Uma vida sangrando e chorando. Uma vida desfazendo o corpo para entender o corpo, para receber o corpo. Isto é configurado de muitas maneiras. Uma mulher desconectada com sua mulher perde os cabelos, perde escamas, vira boto. E boto é bicho homem, ainda que seja peixe, e ainda que seja fêmea. Uma coisa, meus senhores e senhoras, é uma coisa. A outra é boto, e boto é boto, mulher é mulher, uma escorregadia e o outro não. E chega uma hora que você já fez tanto de conta que é boto que acredita que é boto, fala feito boto, canta feito boto, ama um boto como se amam os botos. Mas o sangue vem e te lembra que você é mulher.
Corpo
30.04.2025 | por Manuella Bezerra de Melo
Uma leitura da obra Do Tempo Suspenso (1998) de Maria Alexandre Dáskalos a partir da perspetiva teórica do in-betweenness (Bhabha, 1994), com o objetivo de decifrar a construção dinâmica de uma determinada identidade africana na poesia, sempre enquadrada pelo contexto pós-colonial, pós-guerra e de diáspora, que não se pode desligar da posição peculiar do sujeito poético entre diferentes lugares de memória (Assmann, 2008), divergentes paisagens de humanidade e variadas terras geoculturais.
A ler
30.04.2025 | por Peilin Yu
O cinema africano, afrodiaspórico e caboverdiano serve também para disputar narrativas – não só sobre África e sobre os africanos, sobre os caboverdianos e sobre as nossas perspectivas plurais, mas também sobre o que é o cinema em si, quem tem o direito de o fazer, quem tem o direito de ver e de ser visto, de falar e de ser ouvido. É um trabalho lento, minucioso, mas necessário. É o trabalho de reinscrever no nosso imaginário coletivo as imagens que nos pertencem, e que, por sua vez, nos transformam. Neste contexto, o futuro do cinema nas ilhas será inevitavelmente arquipelágico, feito de imensas vozes dispersas, mas em constante diálogo entre si, com Cabo Verde e com o mundo, feito de memórias partilhadas, mas reinventadas, de recursos limitados mas de criatividade infinita.
Afroscreen
29.04.2025 | por P.J. Marcellino
Catarina Simão desmonta o passado colonial e interroga o presente. Os materiais expostos são apresentados como vestígios de uma ideologia colonial que subsiste em tantas instituições portuguesas, geralmente de uma forma anacrónica. A presença de objetos africanos em depósitos museológicos, não raras vezes sem mediação crítica, é enfatizada na exposição, sendo talvez um dos aspetos mais contundentes do seu projeto. Questiona-se a própria noção de arquivo, como espaço de conhecimento, saber e devoção e repositório de memória. A exposição é composta por diferentes núcleos, onde o visitante é confrontado com a complexidade dos materiais e é convidado a pensar sobre os mecanismos de exotização e racismo.
Vou lá visitar
25.04.2025 | por Inês Vieira Gomes
Este artigo interroga a necessidade e a urgência de reagir aos atos de perpetuação colonial envolvidos nas dimensões patrimoniais, memorialistas e monumentais das narrativas históricas em espaço público. Essas dimensões, plasmadas em inaugurações celebratórias do espírito de aventura da expansão marítima, em retóricas nacionalistas acríticas e em afirmações de uma certa (“Nova”) portugalidade, de algum modo revelam o que a Revolução dos Cravos não conseguiu apagar. Serão os brasões em pedra de calçada portuguesa do Jardim do Império restos nostálgicos coloniais ou perene processo de colonialidade que nunca se dissipou? A disputa pelas narrativas nos espaços públicos servirá para pensar “qual revolução?” cinquenta anos depois?
Cidade
23.04.2025 | por Paulo Raposo e Izabela Tamaso
Em Portugal, sabe-se tudo sobre o Brasil e no Brasil, fora a época das invasões, a sardinha, o bacalhau e os lindos azulejos, sabe-se quase nada de Portugal. Ah, tem o Cristiano Ronaldo, mas relativamente pouca gente dá grande importância. Se sairmos nas ruas de qualquer cidade de qualquer região do Brasil e perguntarmos se conhecem a Amália, por exemplo, quase ninguém vai conhecer – o que é uma grandíssima pena. E, por causa disto e da real discriminação que a população de imigrantes (e mesmo turistas) brasileiros sofre em Portugal, impulsionada pela crescente da extrema-direita que legitima tudo o que há de podre no comportamento humano, criou-se um movimento de reação através daquilo o que o brasileiro faz de melhor: a zoeira.
