“Explosão musical contra a motosserra de Milei”

“A explosão está a chegar, a explosão está a vir, da minha guitarra, do seu governo também”, cantava Gustavo Cordera, líder da banda Bersuit Vergarabat, em clubes e estádios de Buenos Aires nos últimos anos do século XX. Os músicos da banda rodeavam-no vestidos de pijama, como se estivessem a acordar do longo sono do neoliberalismo, derramado pela América do Sul após a queda do Muro de Berlim em 1989. Um sonho conversível na Argentina, onde a moeda nacional, o peso, valia o mesmo que o dólar por lei. Um sonho que, em pouco mais de dez anos, se transformou no pesadelo da chamada crise de 2001, com picos de 60% de pobreza, segundo dados oficiais do Instituto Nacional de Estatística e Censos, após uma década de governo de Carlos Menem e a breve presidência de Fernando De la Rua. Um pesadelo que paira como um flashback cada vez que o atual presidente, Javier Milei, agita com a dolarização e aponta medidas de seu governo para reduzir o superavit fiscal, em detrimento dos frágeis pilares do Estado de bem-estar social que ainda estão de pé.”

A introdução de “Un estallido musical contra la motosierra de Milei”, artigo de Daniel Huergo no diário El Salto, resume em poucas linhas o sentir de milhões de argentinos que gritam nas ruas do país “La Patria no se Vende”. Os anos de governação Milei, o anarcoliberal, o “Pesadelo de Borges” eleito em 2023, deixam um rasto de desespero social entre grupos vulneráveis, estudantes e minorias.

Como durante a ditadura militar no país, entre 1976 e 1983, a repressão das vozes dissidentes é uma constante cega. A 5 e 12 de março, a brutalidade contra reformados que, como todas as quartas-feiras dos últimos meses, se manifestavam em Buenos Aires contra o recorte das pensões, demonstraram bem ao que vem este governo. Rapidamente, grupos folcloristas se mobilizaram as redes sociais: “O Folclore Marcha com xs Jubiladxs – Traz o teu instrumento e a tua dança para cantar juntxs ‘Zamba de mi Esperanza‘’”, lia-se nas redes sociais.

Como nas décadas tristes que ainda sangram em feridas abertas, a música na Argentina une quem resiste. Desde o dia 1 de Milei, este coro tem juntado vozes novas, antigas. Inesperadas, muitas delas.

Senhor Cobrança

Las Manos de Fillipi foram dos primeiros na linha da frente. No início de 2024, a banda que há décadas canta contra o capitalismo e o poder político em turno no país, lançou “El libertario”. Sem papas na língua: “Soy libertario y voy a ser empresário / Cuando dolaricen mi sueldo de mierda gracias al peluca me hago millonario (…) Viva Milei, él es la ley / Yo quiero ser como él / Como un perrito fiel / Y con la casta cruel…” (Sou libertário e vou ser empresário / Quando dolarizarem o meu salário de merda graças ao peruca, fico milionário (…) Viva Milei, ele é a lei / Quero ser como ele / Como um cãozito fiel / E com a casta cruel…). Pouco depois, a banda voltava à carga com “Milei se cae”: “La locura avanza y todo es mercancía su ganancia/ Levantá la cabeza y salí a luchar” (“A loucura avança e tudo é mercadoria no seu lucro/ Levanta a cabeça e sai a lutar”).

Os temas novos atiraram Las Manos de Fillipi para uma trincheira de luta que conhecem bastante bem. Em meados dos anos 90, o seu mítico tema “Sr. Cobranza” expunha a corrupção do governo de Menem. Em 1998, foi popularizado pelo grupo Bersuit Vergarabat no disco “Libertinaje”, como banda fúnebre de um regime em decadência que deixava o país moribundo.

