O habitar cosmopolita de um território

Diálogos com Ruy Duarte de Carvalho  ISBN:  978-989-20-8194-6 Edição BUALA - Associação Cultural I Centro de Estudos Comparatistas (Faculdade de Letras - UL) 2019

Organização do colóquio e do livro Marta Lança

Comissão editorial Ana Balona de Oliveira I Marta Lança I Manuela Ribeiro Sanches I Rita Chaves

Revisão Moirika Reker – CEC

Autores Alexandra Santos, Ana Balona de Oliveira, Anita Moraes, Christian Fischgold, Fernando Florêncio, Inês Cordeiro Dias, Inês Ponte, Lívia Apa, Luhuna de Carvalho, Maria Benedita Basto, Marta Lança, Kelly Araújo, Rafael Coca, Rita Chaves e Sonia Miceli.

Capa fotografia de Ruy Duarte de Carvalho, Swakopmund 2009 Verso da capa serigrafia de Ana Teresa Ascensão 2015

Índice 

Introdução O habitar cosmopolita de um território

Luhuna Carvalho Ruy Duarte de Carvalho e o neo-animismo

Fernando Florêncio O gabinete de Coimbra. Sobreposições sobre um espaço comum

Kelly Araújo Angola de dentro para fora nas Actas da Maianga. Sobre as guerras e o político no pensamento de Ruy Duarte de Carvalho

Rafael Coca Razia, poder e violência no Sudoeste angolano

Rita Chaves Ruy Duarte de Carvalho: sob o signo da contradição 

Christian Fischgold O nomadismo literário de Ruy Duarte de Carvalho

Alexandra Santos Estórias de pastores: duas perspectivas angolanas sobre a Identidade nacional e as outras

Sonia Miceli Os triângulos de Ruy Duarte de Carvalho 

Anita Moraes A realidade em estado de palavra: notas a partir d’Os Papéis do Inglês, de Ruy Duarte de Carvalho, e de fragmentos conradianos

Maria Benedita Basto Escritas e imagens para uma epistemologia nómada. Ruy Duarte de Carvalho e James C. Scott entre resistências subalternas, oralidades e cinema não etnográfico 

Livia Apa Situar-se. identidade e tradução em Ruy Duarte de Carvalho

Marta Lança Foi a partir do cinema que me tornei antropólogo

Inês Cordeiro Dias A câmara e a nação: a criação de um país nos filmes de Ruy Duarte de Carvalho 

Ana Balona de Oliveira Diálogos artísticos, transdisciplinares e intergeracionais: práticas artísticas contemporâneas e o imaginário de Ruy Duarte de Carvalho

Inês Ponte Conhecer e animar o arquivo de RDC: processos e resultados a partir de uma inventariação

fotografia de Ruy Duarte de Carvalho, Swakopmund 2009 fotografia de Ruy Duarte de Carvalho, Swakopmund 2009

Introdução 

O habitar cosmopolita de um território

Tudo quanto pela vida fora se me foi revelando e determinando lugar no mundo, sempre acabou por ocorrer de maneira imediata, vivida, empírica, in vivo, a exigir, às vezes, e sem ser pela mão fosse do que ou de quem quer que fosse, opções e ações de vida ou de morte no pleno desenrolar dos acontecimentos. Elaborações e ruminações, teoria ajudando, foi quase sempre só depois. Não me lembro de ter vindo ao mundo, evidentemente, mas em compensação lembro-me muito bem de ter mudado inteiramente, tanto de alma como de pele, uma meia dúzia de vezes ao longo da vida. 

Ruy Duarte de Carvalho 

Organizado em 2015, decorridos cinco anos após a morte de Ruy Duarte de Carvalho (RDC), o ciclo Paisagens Efémeras foi pensado menos como homenagem do que como reflexão conjunta em torno do seu pensamento crítico. Convidando à releitura de uma obra que questionou fronteiras entre lugares, géneros, saberes e instituições, o Colóquio “Diálogos com Ruy Duarte de Carvalho”, reuniu olhares e vozes diversas, ligando-se tanto à particularidade dos lugares que RDC habitou quanto à transumância constante que caracterizou a sua biografia e o seu trabalho. A partir da antropologia, literatura, cinema ou produção predominantemente teórica e ensaística, a obra de RDC foi revisitada em registos que entrelaçam o enfoque académico e a evocação pessoal. Manifestando a diversidade de áreas do conhecimento e receção em diversos territórios, o percurso de RDC foi discutido de modo transdisciplinar, propiciando debates e indagações, que mostraram a dimensão plural, o rigor e a originalidade do seu trabalho, assim como um pensamento complexo e visionário.  O livro reúne artigos das comunicações do colóquio. 