Mukanda
22.04.2025 | por Gabriella Florenzano
Um sistema de escrita é apenas uma ferramenta para grafar a língua — e não pode, por si só, “conter” as variedades linguísticas. Escrita não é língua. Se o objetivo é permitir grafar qualquer variedade, então essas variedades devem aparecer com as suas especificidades. Como as palavras apresentam formas distintas em cada variedade, não se pode adotar uma escrita uniforme — como a proposta pelas autoras — sem perdas significativas.
A ler
21.04.2025 | por Eleutério Afonso
Nunca nos consideramos turistas. Porque vamos para os outros mundos com “propósitos nobres”, levamos cultura, espalhamos arte, vamos em busca de luz, procurando mudar o mundo e cuidar do meio ambiente principalmente através de viagens aéreas. Nós não viajamos para consumir folclore ou atraídos por um produto urbano-mercantil criado por um visionário qualquer, nós não fazemos filas para andar cem metros numa espécie de elevador da Bica ou para provar uma queijada de Belém local. Nem fotografias tiramos para as nossas redes sociais. Nós não somos turistas. Nós levamos mais-valias culturais para outras cidades.
Cidade
21.04.2025 | por Marinho de Pina
Junto a isso, eram lançadas mensagens afirmativas que fortaleciam a estética black — que assustava a sociedade (ainda em 2002, as vendedoras negras das boutiques da zona sul do Rio eram obrigadas a alisar os cabelos ou, no mínimo, trançá-los). Reivindicava-se o direito de aspirar à ascensão social. “O primeiro engenheiro negro que conheci foi o Filó; o nosso destino era ter um lugar subordinado” afirma um dos entrevistados.
Palcos
15.04.2025 | por Laura Burocco
A Comissão Científica da DALMACV-PT composta, in casu, por Ana Josefa Cardoso, Dulce Pereira, Alice Matos, Nélia Alexandre e Hans-Peter (Lonha) Heilmair informa que o processo de análise e reflexão sobre o "Manual de Língua e Cultura Cabo-Verdiana" se encontra em curso. Esta reflexão crítica de leitura do manual incide sobre três tópicos: i) Questões Linguísticas; ii. Questões Pedagógico-Didáticas e iii. Questões de Política de Língua.
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14.04.2025 | por vários e José Luís Hopffer Almada
Mas a cor é um território. A sexualidade, território. A crença, território. O corpo, território. O género, território. A memória, território. A dança, território. O cabelo, o sonho, o luto, a trauma (seja lá o que isso for), a língua e a linguagem, são todos territórios. Territórios, não propriedades privadas. Mas queremos colocar fronteiras, colocar linhas e marcas em tudo, apesar de todos vivermos em migrações constantes.
Mukanda
14.04.2025 | por Marinho de Pina
O governo angolano entende que apesar deste tipo de disseminação não ser um acontecimento recente, com a existência da Internet tudo se tornou mais rápido e eficaz, sendo insuficientes as “ferramentas tradicionais do direito” tendo em vista o seu combate.
Neste contexto considera-se urgente “a necessidade de se adaptar uma abordagem legal suficientemente abrangente e integrada das informações falsas ocorridas na internet”.
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13.04.2025 | por Reginaldo Silva
Essa sabedoria só resultava dentro dela, mas como nenhum deles sabia sequer que estava em uma caixa, nem que havia algo fora da caixa, e menos ainda nomear todas as coisas e cores estranhas que existiam e que, agora, a menina, que fora burra quase toda a vida, conhecera justamente por causa da sua desobediência. Na triste história da menina burra, a história não acaba assim tão triste, e a menina não acaba assim tão burra. Ela aprendeu a aprender, aprendeu que era a escuridão da caixa a impedia de enxergar conhecimentos e sabedorias, e finalmente foi aos registos e mudou seu nome para "a menina cujo cérebro só aprendia na luz".
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11.04.2025 | por Manuella Bezerra de Melo
Sentimo-nos no dever de esclarecer o grande público quanto a alguns dos princípios orientadores (socio)linguísticos, pedagógicos e didáticos, há muito atestados em literatura especializada e em contextos semelhantes à ecologia linguística cabo-verdiana, que fundamentam todas as opções adotadas na elaboração do Manual, inclusivamente a escolha de uma proposta de ortografia pandialetal para a voz das autoras.
