O olhar de milhões

Enquanto vemos pessoas aleatórias a ganhar electrodomésticos rascas. A frase é de Joana Bértholo e quem a diz é Michelle, personagem de O Olhar de Milhões, o novo espectáculo de Raquel Castro que circulará pela rede 5 sentidos. O espectáculo, que entre novembro e dezembro de 2017 percorrerá o país, opera sobre temas como o consumo, o vício, a alienação, o excesso de informação, o aborrecimento, o primado do imediato ou o entretenimento constante e permanente – e conta com a interpretação de David Marques, Anaísa Lopes, Marco da Silva Ferreira, Teresa Coutinho e João Villas-Boas.
O texto, escrito a partir de improvisações dos intérpretes, é da escritora Joana Bértholo, o espaço cénico foi concebido por José Capela, a sonoplastia e música original é da autoria de Miguel Lucas Mendes e o desenho de luz de Rui Monteiro. A assistência de encenação coube a Filipa Carloto Matta e a concepção, dramaturgia e encenação são da artista Raquel Castro, que contou também com apoio teórico da investigadora Ana Bigotte Vieira e produção executiva de Vítor Alves Brotas.
Retrato caricatural de um presente familiar dado a observar como estranho, O OLHAR DE MILHÕES passa-se num cruzeiro retro-futurista em que humanos do futuro experienciam a vida actual como um divertimento temático de que são a um tempo só utentes e empregados. O BUALA publica online alguns dos textos que acompanham o espectáculo.

design gráfico de Isabel Lucenadesign gráfico de Isabel Lucena

 

Porque a vida está cheia de imprevistos, de trânsito, de contas para pagar - Raquel Castro

Quando olho para trás, para este enorme processo, lembro-me de todas as conversas que tivemos sobre a vida que temos e como a levamos: como é difícil concentrarmo-nos numa só coisa, como é difícil fazer escolhas que não carreguem culpa, como a comunicação mudou tanto que nos sentimos sempre atrasados. Como tentamos preencher o vazio existencial de formas que nunca nos chegam a preencher. Vejo isso e muitas outras coisas: viagens de carro por Portugal, jantares em conjunto, amizades a despontar, um bebé que nasceu, conversas noite fora. No meio disso, sempre o espectáculo que tinha de fazer.  
O espectáculo é a melhor desculpa para se passar tempo em conjunto. Pelo menos para mim, que faço a minha vida social a trabalhar. Trabalhar a fazer espectáculos tem-me proporcionado dias maravilhosos, dentro do estúdio, mas também fora dele. É como se “ter de fazer o espectáculo fosse a forma encontrada para se viver melhor. Porque a vida está cheia de imprevistos, de trânsito, de contas para pagar, de problemas por resolver, de horas que faltam para tudo o que há para fazer, de telemóveis sempre a apitar, sempre a chamar-nos a atenção para o facto de a nossa vida ser menos divertida e menos entusiasmante do que a dos outros.
A vida quer-nos distraídos para não pensarmos que um dia ela vai acabar. Há finalmente silêncio em casa depois de uma segunda-feira como outra qualquer. A minha filha mais velha aprendeu hoje na escola que foi o Nicolau Copérnico que disse que a Terra girava à volta do Sol. A minha filha mais nova ficou em casa, hoje não foi comigo para o ensaio. Dei-lhe de mamar as 5 vezes que ela precisou e enquanto estive ausente ela bebeu o leite que tirei com uma bomba eléctrica. Tem 5 meses e é linda. Às vezes é difícil olharmos para o presente com a distância suficiente para percebermos o que ele significa.
Quando olho para as minhas filhas, sinto esperança no que aí vem, consigo vislumbrar o futuro. Mas quando olho para a peça que estou a criar, sinto que reflete toda a minha descrença na humanidade. Preocupa-me esse paradoxo. Mas preocupa-me mais essa descrença. Como olharão elas para o mundo enquanto crescem? Eu sou de uma geração que cresceu crente de que ia haver trabalho, dinheiro, segurança. Que a fome no mundo ia acabar. Que nunca ia faltar nada. Que só era preciso ser feliz porque já lá estava tudo. Fomos crescendo cada vez com mais dilemas, com a falsa ideia de que podemos escolher e ser livres, mas estamos presos ao dinheiro, à precariedade, a uma sociedade que nos molda para sermos os melhores em tudo o que fazemos. Será que somos mais felizes do que os que vieram antes de nós? E os que vierem a seguir? Serão eles mais felizes do que nós fomos? Poderemos pelo menos dizer que fomos felizes a tentar?
 

Retrofuturismo ao contrário - José Capela

O distanciamento histórico é uma estratégia crítica recorrente na dramaturgia. Para entender uma determinada época, deslocam-se ou justapõem-se coisas de épocas diferentes para que essas coisas, deslocadas do seu contexto histórico original (que as naturaliza), surjam com uma renovada clareza crítica. Meg Mumford recorre ao termo “efeitos H” para referir-se aos variados processos de historicização característicos do teatro crítico de Brecht e, olhando para o modo como a autora os enuncia, pode verificar-se que todos eles (são sete) assentam em conexões entre passado e presente. Lembrei-me disto a propósito do projeto da Raquel Castro O Olhar de Milhões, porque também aqui se cria uma situação crítica através de uma conexão entre o tempo histórico presente e um outro tempo – só que, neste caso, esse tempo é o futuro. Partindo da inevitabilidade de o nosso presente vir a tornar-se o passado de uma época futura, para a qual seremos vintage, a Raquel propõe-nos acompanhar um conjunto de personagens que, no futuro, irão embarcar num cruzeiro revivalista com o intuito de conhecer as nossas referências e reviver os nossos hábitos. Em vez de lidar com duas épocas conhecidas (o presente e o passado) como fez Brecht, o olhar de milhões vê o presente através de um espelho que se encontra num futuro em parte desconhecido, mas antevisto como radicalização de coisas que conhecemos porque, na verdade, já são um pouco do nosso tempo. Vemo-nos assim perante um confronto entre aquilo que reconhecemos de modo imediato como parte do nosso quotidiano (transformado em fetiche para turistas do futuro) e aquilo que reconhecemos como futuro provável. Julgo que a grande dificuldade desta estratégia – e o seu grande interesse – é o facto de ela obrigar a fazer um retrato daquilo que nos é familiar numa lógica de caricaturização, num propositado paralelismo com as caricaturas que se produzem da época medieval nas atuais feiras medievais. Até onde suportamos uma caricatura de nós próprios? 