 O ensaio de Luhuna de Carvalho assinala o modo como a produção de Ruy Duarte de Carvalho condensa “várias dinâmicas de desconstrução dos dispositivos disciplinares”. O autor coloca-nos diante de um projeto denso e arrojado (que entusiasmou o RDC  nos últimos anos de vida) que, em 2009, diagnosticava “os sucessivos acumulares de crise: crises financeiras, crises económicas, crise política, crise de representabilidade, crise ecológica, etc.” Respondendo a esse estado de coisas, nas palavras do próprio Ruy Duarte no “Pré-manifesto neo-animista”, tratava-se de “ter algumas ideias para uma eventual hipótese de poder vir a ajudar a encontrar maneira de achar um caminho…” Retraçando esse programa de “superação dos esgotamentos ‘espirituais do Ocidente, dos humanismos, e da ocidentalização do seu mundo, a partir de um esforço de sistematização dos [seus] limites e contradições”, o texto evoca o interesse do autor pelos debates em torno da relação entre soberania, subjetividade e identidade que mobilizaram nomes como Carl Schmitt e Giorgio Agamben. São igualmente referidos o Perspectivismo Ameríndio do antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro e a ruptura ontológica da antropologia, contribuindo para esclarecer paradoxos e potencialidades de um programa de pesquisa.

O antropólogo Fernando Florêncio traz a sua experiência pessoal, com alguma ironia, onde se misturam as perspectivas e modos de encarar objetos que o fizeram acercar-se e/ou afastar-se de Ruy Duarte de Carvalho. Para além de “Angola, Coimbra, o gabinete, a vista para o Mondego, e o fumar”, Florêncio assinala como elemento de aproximação com RDC a antropologia, a ficção e a presença, na formação de ambos, de Michel Leiris, Lévi-Strauss, Deleuze e Pierre Clastres, que seriam referências comuns para a reflexão sobre a relação entre as autoridades tradicionais e o Estado, sobretudo aquela que se constitui com as independências africanas. Fica-nos a ideia de que “qualquer Estado é sempre um processo histórico de imposição, de dominação, por conseguinte, de colonização interna sob uma vastidão ou pluralidade de outras construções políticas locais”.

Kelly Araújo aponta pistas de uma análise que, segundo a própria, se situa “no ponto de intersecção entre uma entrevista de fevereiro de 2002 e Actas da Maianga. Dizer da(s) guerra(s), em Angola. Esse livro pode ser compreendido como expressão do pensamento de Ruy Duarte, na primeira pessoa, sobre o processo político em Angola e do que ele e dele deriva”. Trazendo excertos da sua entrevista, a autora tenta iluminar as Actas – uma espécie de diálogo do autor consigo mesmo no contexto da guerra, no qual Angola é “expressão local de coisas que acontecem em toda a África”. Araújo procura mostrar como RDC investe na “percepção de uma Angola inscrita no Mundo, no Hemisfério Sul, numa África subsaariana, numa África Austral, ou na Angola fronteira entre esta e a África central, num movimento maior que não ignore as estratégias geopolíticas internacionais, e daí regresse aos problemas das viabilidades regionais, das especificidades encapsuladas, dos quotidianos concretos que definem as experiências apreensíveis através da observação e da análise”. O texto vai dialogando com nomes significativos do pensamento contemporâneo, como Mbembe, Mudimbe, Agamben, Mamdani e Negri, entre outros, apoiando-se ainda em Braudel, para o entendimento dos diferentes “tempos históricos, tempos sociológicos, tempos culturais e tempos identitários” de seu país, defendendo a necessidade “de um futuro comum [que] passava por instaurar um passado de integração que não fosse operado pela exclusão”.

As populações do sul de Angola, uma das obsessões de RDC, são o objeto de análise de Rafael Coca de Campos, que demonstra como estes grupos também foram “determinante[s] para a configuração institucional e operativa do estado colonial”. Propondo-se não ficar apenas pela denúncia da efetiva violência nas relações do estado colonial com os kuvale, ao focalizar o jogo entre “razia, poder e violência”, a tríade com que intitula o seu texto, Campos contextualiza a dinâmica económica e cultural da região e os processos de negociação e imposição. Tendo em vista a intervenção nos processos de imposição e negociação política de formas sociais pastoris, nelas são averiguadas respostas para questões que o autor sintetiza na pergunta: “o que os africanos faziam do que se tentava fazer deles a partir da década de 1920?” 

