Contos de Mar: resistências cruzadas
A América Latina banhada por oceanos com rotas cruzadas. Duas histórias de barcos que atravessam o Atlântico em sentido oposto. Viagens de luta mediatizadas e outras que se afundam num silêncio profundo. Navegantes aparentemente desconectados e sem relação, mas profundamente ancorados na resistência humana que os une em águas latino-americanas.
O mar-fantasma: ossos à deriva
As águas do mar das Caraíbas. Plácidas, transparentes-cartão-postal. Duas ilhas num país, Trinidade e Tobago. Onze quilómetros a leste da Venezuela. Calor tropical, húmido, palmeiras. Panfleto assoleado de agência turística.
Neste paraíso-cliché, na sexta-feira 28 de maio, um pescador lançou-se ao mar em Pembroke, sul de Tobago. À vista, a dada altura, uma pequena embarcação, seis ou sete metros da popa à proa. Branca por fora, azul por dentro. Sem motor e claramente à deriva. O pescador aproxima-se e encontra um cenário de terror. Dentro do frágil barco, metidos em roupa desportiva preta e casacos impermeáveis verdes, 15 corpos apodrecidos, um deles puro esqueleto.
O alerta foi imediato e a Agência de Gestão de Emergências de Tobago (TEMA, na sigla em inglês) abriu uma investigação. “Todos os corpos (…) são de ascendência africana”, emitiu num comunicado. A pele negra chamava a atenção. Durante dias, a imprensa local especulou se seriam venezuelanos, parte da onda de migrantes desse país que, nos últimos anos, têm tentado entrar ilegalmente no pequeno arquipélago. Alguns falavam de África.
As autoridades de Trinidade e Tobago não demoraram muito a descobrir a origem do barco fantasma. Uma investigação flash indicou que a embarcação fora roubada na Mauritânia. Um telemóvel encontrado a bordo com um número desse país confirmava a origem africana dos navegantes.
Nunca se saberá, ao certo, o que aconteceu. Mas a vaga de emigração de africanos para a Europa e a experiência do TEMA permitem contar uma história bastante provável: os mauritanos, seguramente mais do que os 15 encontrados, terão embarcado rumo às ilhas Canárias, o território Schengen mais próximo da costa da África Ocidental. Em algum momento, uma tempestade, um erro ou uma fatalidade terá desviado a frágil embarcação da rota prevista. As fortes correntes oceânicas fizeram o resto: arrastaram o barco Atlântico adentro, mais de cinco mil quilómetros a oeste até ao Mar das Caraíbas. Um a um, lentamente, os migrantes foram morrendo de fome, desidratação e desespero.
Este calvário durou meses. Em meados de fevereiro, as autoridades de Guiana, a sul de Trinidade e Tobago, localizaram um “barco fantasma” a 150 quilómetros das suas costas com cadáveres a bordo. Em tudo era parecido à embarcação mauritana. Na altura lançou-se, sem sucesso, uma operação de busca.
Apesar de chocante, esta tragédia passou ao lado de meio mundo. Na verdade, os barcos fantasma com cadáveres de africanos à deriva no mar centro-sul da América é uma história repetida. Em março passado, uma embarcação similar foi resgatada na costa caribenha da Nicarágua. Seis corpos decompostos a bordo e um passaporte da Guiné-Conacri descortinavam a origem desta rota de morte. Muitos anos antes, em 2006, onze corpos petrificados foram também encontrados à deriva em frente aos Barbados. Sem grandes detalhes, as autoridades revelaram que também vinham da África Ocidental, apontando Cabo Verde como ponto intermédio da viagem. As correntes atlânticas emboscaram-nos.
Enquanto alguns migrantes africanos são desviados do seu caminho para a Europa, outros saem dos seus países apontando deliberadamente o leme para as Américas. Viajam em embarcações precárias ou em pesqueiros que os levam na travessia transatlântica a troco de algumas moedas. Para eles, a travessia é um ponto mais antes do destino final: Estados Unidos ou Canadá. Ao desembarcarem no Brasil, geralmente, começam então uma viagem até ao Equador, de onde seguem uma rota por terra e mar, América acima, até ao norte. Cruzam selvas, golfos turbulentos, desertos. Em fronteiras perigosas, tentam fintar o crime organizado, os traficantes de pessoas e as autoridades corruptas. Tal como os embarcados mauritanos, muitos ficam pelo caminho. Longe de tudo, num silêncio perturbador.
Ler série “Angolanos a caminho dos Estados Unidos” – ”Os Invisíveis”, “Os Afogados” , ”Os Perdidos” , “Os Passageiros”, “Os Ilegais”.
O mar do leste: A rota de Ixchel
Disse Ixchel: “Que a vida e a liberdade naveguem amanhã para leste na palavra dos meus ossos e do meu sangue, filhas minhas. Que não mande nenhuma cor. Que ninguém mande para que ninguém obedeça, e que cada um seja o que é com alegria. Porque a pena e a dor vêm dos que querem espelhos e não cristais para ver todos os mundos que sou. Nessa ira, haverá que partir sete mil espelhos até que se alivie a dor.”
