Cem anos de sombras e morte: gigante Chiquita Brands financiou estado de terror nos campos da Colômbia

“Esta acusação histórica assinala a primeira vez que um jurado norte-americano considera responsável uma importante corporação dos EUA, por cumplicidade com graves abusos contra os direitos humanos noutro país. É um marco para a justiça!” Com esta exclamação, a Earth Rights International, organização que representou os demandantes no caso contra a Chiquita Brands, traça “um antes e depois” que todos desejam.

Chiquita Brands é a herdeira da United Fruits Company, multinacional com um histórico sombrio na América Latina (DR)Chiquita Brands é a herdeira da United Fruits Company, multinacional com um histórico sombrio na América Latina (DR)

O que é considerado “histórico”, na América Latina foi, na realidade, uma confirmação. Em 2007, três anos depois de terminar as suas operações na Colômbia, o gigante da indústria bananeira Chiquita Brands admitiu num tribunal de Nova Iorque ter pago, entre 1997 e 2004, 1,7 milhões de dólares às Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC). Esta organização paramilitar espalhou o terror nas regiões de Urabá e Magdalena, no norte da Colômbia, nos finais da década de 90. 

Quando, em 2001, os EUA incluíram o grupo paramilitar na lista de organizações terroristas, o financiamento da empresa norte-americana às AUC converteu-se num delito federal. O julgamento do caso, em 2007, terminou com um acordo judicial e uma multa de 25 milhões de dólares à multinacional. Nem um centavo se considerou para as vítimas do grupo paramilitar. A indignação desencadeou a ação judicial coletiva pela morte de nove camponeses, que durou 17 anos e terminou há três meses.

Na sentença do último 10 de Junho, a justiça da Florida determinou então que os 1,7 milhões de dólares que a multinacional pagou à AUC foram usados para cometer crimes de guerra como homicídios, sequestros, extorsões, torturas e desaparecimentos forçados. Como tal, acusou a Chiquita Brands de ser civilmente responsável pela morte de oito dos nove camponeses referidos no processo, às mãos dos paramilitares das AUC.

Chiquita Brands financiou guerrilheiros das AUC, do ELN, as FARC e do  EPL antes de 1997. (El Colombiano)Chiquita Brands financiou guerrilheiros das AUC, do ELN, as FARC e do EPL antes de 1997. (El Colombiano)O tribunal de West Palm evidenciou ainda que Chiquita Brands não pôde suster a tese da defesa, que alegava que os pagamentos feitos eram “insignificantes” face ao que as AUC auferiam com o tráfico de droga. Desmontou também a estratégia de vitimização da empresa, que jurava a pés juntos ter atuado sob “ameaça ilegal, imediata e iminente”, não tendo “outra alternativa razoável” senão a de “proporcionar assistência” ao grupo paramilitar para “proteger o negócio e os trabalhadores”. O testemunho do antigo comandante dos paramilitares de Urabá, Ever Veloza, durante o julgamento, foi determinante: “Eram os próprios empresários de Chiquita quem procuravam os ‘paras’ para pedir-lhes ajuda”.

Chiquita Brands está agora obrigada a pagar um total de 38,6 milhões de dólares a 16 familiares das oito vítimas. Depois do veredicto, a multinacional norte-americana, dona de um histórico de 125 anos de abusos na América Central e do Sul, balbuciou num comunicado que a situação na Colômbia foi “trágica para muitos, incluindo os diretamente afetados pela violência”. “Os nossos pensamentos permanecem com eles e com as suas famílias”.

Colômbia olha-se ao espelho

O desfecho deste processo pode ser apenas o início de algo maior. Atualmente, a Chiquita Brands enfrenta acusações judiciais de mais de sete mil pessoas, que a acusam do mesmo: cumplicidade com os paramilitares nos homicídios e estado de terror dos anos 90 nas plantações do norte da Colômbia.

Num comunicado após a sentença, Marco Simons, conselheiro-geral da Earth Rights International, admitia que a caixa de Pandora estava escancarada. “Este veredicto envia uma mensagem poderosa às empresas em todo o mundo: lucrar com as violações dos direitos humanos não ficará impune. Essas famílias, vítimas de grupos armados e corporações, afirmaram o seu poder e prevaleceram no processo judicial”.