Seguem-se ensaios mais dirigidos à expressão literária, que irrompe na vida de RDC antes da independência e antecede a sua travessia por outras artes e linguagens. Confirmando a observação de Luhuna de Carvalho para quem, como se pode notar no texto que abre a presente seleção, a “sua antropologia assume artifícios literários, a sua poesia é estruturada a partir de uma alteridade linguística e estrutural, a sua literatura força as convenções de tipologia, forma e género”, Rita Chaves alerta para a “singularidade de uma escrita que foge aos facilitismos a gosto do mercado”, marca nítida desde logo em Chão de oferta, primeiro volume de poemas, lançado na década de 1970. Assinalando a força do mundo de confluências em que o autor vive e ao qual procura dar expressão, a autora observa os dilemas que o mobilizam, entre os quais vamos encontrar a “delicada relação entre a escrita e a oralidade, problema de grande interesse para a literatura e para a antropologia”. Concebendo a contradição como um eixo do seu trabalho, especialmente na trilogia Os filhos de Próspero, a leitura procura enfatizar a fina combinação do olhar de antropólogo com o de artista e os modos como o trânsito se inscreve como linha de força no seu processo criativo. Assim, podemos acompanhar “a viagem se misturando a histórias de demandas que se entrecruzam nas estórias narradas, para surgir como movimento organizador, atuando na formação de uma consciência que se alimenta de experiências e contrapontos”. Tal como em Leiris e Lévi-Strauss, duas referências de peso na sua trajetória.

Christian Fischgold incorpora o nomadismo no título do seu ensaio, privilegiando “os questionamentos acerca de autoria e narração, que sustentam o projeto literário desenvolvido na trilogia Os filhos de Próspero”. A sua leitura tanto considera as afinidades entre as formulações de Barthes, Foucault e Geertz acerca dos laços entre o discurso literário e o antropológico na sua vocação interpretativa, como “aponta para a influência de autores da literatura ocidental como Mark Twain (1835-1910), Henrique Galvão (1895-1970) e Joseph Conrad (1857-1924)”. Fischgold detém-se no diário como dispositivo na composição da trilogia de RDC.

O confronto entre valores da tradição e o direito à propriedade que se joga nas paisagens do Sul é central no paralelismo que Alexandra Santos elabora entre “As águas do Capembáua” (narrativa que integra o volume Como se o mundo não tivesse Leste, de RDC, editado pela primeira vez em 1977) e o romance Predadores, de Pepetela (publicado em 2005). A autora põe em contacto o enredo do conto e um episódio do romance, de um confronto entre o empresário que se faz senhor da terra, privilegiado pelos direitos de propriedade, e a população local que, com base na tradição, reivindica a passagem por uma terra sem cercas. No entanto, ressalta a diferença significativa na solução do problema nas respetivas obras, quanto à autonomia protagonizada pelos pastores kuvale. Se em Predadores a resolução positiva é tributária da ação de um advogado, portanto um agente de fora, no conto, o desenlace deriva da ação dos pastores. Ou seja, o “enredo delineado por RDC aceita as formas culturais dos pastores kuvale nos seus próprios termos, valoriza as suas práticas e crenças, e reconhece a agência dos atores nelas implicados”. Nessa atualização da narrativa de RDC para o terreno de Angola independente, que Alexandra Santos identifica na obra de Pepetela, podemos ver tratados na cena literária aspetos dos debates já levantados por Fernando Florêncio e Rafael Coca no campo das ciências sociais. 

