandaram a partir de Janeiro de 2015 com a eleição do governo Syriza, e estão a recrudescer desde Julho passado. É necessário notar que no geral os refugiados estão ser a bem recebidos na Grécia, já foram fretados vários ferries para o transporte massivo para Atenas e os Sírios que conhecemos traziam um salvo-conduto de dois meses para atravessar o país.

Em Samos conhecemos duas irmãs jovens de uma família que resistiu com armas à ocupação nazi da ilha. Perguntámos a Izmin como estava a situação dos refugiados em Lesbos, onde vive. Contou-nos que todos os dias várias centenas desembarcam na ilha e que a ideia mais forte que lhe ocorre é que eles, os gregos, poderão ser os próximos a meter-se em botes a caminho de algum lugar. O mediterrâneo já foi um território, diz Fernand Braudel, agora é atravessado por uma fronteira que o corta de nascente a poente e que, contra todos os esforços da UE para a fixar no meio do mar, parece estar a deslocar-se para latitudes mais a norte: os migrantes querem chegar à Alemanha e ao norte e estão pouco interessados nos países do sul da Europa empobrecidos sob austeridade. Essa fronteira da morte exangue e invisível no meio do mar, que dispensa arame farpado e tropa de choque, chegou a terra e está a fixar-se na Europa central. “Como habitualmente, o traçar de fronteiras será mais difícil para o historiador que para o geógrafo. «Europa é uma noção confusa», escreveu já Henri Hauser. É um mundo duplo, se não mesmo triplo, formado por seres e espaços diversamente trabalhados pela história. E o Mediterrâneo, que influencia fortemente o Sul do continente, contrariou bastante a unidade da Europa, que procurou atrair para a sua esfera de influência, provocando movimentos de diversão que lhe fossem favoráveis.”7 Contra uma Europa brutal, um mar território.

 

Artigo originalmente publicado no jornal MAPA. 

por vários
Jogos Sem Fronteiras | 5 Outubro 2015 | Egeu, Grécia, mar, refugiados, Síria