Nem todos estão tão otimistas. Helber Noguera, professor universitário colombiano, admite num artigo  em “Razón Pública” que a sentença contra Chiquita Brands é “valiosa”, mas “insuficiente” – “apenas responde às exigências de justiça de nove famílias, que conseguiram aceder à administração da justiça nos Estados Unidos”. Além disso, continua, é “excecional, porque representa uma pequena percentagem das vítimas dos crimes perpetuados pelos paramilitares, praticados graças ao financiamento das empresas”. E “longínquo”, já que “é um veredicto judicial proferido fora da Colômbia (…) que determina a responsabilidade das empresas no financiamento de crimes de guerra e crimes contra a humanidade contra líderes sociais, camponeses, indígenas e civis, bem como outras violações dos direitos humanos por parte de grupos paramilitares.”

O académico quantifica este desequilíbrio. “Olhando apenas para o processo especial de Justiça e Paz”, a lei que sustentou o processo de paz na Colômbia, “houve mais de 17 mil cópias autenticadas de acusações enviadas para a Procuradoria-Geral da República, que resultaram em apenas 2300 acusações sobre as alianças entre paramilitares e empresas de todo o país”.

Investigações mais profundas sobre o próprio caso da Chiquita Brands confirmam este fosso.  A acusação por financiamento às AUC foi, na verdade, apenas a ponta do véu, e ainda há muito que descobrir e investigar. Segundo o jornal El Colombiano, “documentos da empresa que foram desclassificados e publicados” mostram como a multinacional também “fazia pagamentos regulares a guerrilhas como o ELN [Exército de Libertação Nacional], FARC [Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia] e EPL [Exército Popular de Libertação] até à sua desmobilização, em 1991, e depois, a um grupo de pequenas dissidências que se formou na região onde [Chiquita Brands] operava”. O objetivo, informaram, era “manter estáveis os sindicatos internos e, supostamente, por segurança”.

Entre 1991 e 2011, os paramilitares executaram 97 massacres na região de Urabá, norte da Colômbia (Carlos Villalon - Europa Press)Entre 1991 e 2011, os paramilitares executaram 97 massacres na região de Urabá, norte da Colômbia (Carlos Villalon - Europa Press)

“Quando, em 1995, as AUC assumiram o território” deixado vago pelos grupos anteriores, Chiquita Brands “transferiu então o seu financiamento” para essa organização, “o que exacerbou a violência” na “campanha para exterminar o comunismo”. Os documentos vistos por El Colombiano revelam ainda que “os pagamentos da Chiquita foram revistos e aprovados por altos executivos da organização, bem como por altos funcionários, diretores e funcionários menores”. “Antes de 1997, esses pagamentos eram registados com coordenadas e códigos; depois, com os conceitos de ‘segurança’ ou ‘serviços de segurança’”.

Mais do que destapar os subterrâneos destas relações, o veredicto na Flórida lançou uma onda de choque no sistema de justiça da Colômbia, a quem muitos passam agora um valente atestado de incompetência. A começar pelo presidente. Na sua conta de X, Gustavo Petro insurgiu-se de imediato. “Por que a justiça dos EUA foi capaz de determinar judicialmente que Chiquita Brands financiou o paramilitarismo em Urabá? Por que a justiça colombiana não pôde fazê-lo?” “Se o acordo de paz de 2016 [com as FARC] (…) fala de um único tribunal de apuramento da verdade judicial, por que não o temos?”, questionou Petro.

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Enquanto se tentam encontrar respostas, se há algo que não restam dúvidas é que o caso Chiquita Brands demonstra mais uma vez que a guerra que os colombianos sofreram durante mais de meio século não confrontou apenas grupos insurgentes como as FARC, o Estado e organizações paramilitares, apontam vários analistas à imprensa. Sem surpresas, os interesses económicos faziam muitas vezes parte das engrenagens do conflito e havia empresas cúmplices nesta lógica.