Sonia Miceli elege como vetor de leitura a figura do triângulo, “enquanto imagem das potenciais relações que se podem estabelecer entre diversos lugares ou personagens e que se caracterizam, como veremos, pelas suas imprevisibilidade e mobilidade”. Muito embora o objeto central seja a literatura, o seu olhar inclui o filme Moia, o Recado das Ilhas, de 1989, que foi, aliás, a última incursão de RDC pelo cinema. Ampliando os caminhos do comparatismo, a autora indica como ponto de partida um livro de João Cezar de Castro Rocha, no qual o conceito de culturas shakespearianas serve como apoio para uma reflexão acerca da constituição das literaturas latino-americanas no contexto da expansão ocidental, cujos desdobramentos se fazem sentir até ao presente, como é enfatizado pelo nosso autor em Desmedida – Luanda – São Francisco – São Paulo e volta. Confrontando-se com a profusão de referências incorporadas em A terceira metade, o texto alerta para alguns problemas da receção das literaturas africanas, condicionada frequentemente pela ligação muito forte com os projetos nacionais e os debates à volta da construção identitária. Trata-se, assim, da urgência de, diante da complexidade do projeto literário de Ruy Duarte, ter em conta “um conjunto de preocupações de natureza estética e filosófica, que nesse tipo de projeto não se esgotam, exigindo abordagens diversificadas”.

O refinamento do projeto ficcional de RDC, a que Christian Fischgold associou a uma “instabilidade narrativa”, é abordado por Anita Moraes em “A realidade em estado de palavra: notas a partir d’Os papéis do inglês, de Ruy Duarte de Carvalho, e de fragmentos conradianos”. Corroborando a ideia de que são ténues as linhas que demarcam a verdade da ficção e a ficção da verdade, a que aludiu Rita Chaves, a autora analisa alguns dos processos através dos quais o autor sabota o ilusionismo que está na base de certas convenções literárias e procura demonstrar que, combinada a estratégias como a encenação das situações de interlocução e as relações de espelhamento entre escritor e personagens, a “presença ostensiva de textos alheios boicota a ilusão da representação, de modo que o leitor, antes de experimentar a ilusão de acesso a certa realidade, é levado, repetidamente, a conviver com discursos”. Nessa fabulosa reescrita da crónica “O branco que odiava as brancas”, de Henrique Galvão, a que comparecem também referências tão diversas como E. M. Forster e Luiz Simões, a presença de Conrad ganha relevo e leva a autora a deter a sua atenção nas interferências do conto “The return” e do romance Coração das trevas na estruturação de Os papéis do inglês

Com “Escritas e imagens para uma epistemologia nómada. Ruy Duarte de Carvalho e James C. Scott entre resistências subalternas, oralidades e cinema não etnográfico”, Maria-Benedita Basto traz alguns novos elementos para consolidar a ideia do diálogo que temos enfatizado. A proposta é ampla e envolve um corpus alentado, incluindo vários livros e filmes de RDC e de James Scott. Amplo e diverso, esse material está no centro de uma análise que observa as veredas percorridas pelo angolano para, na composição de uma “epistemologia nómada”, investir contra a colonização dos saberes, fenómeno que para ele se vem estendendo em muito para além dos limites do período colonial. Os impasses entre a demarcação de limites territoriais e o direito ao trânsito reivindicado por parcelas da população, que foram mencionados em várias comunicações, sob novos ângulos, são aqui retomados. Enfrentando preocupações dominantes no pensamento de RDC, Maria-Benedita Basto lê a estética de fronteira que ele concebe como “um dispositivo político” apto ao embate com uma “série de outras dicotomias que separam e hierarquizam as populações nómadas e os centros que dominam política e ideologicamente” que também foram tratadas por Scott. 

A constante e funda atenção à complexidade das falas do lugar, uma expressão de RDC em Hábito da terra, condicionou a sua forma de adesão ao discurso que insistindo na melodia utópica não conseguia camuflar a centralidade de Luanda e os sentidos que isso implicava na gestão do país que nascia, defende Lívia Apa em texto que articula as múltiplas linguagens do autor. Diante do complicado momento, ele tece uma “contranarrativa da ênfase patriótica dos demais, enquanto se opunha às certezas do partido único, que tão pouca atenção parecia prestar à complexa composição cultural de que se fazia o país”. Na pluralidade do trabalho do autor, deve-se acrescentar a tradução numa abordagem maior: como “trânsito possível entre sistemas de significado que tem como seu objetivo não tanto a sua inteligibilidade automática e recíproca mas a evocação de possíveis correspondências de ordens semânticas capazes de suscitar e produzir diálogo”, como, aliás, podem-nos confirmar as indicações dadas pelo autor no ensaio “A tradição oral enquanto recurso e referência para uma actualização poética interveniente”. As suas traduções de alguma produção oral do continente, que podemos ler em Ondula Savana Branca colocam-nos em contato com vozes que nos atualizam memórias que devem resistir à petrificação e/ou à exotização a que o “outro” está sujeito.