O astrolábio de Ixchel no sentido oeste-leste. A profecia da deusa maia da lua, da fertilidade e do amor, foi o ponto de partida de uma expedição de sete zapatistas que saiu do México rumo à Europa, cruzando o Atlântico. Durante mais de um mês, a viagem deste grupo, chamado Esquadrão 421, seguiu a rota inversa, tipo marcha-atrás, da que trouxe a frota do conquistador espanhol Hernán Cortez há meio milénio às costas maias. Romantizada por muitos, esta viagem é mais que folclore ou nostalgia revolucionária dos anos noventa. Para os povos maias, é a viagem anunciada no oráculo de Ixchel, a que ajudará a reparar a ordem natural das coisas.
Depois de 50 dias no mar alto, com uma paragem nos Açores, a delegação de zapatistas (quatro mulheres, dois homens e uma pessoa de género não binário, entre 19 e 57 anos) pisou o porto de Vigo na terça-feira, 22 de junho. Eram 6horas e 10 minutos da tarde no porto galego. Células do movimento em toda a Europa e coletivos de mil lutas – pelos desaparecidos no México, pela defesa do meio ambiente e dos direitos das mulheres e LGBTIQ+ – receberam a expedição “Travessia pela Vida”. Gaitas-de-fole, flautas e pandeiretas, as tradicionais muñeiras galegas, entre gritos de “A luta continua”.
Recém-desembarcados, Lupita, Carolina, Ximena, Yuli, Bernal, Darío e Marijose, os zapatistas do “Esquadrão 421”, subiram a um palco e rebatizaram o chão europeu: “Em nome de todas as mulheres, crianças e ‘outroas’ zapatistas, declaramos que esta terra, a partir de agora, se chamará ‘Terra Insubmissa’, terra que não se resigna. E assim será reconhecida pelos próprios e estranhos enquanto houver alguém aqui que não se renda, que vença e que não desista”.
O mítico subcomandante Marcos (auto-renomeado Subcomandante Galeano em 2014, em homenagem a um companheiro caído), adivinhava, dias antes, este momento. Com o típico estilo literário e alegórico dos discursos zapatistas, descrevia num comunicado: “O céu europeu chora, comovido. As suas lágrimas confundem-se com as que humedecem a cara – curtida ao sol, mar, angústias e adrenalina -, do intrépido Esquadrão 421”. De enfiada, fundou um novo mito. “Nos seus passos, nos seus olhares, nos seus latidos, os povos maias – assim dirá a lenda – cruzaram o Atlântico em 50 dias com as suas noites, na sua longa e acidentada travessia pela vida”.
Esta travessia marítima do povo maia, “a dos povos excluídos”, foi anunciada em outubro do ano passado. No comunicado “Uma Montanha no Alto Mar”, o atual líder do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZNL), subcomandante Moisés, aproveitava a deixa para reivindicar a autonomia do seu movimento. “Iremos dizer ao povo espanhol duas coisas simples: uma, que não nos conquistaram, que continuamos em resistência e rebeldia; outra, que não têm por que pedir que lhes perdoemos nada. Já basta de jogar com o passado para justificar, com demagogia e hipocrisia, os crimes atuais e em curso”. O recado era evidente. Meses antes, o presidente mexicano, López Obrador, exigira ao Rei de Espanha e à Igreja Católica um pedido de perdão oficial pelas atrocidades da conquista do que hoje é o México.
No seu manifesto, o subcomandante Moisés reforça a intenção de juntar forças com movimentos europeus “que resistem”. “Sairemos a percorrer o mundo, caminharemos ou navegaremos até terras, mares e céus remotos, procurando não a diferença, não a superioridade, não o confronto, muito menos o perdão e a lástima. Iremos à procura do que nos faz iguais”. Mais tarde, o subcomandante Galeano acrescentaria: “Vamos dizer ao mundo capitalista que ‘outro mundo é possível’ e que ‘nunca mais um mundo sem nós’”.
Com a missão bem traçada, a 2 de maio, o navio “La Montaña” zarpou do molhe de Islas Mujeres, Caribe mexicano. A bordo do navio “La Montaña”, o Esquadrão 421, a tripulação alemã e dois jornalistas que trabalham num documentário sobre a viagem. “Esta é uma montanha que navega contra a corrente da História!”, reafirmou então o subcomandante Moisés.
Chegada ao primeiro destino, a delegação prepara os próximos passos. Um outro grupo de zapatistas deverá aterrar em Espanha para engrossar a expedição. Com o simbolismo a marcar a agenda, o Esquadrão 421 chegará a Madrid no dia 13 de agosto, data em que se assinalam os 500 anos da queda, às mãos dos espanhóis, de Tenochtitlan, a poderosa capital azteca (atual Cidade do México). A viagem seguirá, depois, por mais de 30 países europeus, Portugal incluído.
E assim termina Ixchel: “Muita morte terão que sofrer para que, por fim, o caminho seja a vida. Por isso, que o arco-íris coroe cada uma das minhas filhas e a montanha que é a terra de meus sucessores”. A oriente de Chiapas, onde a deusa-lua se põe, a emoção comanda o diário de bordo que o subcomandante Galeano escreve desde a selva de Lacandona para contar tanto mar. “Lá fora faz frio, mas dentro, na geografia do coração, algo como um sentimento aquece a alma.”