O massacre das bananeiras

Os pagamentos da Chiquita Brands aos grupos paramilitares na Colômbia são apenas “uma das sombras que obscurecem a longa história da empresa” na América Latina, recorda o artigo “A obscura influência na América Latina da bananeira dos EUA United Fruit Company e da sua herdeira Chiquita Brands”, da BBC.

Desde a fundação da United Fruit Company, em 1899, e durante a expansão fulminante pela América Central e do Sul, a empresa que Peter Chapman classifica como “a primeira das multinacionais modernas” (“Bananas: How the United Fruit Company Shaped the World”), “mudou o mundo com o seu modelo de produção de bananas e influiu na política e economia de vários países latino-americanos”. A United Fruit Company, predecessora da Chiquita Brands foi, assim, “o representante por excelência do imperialismo norte-americano na América Latina”, pois tinha “os governos locais no bolso, controlava a economia local dos países onde operava e explorava duramente os trabalhadores das plantações”, escreveu, por sua vez o historiador Marcelo Bucheli na revista “The Business History Review”, citado no mesmo artigo.

Integrantes de grupos de Autodefesas em Antioquia, Colombia. (Nadège Mazars, Getty Images)Integrantes de grupos de Autodefesas em Antioquia, Colombia. (Nadège Mazars, Getty Images)

Na Colômbia, em específico, o terror provocado pela multinacional dos EUA é coisa de quase um século e ainda está bem presente na memória coletiva. A 5 e 6 de dezembro de 1928, um protesto dos trabalhadores da United Fruits Company por melhores condições laborais foi brutalmente reprimido pelo governo colombiano, a pedido da empresa. O “massacre das bananeiras”, como ficou conhecido este episódio de horror, abalou a pequena localidade de Ciénaga, no norte do país, onde o exército matou centenas de pessoas, entre grevistas, mulheres e crianças.

Este massacre é uma das passagens mais cruéis e inquietantes de “Cem Anos de Solidão”. Neste clássico, Gabriel García Márquez transforma Ciénaga em Macondo e ficciona a memória, mostrando o seu lado mais real e abrupto.

“A grande greve estourou. Os cultivos ficaram pelo meio, a fruta apodreceu no pé e os trens de cento e vinte vagões ficaram parados nos desvios. Os operários ociosos atulhavam as aldeias. A Rua dos Turcos reverberou num sábado de muitos dias e no salão de bilhar do Hotel de Jacob foi preciso organizar turnos de vinte e quatro horas. Lá estava José Arcadio Segundo, no dia em que se anunciou que o exército tinha sido encarregue de restabelecer a ordem pública. Embora não fosse homem de presságios, a notícia foi para ele como um anúncio de morte que tinha esperado desde a manhã distante em que o Coronel Gerineldo Márquez lhe permitira ver um fuzilamento. 

Entretanto, o mau agouro não alterou a sua gravidade. Fez a jogada que tinha prevista e não errou a carambola. Pouco depois, as descargas de bumbo, os latidos do clarim, os gritos e o tropel do povo lhe indicaram que não só a partida de bilhar, mas também a calada e solitária partida que jogava consigo mesmo desde a madrugada da execução, tinham, por fim, terminado. Então, chegou até a rua e viu. Eram três regimentos cuja marcha pautada por tambor de galés fazia a terra trepidar. O seu resfolegar de dragão multicéfalo impregnou de um vapor fedorento a claridade do meio-dia. Eram pequenos, maciços, brutos. Suavam com suor de cavalo e tinham um cheiro de carne viva macerada pelo sol e a impavidez taciturna e impenetrável dos homens do páramo. Embora demorassem mais de uma hora a passar, davam a impressão de ser uns poucos pelotões andando em círculo, porque todos eram idênticos, filhos da mesma mãe, e todos suportavam com igual imbecilidade o peso das mochilas e dos cantis, e a vergonha dos fuzis com as baionetas caladas, e a ferida da obediência cega e o sentido da honra. Úrsula os ouviu passar do seu leito de trevas e levantou a mão com os dedos cruzados. Santa Sofia de la Piedad existiu por um instante, inclinada sobre a toalha bordada que acabava de passar a ferro, e pensou em seu filho, José Arcadio Segundo, que viu passar, pela porta do Hotel de Jacob, sem se perturbar, os últimos soldados.