Seguem-se contributos que analisam predominantemente o trabalho cinematográfico de Carvalho, questionando as bases do cinema etnográfico. Marta Lança escolhe para título de seu texto uma declaração de RDC: “Foi a partir do cinema que me tornei antropólogo”, opção coerente com a natureza e a direção do olhar que foca essa decisiva relação na trajetória do autor. Tendo começado pela poesia, o percurso de Ruy Duarte de Carvalho, em todas as atividades a que emprestou seu talento, empenhou-se na reflexão crítica sobre os processos de relação com os seus objetos de trabalho, daí derivando um produtivo exercício a que a autora recorre como um método de leitura. No cinema essa vocação auto-reflexiva foi intensamente exercitada, não só nos textos específicos sobre o tema, mas também nas muitas alusões que se espalham pela sua ficção. Na literatura, antropologia e cinema, RDC cultivava uma ética não complacente às concessões do momento, perseguindo um programa que lhe parecia fundamental: “Mostrar as contradições de modelos dominantes (e suas violências) e entender o excluído/subalterno”. O artigo aborda as relações entre antropologia e cinema, os problemas espistémicos de ambos os procedimentos e as ressalvas aos filmes e produção de conhecimento que instrumentaliza e exotiza a diferença.

Ao examinar alguns filmes de Ruy Duarte de Carvalho, Inês Dias procura detetar os caminhos trilhados por ele para oferecer no domínio da imagem em movimento um contraponto ao discurso colonial, ao mesmo tempo em que escapa à dicção festiva do novo poder. Busca, assim, mostrar como a série Presente angolano, tempo mumuíla “inscreve os mumuílas no presente nacional, contrariando toda a narrativa colonial que até aí descrevia estes povos como retrógrados ou não civilizados”. Insistindo que importa efetivamente ao cineasta fugir ao olhar unificador que, a serviço de projetos vários, ignorava a diversidade cultural que havia resistido a tantas pressões, Dias destaca o modo como RDC se distancia dos documentários coloniais, nos quais é patente o uso da voz-off que direciona o olhar do espectador. Recorrendo à leitura de Spyvak, ela procura ainda apontar formas utilizadas pelo cineasta no desempenho do papel de mediador do qual ele teria uma clara consciência. 

Os últimos dois textos do volume relacionam-se com a exposição Uma delicada zona de compromisso, parte fundamental do Ciclo dedicado ao autor, e cuja montagem propiciou outras formas de interação com a obra em causa. Pelas palavras de duas das curadoras, quem não pôde visitar a exposição fica a saber de alguns princípios que a nortearam. Ressaltando que o “desenho esteve sempre associado, tal como a fotografia, o cinema e a escrita, a uma prática observacional – atenta, rigorosa, metódica, mas também sempre profundamente afetiva, pessoal e poética”, Ana Balona de Oliveira, que refere a presença na mostra da “fotografia de Rute Magalhães, de Daniela Moreau e de Robert Kramer, da pintura de José David, da performance poética de Manuel Wiborg, do vídeo de Inês Ponte e Pedro Castanheira e dos sons de João Lucas”, privilegia em seu olhar a interlocução com António Ole (Luanda, 1951), Délio Jasse (Luanda, 1980), Kiluanji Kia Henda (Luanda, 1979) e Mónica de Miranda (Porto, 1976), concentrando-se, portanto, no jogo de relações entre o trabalho de RDC e nomes da arte contemporânea. O texto “Diálogos artísticos, transdisciplinares e intergeracionais: práticas artísticas contemporâneas” inicia-se com a rica e prolongada história de cumplicidades com António Ole, objeto de profunda admiração de RDC que dele saudava a capacidade de “manejar os instrumentos que são os seus de feição a conseguir objectos que para além da sua assinatura levam também a nossa, isto é, a marca da expressão que todos nós buscamos”. Para examinar pontos de convergência com conceções e práticas artísticas que se estendem pelo presente, ela assinala que a curadoria orientou-se por uma fecunda indagação: “Que pensam e nos dão a pensar jovens artistas angolanos – alguns deles a viver na diáspora e também eles, como Carvalho, mais ou menos, ou de múltiplas formas, em transumância – sobre Angola e a sua presente colocação no mundo, através das suas práticas visuais?” À volta das questões que a pergunta coloca temos, entre tantas maneiras de manter aceso o debate, o mapeamento dos itinerários de RDC na série Visto Bom, de Jasse, temos outros modos de encarar a relação entre tradição e modernidade proposta pela obra fotográfica de Kiluanji Kia Henda, e temos outros focos sobre as transformações no espaço social e urbano de Luanda no vídeo, instalação, áudio de Mónica de Miranda, que também faz do Hotel Globo o seu ponto de observação.