Agora, 30 anos depois, “Sr. Cobranza” de Las Manos de Fillipi reencarnou e abalou de novo o sistema. Num festival em Córdoba, noroeste da Argentina, em Fevereiro de 2024, o rapper Dillom interpretou um cover da velha canção, substituindo o verso “Norma Plá a Cavallo lo tiene que matar” por “A Caputo en la plaza lo tienen que matar” (“A Caputo, na praça, têm de o matar”), referência direta ao ministro da Economia do governo de Milei, Luis Caputo.

Las Manos de Fillipi têm sido, há décadas, uma voz potente contra o poder instituído na Argentina (DR) Las Manos de Fillipi têm sido, há décadas, uma voz potente contra o poder instituído na Argentina (DR)

Em Buenos Aires, caíram os Carmos e Trindades portenhos. Todo o peso do governo e apoiantes cibernéticos atacou sem tréguas o jovem músico. Dillom foi inclusivamente julgado por alegada “incitação à violência coletiva e fomento ao ódio contra uma pessoa pelas suas ideias políticas”. “Examinadas as presentes atuações, antecipo que a conduta de Masa [Dillom], que aqui se questiona, encontra-se dentro âmbito da proteção que a nossa Constituição Nacional brinda à liberdade de expressão”, determinaria a sentença do juiz Miguel Vaca Narvaja.

O contratempo de Dillom deu força à sua oposição a Milei. Em “Buenos Tiempos”, do álbum “Por cesárea”, repete vezes sem conta a frase “El día que muera, moriré en mi ley” (“No dia em que morrer, morrerei na minha lei”).

Montoneros, pop e reggaeton

A tentativa frustrada de calar Dillom tornou-o num símbolo na Argentina anti-Milei. Mas o compositor e produtor de música urbana é apenas mais um dos muitos músicos argentinos que, direta ou indiretamente, arremetem contra o presidente e sonorizam as lutas nas ruas de Buenos Aires e do país.

“Me cago en Milei y su hermana” (“Cago-me em Milei e na sua irmã”), posiciona-se Manuel Montenegro, vocalista de Broke Carrey, na canção “Montonero” (palavra que se traduz como pessoa que provoca e só ataca em grupo, surgida dos “Montoneros”, grupo argentino de resistência anti-peronista). O refrão é cru e direto: “Quiero morir por los míos como un montonero/ Tengo veneno en las encías como un montonero/ Si eso es libertad prefiero ser prisionero/ Voy a llevarme un par conmigo como un montonero” (“Quero morrer pelos meus, como um montonero/Tenho veneno nas gengivas como um montonero/ Se isso é liberdade, prefiro ser prisioneiro/ Vou levar um par [de pessoas] comigo como um montonero”. 

A banda sonora de protesto inclui também a carga do rap-reggaeton feminista da argentina Choco. Explosão nos versos de “Otario”: “Que se creen que son libres por llamarse liber… ¡otario!” (“Acham que são livres por chamar-se liber… otário!”); ou “Que para ser relevantes pagan Twitter y no tienen ni un amigo/ solo un líder delirante que se cree el elegido” (“Que para ser relevantes pagam Twitter e não têm um só amigo / Só um líder delirante que se acha o escolhido”).

Surpreendente para muitos, nem o universo pop fofinho se escondeu no bunker da apatia. Desde a participação na Marcha de Orgulho Antifascista, a 2 de Fevereiro, em Buenos Aires, em protesto pelas declarações de Milei no fórum de Davos contra os direitos das mulheres e homossexuais, as compositoras e intérpretes María Becerra e Lali Espósito estão na mira da ala presidencial. Estas vozes argentinas, talvez as mais internacionais, agarram o leão pela juba e não se detêm perante o bombardeamento oficialista de tuits misóginos e falsos. Tanto em entrevistas, espetáculos, como nas suas canções, dão golpes uma e outra vez no regime de Milei.