A lei marcial facultava ao exército assumir funções de árbitro da controvérsia, mas não se fez nenhuma tentativa de conciliação. Imediatamente após se exibirem em Macondo, os soldados puseram de lado os fuzis, cortaram e embarcaram as bananas e movimentaram os trens. Os trabalhadores, que até então se haviam conformado com esperar, atiraram-se ao mato sem mais armas que os seus facões de trabalho, e começaram a sabotar a sabotagem. Incendiaram fazendas e armazéns, destruíram os trilhos para impedir o trânsito dos trens, que começavam a abrir caminho a fogo de metralhadora, e cortaram os fios do telégrafo e do telefone. Os canais de irrigação tingiram-se de sangue. O Sr. Brown, que estava vivo no galinheiro eletrificado, foi tirado de Macondo com a sua família e as de Outros compatriotas seus, e conduzido para território seguro sob a proteção do exército. A situação ameaçava evoluir para uma guerra civil desigual e sangrenta quando as autoridades fizeram um apelo aos trabalhadores para que se concentrassem em Macondo. O apelo anunciava que o chefe civil e militar da província chegaria na sexta-feira seguinte, disposto a interceder no conflito.

José Arcadio Segundo estava entre a multidão que se concentrou na estação desde a manhã de sexta-feira. Tinha participado de uma reunião de dirigentes sindicais e tinha sido encarregue, junto com o Coronel Gavilán, de se confundir com a multidão e orientá-la segundo as circunstâncias. Não se sentia bem e moldava uma massa salitrosa no céu da boca desde que notou que o exército tinha colocado ninhos de metralhadoras em volta da praça e que a cidade cercada da companhia bananeira estava protegida por peças de artilharia. Até as doze, esperando um trem que não chegava, mais de três mil pessoas, entre trabalhadores, mulheres e crianças, tinham atulhado o espaço descoberto em frente da estação e se apertavam nas ruas adjacentes, que o exército fechara com filas de metralhadoras. Aquilo parecia, então, mais que uma receção, uma feira jubilosa. Haviam transferido as barraquinhas de frituras e as tendas de bebidas da Rua dos Turcos e o povo suportava com muito boa vontade a amolação da espera e o sol abrasador. Um pouco antes das três, correu o boato de que o trem oficial não chegaria até o dia seguinte. A multidão cansada exalou um suspiro de desalento. Um tenente do exército subiu em seguida no teto da estação, onde havia quatro ninhos de metralhadoras apontadas contra a multidão, e deu um toque de silêncio. Ao lado de José Arcadio Segundo estava uma mulher descalça, muito gorda, com duas crianças de cerca de quatro e sete anos. Pegou o menor no colo e pediu a José Arcadio, sem reconhecê-lo, que levantasse o outro para que ouvisse melhor o que iam dizer. José Arcadio Segundo acavalou o menino na nuca. Muitos anos depois, esse menino haveria de continuar contando, sem que ninguém acreditasse, que tinha visto o tenente lendo com um megafone de vitrola o decreto Número 4 do Chefe Civil e Militar da província, assinado pelo General Carlos Cortes Vargas e pelo seu secretário, o Major Henrique García Isaza, e em três artigos de oitenta palavras classificava os grevistas de quadrilha de malfeitores e facultava ao exército o direito de matá-los a bala.

Os líderes da greve das bananeiras de 1928, exigiam contratos diretos e melhores condições de salubridade nas suas casas (BBC-Wikimedia Commons)Os líderes da greve das bananeiras de 1928, exigiam contratos diretos e melhores condições de salubridade nas suas casas (BBC-Wikimedia Commons)

Lido o decreto, no meio de uma ensurdecedora vaia protesto, um capitão substituiu o tenente no teto da estação e, com o megafone de vitrola, fez sinal de que queria falar. A multidão voltou a fazer silêncio. 