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10.04.2025 | por vários
Nos meus 12 anos, limitava-me a vê-los e a ouvi-los falar, sem dizer nada. Escutava e assimilava, como se estivesse sentado em frente de uma televisão, olhando as notícias através da neblina do fumo do tabaco. Observado em silêncio, aquele ambiente de decadência, ruína e letargo convertia-se num espectáculo irresistível e aguçava o meu apetite intelectual. Havia algo, ali, que me repelia profundamente, mas que, ao mesmo tempo, me atraía poderosamente. Aquelas personalidades, regadas com álcool, sarcasmo e uma enorme capacidade de mentirem a si próprias, eram atormentadas e autodestrutivas, arrogantes e sedutoras, viscerais e sofisticadas, vulcânicas e complexas. Estavam na Europa, mas com a cabeça totalmente no outro hemisfério do planeta, incapazes de cortar o cordão umbilical com as ex-colónias.
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08.04.2025 | por João Pedro George
A IA pode escrever toscamente piadas, mas isso não acontece com a maioria dos seus concorrentes humanos? E ao combinar estilos de humoristas passados ou contemporâneos, ou fazendo pastiches de ídolos, será a IA assim tão diferente dos humoristas que procuram ainda a sua “voz”? No fundo, como os escritores que, influenciados pelas suas “leituras”, escrevem à “maneira” de um Lobo Antunes, de um Saramago ou um Hemingway, ou seguindo as regras de determinados géneros e de correntes literárias, ou os cineastas que fazem filmes à Tarantino, westerns fordianos, melodramas Almodovaríanos?
Fábio Porchat, por exemplo, começou a sua carreira interrompendo o programa de um ídolo nosso (Jô Soares) para representar um guião de Porchat, de um hipotético episódio da série os Normais, criada e escrita por Fernanda Young, em que Porchat faz os papeis de Vani (Fernanda Torres) e Rui (Luiz Fernando Guimarães).
Cara a cara
07.04.2025 | por Pedro Goulão
A canção de protesto é marca profunda na América Latina. Lá no Sul, na Argentina, a música voltou às ruas para denunciar a destruição do Estado de bem-estar e a repressão de grupos vulneráveis ou de qualquer um que grita alto nas ruas contra o governo de Milei. A memória do cancioneiro latino-americano das ditaduras-Condor atualiza-se – não é mais só trova, virou rap, hip-hop reggaeton, pop, trap. Som vivo contra esta regressão que tenta, como antes, impor silêncios profundos.
Vou lá visitar
02.04.2025 | por Pedro Cardoso
A definição não é alheia à vontade de substituir o sistema dominante, socialmente estabelecido. A indefinição, contudo, corresponde a outra estratégia, uma que exige que nos mantenhamos abertos ao mundo e aos outros. Nada, nem mesmo a linguagem, está garantido. Afinal, “desnomear” nem sequer é uma palavra. Eva tem estado sempre a imaginar um mundo diferente daquele que conhecemos.
Corpo
01.04.2025 | por Marta Rema
Kaydara é o título de uma história didáctica que faz parte do ensino tradicional do povo fula da região da curva do rio Níger.
É habitual o mestre contar a história em serões, perante um público de jovens e idosos. Na maior parte das vezes, conta apenas fragmentos; chega ao círculo dos aldeões, senta-se, conta a história, pára e só retoma o seu relato três meses mais tarde. Porém, por vezes, conta-a de uma só vez durante “as longas noites da estação fria”, enquanto um guitarrista o acompanha. Ou pode começar subitamente a desenvolver um dos símbolos, por ocasião de um acontecimento que tenha analogias com esse mesmo símbolo.
Vou lá visitar
30.03.2025 | por Amadou Hampâté Bâ
Ainda hoje, neste século 21, os Negros debatem-se contra o Espelho, contra si, contra o Deus branco. De cada vez que um africano negro besuntar o rosto e o corpo com creme ‘branqueador’, de cada vez que uma africana negra envergar uma cabeleira ‘lisa’ – e o número desses casos é exorbitante -, continuamos a assistir à luta dos Negros contra o Espelho, contra o seu limite, imposto pelo Homem Branco. Esse limite é a ‘Vergonha’ de ‘Ser’.
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28.03.2025 | por Brassalano Graça