A cantora Lali Espósito tem sido algo de ataques contínuos de Milei (DR)A cantora Lali Espósito tem sido algo de ataques contínuos de Milei (DR)

A coreografia de Fanático, onde Lali Espósito responde de forma irónica aos ataques de Milei, foi adoptada por estudantes universitários em protestos (DR)A coreografia de Fanático, onde Lali Espósito responde de forma irónica aos ataques de Milei, foi adoptada por estudantes universitários em protestos (DR)

Lali Espósito tem sido particularmente visada (Milei chama-lhe “Lali Depósito”) e contundente. Em setembro passado, lançou “Fanático”, um hit pop em que goza descaradamente com o presidente, com elegância e sarcasmo. A música já foi adotada por muitos como hino anti-motoserra e catarse da angústia social. “Te encanta hacer como que no tenés idea quién soy/ Y sé que tenés un póster mío en tu habitación/ Cada vez que salís de noche, escuchás mi canción/ Y ya se la sabe de memoria: eso se llama obsesión” (“Adoras fingir que não tens ideia de quem sou / E sei que tens um poster meu no teu quarto / Cada vez que sais à noite, ouves a minha canção/ E já a sabes de cor: isso se chama obsessão”.

A bola de neve arrolhadora segue ladeira abaixo no mundo trap, hip-hop e reggaeton argentino, com muita mossa e barulho, que na verdade começou ainda antes da eleição de Milei. Em outubro de 2023, poucos dias antes das presidenciais,  o rapper Wos posicionou-se durante um concerto, contra a aliança “maldita” entre Javier Milei, Patricia Bullrich (então líder do partido Proposta Republicana, e atual Ministra de Segurança) e o ex-presidente argentino Mauricio Macri: “No soy falso león, no rancheo con los gatos ni me abrazo a un pato” (“Não sou um falso leão, não convivo com gatos nem me abraço a um pato”).

A lista de músicos argentinos divergentes é longa e inclui artistas importantes como Ca7riel, La Renga, Don Osvaldo, ou Trueno quem, no importante festival latino-americano Viña del Mar 2024, no Chile, não se calou: “Lembrem-se no Chile, na Argentina e no resto da América Latina: somos irmãos. E sem medo, digo que me cago em Videla, me cago em Pinochet e em todos os ditadores. Nunca mais, nem olvido nem perdão”. 

Tem também Índio Solari (“Estão-nos a cagar na cara, as pessoas não se dão conta de que o diabo se caga no seu nariz”) e o cantor folk Peteco Carabajal que, num concerto, arremeteu contra a vice-presidente Victoria Villarruel, negacionista do genocídio cívico-militar durante a ditadura. “Não se levantem, não chegou ninguém”, apelou, quando a senhora entrou no recinto.

A cultura argentina está sob ataque de Milei (DR)A cultura argentina está sob ataque de Milei (DR)A Justiça argentina determinou que Dillom não cometeu delito ao cantar contra o ministro da Economia, Luis Caputo (DR)A Justiça argentina determinou que Dillom não cometeu delito ao cantar contra o ministro da Economia, Luis Caputo (DR)

O público responde ao apelo, e usa também à sua maneira a música como arma. Nas ruas em protesto, nascem canções espontâneas que ganham força imediata. “Contra a direita neofascista”, de grupos feministas, é um exemplo viral. Também em plataformas como o Spotify, encontram-se pérolas como a lista “ANTI MILEI – Música de resistência latino-americana para gerar consciência nestes tempos de crise económica gerada por políticas que propõem desigualdade e apenas protegem os sectores mais piratas da sociedade”.

Cientes de que há um passado que os sustenta, tal como “Sr. Cobranza”, os manifestantes recuperam ainda as velhas, velhinhas músicas dos tempos da ditadura argentina ou dos períodos posteriores de convulsão social e política. Canções de protesto voltam a ecoar, ressignificadas, mas de um simbolismo potente. “Juan Represión” (1974), de Charly Garcia, é uma das mais tocadas. Mas também há “Los dinosaurios” (1983), do mesmo Charly;  “Como la cigarra” (1973), de María Elena Walsh, na voz da também icónica Mercedes Sosa; “Para el pueblo lo que es del pueblo” (1973), canção de Piero; “Sobreviviendo” (1984), de Victor Heredia; “Nunca más” (2005), de Teresa Parodi; ou “Desapariciones” (1992), de Los Fabulosos Cadillacs.