— Senhoras e senhores disse o capitão com uma baixa, lenta, um pouco cansada — têm cinco minutos para se retirar. 

A vaia e os gritos repetidos afogaram o toque de que anunciou o princípio do prazo. Ninguém se mexeu. 

— Já passaram os cinco minutos — disse o capitão mesmo tom. — Mais um minuto e atiramos.

José Arcadio Segundo, suando gelo, desceu o menino ombros e o entregou à mulher. “Esses cornos são capazes disparar”, murmurou ela. José Arcadio Segundo não teve tempo de falar, porque no mesmo instante reconheceu a voz rouca do Coronel Gavilán fazendo eco com um grito às palavras da mulher. Embriagado pela tensão, pela maravilhosa profundidade do silêncio e, além disso, convencido de que nada faria se mover aquela multidão pasmada pela fascinação da morte, José Arcadio Segundo se ergueu acima das cabeças que tinha pela frente, e, pela primeira vez em sua vida, levantou a voz. 

— Cornos! —gritou. — Podem levar de presente o minuto que falta.

Ao fim do seu grito aconteceu uma coisa que não lhe produziu espanto, mas uma espécie de alucinação. O capitão deu a ordem de fogo e quatorze ninhos de metralhadoras responderam imediatamente. Mas tudo parecia uma farsa. Era como se as metralhadoras estivessem carregadas com fogos de artifício, porque se escutava o seu resfolegante matraquear se viam as suas cusparadas incandescentes, mas não se percebia a mais leve reação, nem uma voz, nem sequer um suspiro entre a multidão compacta que parecia petrificada por uma invulnerabilidade instantânea. De repente, de um lado da estação, um grito de morte quebrou o encantamento: “Aaaai, minha mãe.” Uma força sísmica, uma respiração vulcânica, um rugido de cataclismo arrebentaram no centro da multidão com uma descomunal potência expansiva. José Arcadio Segundo mal teve tempo de levantar o menino, enquanto a mãe e o outro eram absorvidos pela multidão centrifugada pelo pânico.

Muitos anos depois, o menino haveria de contar ainda, apesar de os vizinhos continuarem a encará-lo como um velho maluco, que José Arcadio Segundo o erguera por cima da sua cabeça e se deixara arrastar, quase no ar, como que flutuando no terror da multidão, para uma rua adjacente. A posição privilegiada do menino lhe permitiu ver que nesse momento a massa ululante começava a chegar na esquina e a fila de metralhadoras abriu fogo. Várias vozes gritaram ao mesmo tempo: 

— Atirem-se no chão! Atirem-se no chão!

Os paramilitares colombianos deixaram um saldo de 4 mil vítimas na região de Urabá  (Albeiro Lopera - Reuters)Os paramilitares colombianos deixaram um saldo de 4 mil vítimas na região de Urabá (Albeiro Lopera - Reuters)

Já os das primeiras linhas o tinham feito, varridos pelas rajadas da metralha. Os sobreviventes, em vez de se atirarem no chão, tentaram voltar à praça e o pânico deu uma rabanada de dragão, e os mandou numa onda compacta contra a outra onda compacta que se movimentava em sentido contrário, despedida pela outra rabanada de dragão da rua oposta, onde também as metralhadoras disparavam sem trégua. Estavam encurralados, girando num torvelinho gigantesco que pouco a pouco se reduzia ao seu epicentro, porque os seus bordos iam sendo sistematicamente recortados em círculo, como descascando uma cebola, pela tesoura insaciável e metódica da metralha. O menino viu uma mulher ajoelhada, com os braços em cruz, num espaço limpo, misteriosamente vedado aos disparos. Ali o colocou José Arcadio Segundo, no instante de cair com a cara banhada em sangue, antes que o tropel colossal arrasasse com o espaço vazio, com a mulher ajoelhada, com a luz do alto céu de seca e com o puto mundo onde Úrsula lguarán tinha vendido tantos animaizinhos de caramelo.