A Verdade Vai-Te Libertar - Joana Bértholo

Um dos textos seminais na construção deste espectáculo foi um ensaio de David Foster Wallace. Mas é num dos seus romances que encontra-mos Hal, um personagem que «é vazio mas não estúpido» e que defende que «o que passa como transcendência cínica e “hip” do sentimento é realmente uma espécie de medo de se ser realmente humano, já que ser realmente humano é provavelmente ser inevitavelmente sentimental e ingénuo e propenso à lamechice e de forma geral patético. Uma das coisas realmente americanas sobre Hal, provavelmente, é a forma como ele despreza o que realmente faz dele um solitário: este hediondo eu interno, incontinente de sentimento e necessidade, que se puxa e se contorce debaixo da máscara vazia e “hip”, a anedonia» 1. A anedonia prende-se com a incapacidade de sentir prazer, mesmo perante coisas tidas como prazerosas, como o convívio, a comida, o sexo, o humor ou o entretenimento. Um cruzeiro de luxo terá tudo isto, e muito mais. Não se deu o caso dos personagens desta peça sofrerem de anedonia – pelo menos não todos – mas pensei muito no Hal ao longo deste processo: nesta coisa vazia mas não estúpida dele, ingénua e patética, só – e no entanto incapaz de se consolar. Pensei também como certas formas de prazer vivem de, e expandem, a nossa sensibilidade; mas quando perseguidas para lá de qualquer moderação, nos dessensibilizam. Por que é que sentimos tanto nos tempos que correm? Por que é que sentimos tão pouco?

Não é fácil a distância que permite olhar tudo isto como um alienígena, sem tomar nada como óbvio ou garantido. Um olhar livre daquilo que nos acontece quando olhamos qualquer coisa tantas vezes que já não a vemos. Valorizo a viagem que me permite olhar para as coisas familiares com o olhar de um estrangeiro. Neste caso, o nosso tempo. Uma voz no início desta peça descreve este tempo como «as décadas mais contraditórias e divertidas da era humana». Ainda estamos muito mergulhados nela (soterrados nela?) para poder saber se isso é verdade. É um tempo de contrastes e desigualdade social, como também de oferta massiva de produtos e experiências e promessas de conforto sem fim, uma oferta sem precedentes na história, pelo menos na sua democratização. O consumo, o entretenimento, o excesso de informação e a desinformação, a fuga ao aborrecimento, a imediatez, e uma cultura que nos diz a cada gesto de compra que somos únicos e que merecemos tudo. É um tempo de uma solidão muito específica, ainda difícil de articula. Se a identificarmos o longo da peça então o espelho está lá, no ângulo certo para nos conseguirmos ver. Àquele outro que insiste em ter algo a ver connosco. Preciosas são as manhãs em que acordamos para um reflexo no espelho e percebemos algo novo naquilo que já estávamos cansados de saber. Eu espero que esta peça seja uma manhã assim. Ou, dito de outra forma, numa tradução muito livre de uma frase do autor (DFW, sempre), do romance supracitado: A verdade vai-te libertar, mas não antes de dar cabo de ti.

Starring Marco da Silva Ferreira, João Villas-Boas, Anaísa Lopes, David Marques e Teresa Coutinho. Design gráfico de Isabel LucenaStarring Marco da Silva Ferreira, João Villas-Boas, Anaísa Lopes, David Marques e Teresa Coutinho. Design gráfico de Isabel Lucena

 

SINOPSE

É o maior cruzeiro do mundo e está prestes a levantar âncora em direcção ao infinito azul. Desenganem-se aqueles que pensam que se trata apenas de mais um navio de cruzeiro. As características do O Olhar de Milhões conferem-lhe o estatuto de um mega resort flutuante, o único capaz de proporcionar a derradeira experiência, ilimitada e total. Para além das aclamadas atracções Ultimate Abyss, Fetiche Arena, Wind Tunnel, Chemical Enhanced Racing, Mummy’s Milk Shot, Full Communication Zone, há novidades para todos os perfis, a no perder.  Porque só se vive uma vez.

DATAS DA TOURNÉE

23 de outubro - Espaço do Tempo/MONTEMOR-O-NOVO 
28 de outubro - Teatro Viriato/ VISEU
4 de novembro – Centro Cultural Vila Flor / GUIMARÃES
11 de novembro - Centro de Artes de Ovar / OVAR
18 de novembro – Teatro Municipal da Guarda / GUARDA
22 de novembro - Teatro Académico Gil Vicente/ COIMBRA
25 de novembro -Teatro Virgínia / TORRES NOVAS
1 e 2 dezembro - Teatro Carlos Alberto / PORTO
6 e 7 dezembro - Teatro Maria Matos / LISBOA
16 de dezembro – Teatro Micaelense / SÃO MIGUEL

 

por vários
Palcos | 22 Outubro 2017 | ansiedade, atenção, conflito, futuro, maternidade, o olhar de milhões, Raquel Castro, teatro, vida