Manual do 10.º ano de língua e cultura cabo-verdiana – nota de esclarecimento

Na sequência do artigo publicado neste órgão sobre o Manual do 10.º Ano de Língua e Cultura Cabo-verdiana, a saber:

Considerações gerais sobre o bilinguismo literário e o bilinguismo oficial caboverdianos, com especial enfoque na aberração linguística constante do manual de língua e cultura cabo-verdianas, por José Luís Hopffer Almada, na edição de 2 de março 2025 

e uma vez que o órgão não procurou exercício do contraditório, ao abrigo da Lei de Imprensa  (diploma nº 73/VII/2010, de 16 de Agosto) e para esclarecimento da opinião pública redige-se presente direito de resposta, para ser publicado conforme o estabelecido no capítulo VI da referida lei. 

A equipa produtora do Manual do 10.º Ano de Língua e Cultura Cabo-verdiana (conceptoras e validadoras; doravante Equipa), face à gravidade da desinformação que tem circulado nas redes sociais e em órgãos de comunicação social, sente-se no dever de esclarecer o grande público quanto a alguns dos princípios orientadores (socio)linguísticos, pedagógicos e didáticos, há muito atestados em literatura especializada e em contextos semelhantes à ecologia linguística cabo-verdiana, que fundamentam todas as opções adotadas na elaboração do Manual, inclusivamente a escolha de uma proposta de ortografia pandialetal para a voz das autoras.

Contextualização
O Manual (disponível aqui) tem como base o Decreto-Lei n.º 28/2022, publicado no Boletim Oficial n.º 68, I Série, de 12 de julho de 2022 (disponível aqui), que cria a disciplina, bem como o respetivo programa, elaborado em estrita conformidade com esse diploma legal.

Fundamentos (socio)linguísticos
Com base no conhecimento de que todas as línguas variam, sem que isso comprometa a comunicação entre os falantes, reconhece-se a Língua Cabo-verdiana (doravante LCV) como um conjunto de nove variedades dialetais. Todas elas, independentemente do número de falantes, são:

  • Dotadas de igual valor identitário e linguístico;
  • Dignas do ensino e da escrita; 
  • Parte integrante, de facto e por direito, do património linguístico cabo-verdiano.

Não reconhecer este princípio equivaleria a hierarquizar as variedades segundo o número de falantes, conferindo supremacia à variedade de Santiago e relegando as demais para um plano secundário — instrumentalizando o ensino para impor uma única variedade.

Fundamentos pedagógicos e didáticos
A proposta baseia-se na pedagogia da variação e visa fomentar a competência multidialetal ou variacional. Assim:

  • Cada participante da sala de aula (professor e alunos) utiliza a sua variedade nativa;
  • Promove-se a interação e a intercompreensão entre alunos de diferentes variedades;
  • Trabalha-se, de forma consciente e sistemática, a compreensão oral e escrita, assim como o funcionamento da língua, de todos os dialetos, de Santo Antão à Brava; 
  • Ensina-se a gramática da LCV, de forma contextualizada, com base em regras comuns e específicas de cada variedade, utilizando o conceito de regras variáveis (Labov, 1966 e posteriores). 

Desse modo: i) consciencializa-se os alunos sobre a unidade e diversidade naturais da LCV; ii) desenvolve-se atitudes positivas face à variação linguística; iii) combate-se preconceitos linguísticos.

A proposta de ortografia pandialetal

Considerando os pontos anteriores e, ainda: i) o princípio ético de não usar o contexto educativo para impor qualquer variedade; ii) a inviabilidade material de grafar as nove variedades em comandos e instruções; iii) a vantagem de uma ortografia unificada, que não é incompatível com a diversidade linguística e iv) a possibilidade de agir social e tecnicamente sobre as línguas, a Equipa optou por uma proposta de ortografia pandialetal, inclusiva e integradora de todas as variedades.

Essa ortografia:

  • Usa o alfabeto oficial da LCV;
  • Representa todas as variedades em pé de igualdade, mesmo que os traços específicos não estejam todos explícitos;
  • Permite a leitura e a pronúncia por qualquer falante, sem substituição da sua variedade nativa.

Tal proposta não é nova, pois como afirma Veiga (2000:25; destaque nosso):

As variedades regionais continuarão a existir. Cada ilha continuará com a sua própria expressão dialetal. Apenas a língua oficial utilizada no ensino e na administração oficial, particularmente através da escrita, será a variedade unificada.

Não se trata, portanto, de padronizar a LCV, criando uma nova variedade. Como detalhado na página 205 do Manual, a proposta de ortografia pandialetal:

- Aplica-se apenas aos comandos e textos explicativos (voz das autoras);

- Não se recomenda o seu ensino aos alunos; 

- Os alunos são expostos a textos orais e escritos autênticos grafados no Alfabeto Cabo-verdianos (AC) oficial de todas as variedades, ou seja, praticam o AC e analisam textos no AC, comparando-os com a grafia de autor.

- Está inserida na investigação-ação prevista para a fase experimental da disciplina (cf. artigo 15.º, n.º 2, alínea b) do supracitado Decreto-Lei n.º 28/2022).

As opções ortográficas adotadas estão descritas nas páginas 205-207 e baseiam-se em conhecimento profundo das estruturas fonética, fonológica e morfossintáticas das variedades da LCV, resultado dos diversos trabalhos aprofundados de investigação, desenvolvidos pelas autoras na última década, em variedades nunca antes estudadas.

As autoras, seguindo as melhores práticas de investigação, assumem explicitamente (p. 205 do Manual) abertura à revisão fundamentada das opções, desde que estas sejam cientificamente justificadas e baseadas na prática reflexiva dos docentes, e não em discursos pseudocientíficos ou preconceituosos. Comprova essa abertura a reunião nacional com todos os professores da disciplina de Língua e Cultura Cabo-verdiana já organizada pela DNE, por sugestão da Equipa, no dia 13 de março 2025.  

Todos os membros da Equipa atuaram como investigadoras seniores, reconhecidas pelos seus respetivos centros de investigação e pares, e não como representantes da Associação da Língua Materna Cabo-verdiana (ALMA-CV). Repudiam, por isso, os discursos negacionistas que desprezam a ciência em favor do senso comum desinformado — tendência infelizmente crescente.

Em relação aos honorários, nenhum membro da equipa recebeu sequer metade do equivalente a um mês de ordenado auferido na sua categoria, pelo trabalho desenvolvido entre maio de 2024 e janeiro de 2025, pago pela Porto Editora, no âmbito contratual, facto que pode ser comprovado a qualquer momento.

Finalmente, a Equipa repudia veementemente as calúnias pessoais proferidas por vozes autoritárias, bairristas, xenófobas e profundamente misóginas, as quais responderão, oportunamente, no fórum apropriado e nos termos da lei.  

A Equipa reitera o seu compromisso em continuar a trabalhar em prol da valorização e promoção efetiva da LCV, pela via da sua oficialização, ensino e investigação.

Praia, 8 de Abril de 2025
A Equipa produtora do Manual do 10.º Ano de Língua e Cultura Cabo-Verdiana

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