Ao fechar a seleção, “Conhecer e animar o arquivo de RDC: processos e resultados a partir de uma inventariação”, de Inês Ponte, transitando por várias áreas exploradas pelo autor, propicia-nos o acesso a um extraordinário espólio e a um fértil processo de trabalho cujos resultados mobilizam tantas leituras. Trazendo factos que exprimem uma relação particular com o trabalho de RDC, a autora esclarece os significados do verbo “animar” que utiliza no título: trata-se de “um conceito envolvendo três dimensões: práticas que procuram dar a conhecer a obra de um autor através do arquivo; articulações possíveis de materiais de arquivo que, pretendendo dar a conhecer o autor e a sua obra, criam um material novo; por fim, práticas que estimulam o próprio arquivo, proporcionando agregar-lhe mais material de arquivo”. Dessa forma, o material reunido, criado em Angola, Portugal, Reino Unido, França, Namíbia, Brasil, África do Sul, ou seja, em diferentes latitudes e longitudes por onde viveu ou passou, o autor reflete, para além da sua errância física, como o sentido da transformação é essencial para compreender a dimensão do movimento que modulou a obra do autor, e inspirou a curadoria da exposição, cujo título tem origem na expressão usada por RDC “para enquadrar o equilíbrio procurado enquanto realizador de filmes numa Angola recém independente”. Percorrendo o que refere como meandros do universo do artista, apoiando-se na interlocução com pessoas que lhe eram próximas, como Rute Magalhães, Eva e Luhuna Carvalho, Inês Ponte procura captar os métodos que permitiram uma especial perceção dos mundos que o interessaram e sua projeção nos mundos que criou, e, assim, dá-nos algumas pistas para a compreensão das veredas seguidas pelas curadoras para “mostrar uma vida preenchida por curvas, linhas e contracurvas, que se fundem em cruzamentos de lugares, saberes e vivências repercutidos com grande intensidade na obra produzida”. 

Assim, a sequência proposta nada possui de evidente e releva de alguma arbitrariedade resultante, porventura, também ela da complexidade da obra de Carvalho e, sobretudo, do modo como esta interroga, sabota, a vigilância das fronteiras – as nacionais, regionais, as disciplinares. Espera-se, assim, menos um ato panegírico, que o autor não merece, mas antes a divulgação de uma multiplicidade de leituras mais ou menos empáticas ou críticas, contribuindo para uma “apreciação mais profunda do que poderia significar esse habitar cosmopolita de um território” (Luhuna Carvalho), habitar feito tanto da concretude de uma experiência, de uma espécie de realismo etnográfico (James Clifford), como de uma errância constante entre saberes e lugares. Procurando manter alguma fidelidade a Ruy Duarte de Carvalho, a organização do colóquio não se moveu pelo desejo de resolver impasses ou pacificar questões. A ideia central não foi aprisionar propostas, mas manter viva a hipótese de mudança constante “tanto de alma como de pele”, para contrariar e completar as grandes teorias – as ocidentais e não-ocidentais – pois “[e]laborações e ruminações, teoria ajudando, foi quase sempre só depois” (Ruy Duarte de Carvalho).

Pela comissão editorial

Nota O ciclo Paisagens Efémeras, dedicado à obra de Ruy Duarte de Carvalho, organizado pelo BUALA, partiu de um desafio da família Carvalho para que se fizesse uma reflexão conjunta sobre a sua obra. Era também o pretexto para organizar e digitalizar o rico espólio do autor, tarefa que esteve a cargo da antropóloga Inês Ponte. Do ciclo fez parte a exposição Sob uma delicada zona de compromisso (curadoria de Inês Ponte, Marta Lança e Ana Balona de Oliveira), o colóquio “Diálogos com Ruy Duarte de Carvalho”, do qual resulta este livro, e uma mostra de cinema. Decorreu na galeria Quadrum, Lisboa, entre dezembro de 2015 e fevereiro de 2016, contando com um apoio do Africa.Cont e do CEC - FLUL.  

 

para baixar o livro.

por vários
Ruy Duarte de Carvalho | 7 Junho 2019 | Diálogos com Ruy Duarte de Carvalho