Calar por decreto

O poder da música e vozes divergentes combate-se na Argentina não só com campanhas de difamação forjadas na Casa Rosada, a sede oficial do Executivo argentino, como a que atenta contra Lali Esposito, Dillom, e tantos outros.

Esboçada em início de 2024, a proposta da Lei de Bases e Pontos de partida para a Liberdade dos Argentinos, a chamada “Lei Omnibus”, figurava um despiedoso desmantelamento de institutos públicos de cultura e arte, entre os quais o Instituto Nacional da Música (INAMU).

Os músicos argentinos logo se organizaram. Criaram coletivos em todo o país, dinamizaram ações mil, e formaram a Mesa da Indústria e de Atividade Musical, que se converteu no seu quartel com causa. No “Comunicado Urgente Nº 1 – Toda a vida tem música” expõem: “O nosso país, que é um exemplo de produção cultural, deixaria ‘apenas’ a lógica do Mercado que determina que cultura é produzida na Argentina. Quanto à Música, o projeto propõe modificar completamente o INAMU (Instituto Nacional de Música) e eliminar uma experiência que o tornou um exemplo de transparência, federalismo e otimização dos escassos recursos de que dispõe”.

Cartaz de convocatória de músicos folcloristas para apoiar as manifestações dos reformados argentinos (DR)Cartaz de convocatória de músicos folcloristas para apoiar as manifestações dos reformados argentinos (DR)Por essa altura, numa carta com o título “A cultura está em perigo”, Charly Garcia, Fito Páez, León Gieco, Cecilia Roth, Claudia Piñeiro, Leonardo Sbaraglia e outros músicos, além de mais 20 mil argentinos, refutavam com igual força as medidas previstas. “Cultura é identidade. A cultura é a única coisa que não pode ser importada. É feito pelo povo. Queremos continuar a ter a nossa própria identidade como Nação. Caso contrário, só nos restará o triste destino de não ser. É disso que se trata esta luta. Um país é tão grande ou tão pequeno quanto o tamanho do seu projeto cultural”.

Depois de muita discussão, avanços e recuos, o INAMU acabou por manter-se, apesar dos recortes orçamentais significativos. Estava dado o aviso, explica Fernando Sánchez em “Novas Canções de Protesto”. “O presidente Javier Milei decidiu que os artistas (de cinema, teatro, televisão, música, literatura, artes plásticas, todos) são inimigos de seu projeto como país paleolibertário e, desde o seu tempo como comentador de televisão, não parou de os atacar. É por isso que no ano passado [2023] houve músicos, atrizes e atores que não hesitaram em manifestar o seu receio de que ganhasse as eleições; E depois, com o resultado definido, saíram para enfrentar cada um a partir das suas trincheiras, sejam elas subterrâneas e de nicho ou massivas e com impacto global.” 

Neste movimento pendular de artistas na frente de batalha, a música assume-se, “fundamental”, indica. A pergunta surge naturalmente: “Nasceu uma canção de protesto do século XXI?” A resposta está aos ouvidos de todos, responde: “A nova canção de protesto soa no ar, apesar de não se chamar assim. E de às vezes custar distingui-la entre milhares de rimas, baixos de ultratumba, distorções digitais e autotune.” O triste espetáculo continua.

Javier Milei tem liderado pessoalmente ataques pessoais contra músicos opositores como María Becerra e Lali Espósito (DR)Javier Milei tem liderado pessoalmente ataques pessoais contra músicos opositores como María Becerra e Lali Espósito (DR)

por Pedro Cardoso
Vou lá visitar | 2 Abril 2025 | Argentina, canção de protesto, Javier Milei