Quando José Arcadio Segundo acordou, estava de peito para cima nas trevas. Percebeu que ia num trem interminável e silencioso, e que tinha o cabelo empastado pelo sangue seco e que lhe doíam todos os ossos. Sentiu um sono insuportável. Disposto a dormir muitas horas, a salvo do terror e do horror, acomodou-se do lado que lhe doía menos e só então descobriu que estava deitado sobre os mortos. Não havia um espaço livre no vagão, exceto o corredor central. Deviam ter passado várias horas do massacre, porque os cadáveres tinham a mesma temperatura do gesso no outono e a sua mesma consistência de espuma petrificada, e os que os tinham colocado no vagão tiveram tempo de arrumá-los na ordem e no sentido em que se transportavam os cachos de banana. Tentando fugir do pesadelo, José Arcadio Segundo arrastou-se de um vagão a outro, na direção em que avançava o trem, e, nos relâmpagos que surgiram por entre as esquadrias de madeira ao passar pelos povoados adormecidos, via os mortos homens, os mortos mulheres, os mortos crianças, que iam talvez ser atirados ao mar como as bananas refugadas. Só reconheceu uma mulher que vendia refrescos na praça e o Coronel Gavilán, que ainda trazia enrolado na mão o cinturão com a fivela. de prata mexicana com que tentara abrir caminho através do pânico. Quando chegou ao primeiro vagão deu um salto para a escuridão e ficou estendido na vala da estrada até que o trem acabou de passar. Era o mais comprido que já tinha visto, com quase duzentos vagões de carga e uma locomotiva em cada extremo e uma terceira no centro. Não tinha nenhuma luz, nem sequer os faróis vermelhos e verdes de disposição, e deslizava numa velocidade noturna e sigilosa. Em cima dos vagões se viam os vultos escuros dos soldados com as metralhadoras preparadas.

Executivos de Chiquita Brands chegaram a ter reuniões com líderes paramilitares (Donaldo Zuluaga - Colprensa)Executivos de Chiquita Brands chegaram a ter reuniões com líderes paramilitares (Donaldo Zuluaga - Colprensa)

Depois da meia-noite caiu um aguaceiro torrencial. Jose Arcadio Segundo ignorava onde tinha saltado mas sabia que caminhando em sentido contrário ao do trem chegaria a Macondo. Ao fim de mais de três horas de marcha, ensopado até os ossos, com uma dor de cabeça terrível, divisou as primeiras casas à luz do amanhecer. Atraído pelo cheiro do café, entrou numa cozinha onde uma mulher com uma criança no colo estava inclinada sobre o fogão. 

— Bom dia — disse exausto. — Sou José Arcadio Segundo Buendía.

Pronunciou o nome completo, letra por letra, para se convencer de que estava vivo. Fez bem porque a mulher tinha pensado que era uma assombração, ao ver na porta a figura esquálida, sombria, com a cabeça e a roupa sujas de sangue e tocada pela solenidade da morte. Conhecia-o. Trouxe uma manta para que se cobrisse enquanto secava a roupa no fogão, esquentou água para que lavasse a ferida, que era apenas um arranhão na pele, e lhe deu uma fralda limpa para que vendasse a cabeça. Em seguida, serviu-lhe uma xícara de café, sem açúcar como lhe haviam dito que tomavam os Buendía, e estendeu a roupa perto do fogo. José Arcadio Segundo não falou enquanto não terminou de tomar o café. 

— Deviam ser uns três mil — murmurou. 

— O quê? 

— Os mortos — esclareceu ele. 

— Deviam ser todos os que estavam na estação.

A mulher mediu-o com um olhar de pena. “Aqui não houve mortos”, disse. “Desde a época do seu tio, o coronel, que não acontece nada em Macondo.” Em três cozinhas se deteve José Arcadio. Segundo antes de chegar em casa lhe disseram a mesma coisa: “Não houve mortos.” Passou pela praça da estação e viu as mesas de frituras amontoadas uma em cima da outra e tampouco ali encontrou algum rastro do massacre. As ruas estavam desertas sob a chuva tenaz e as casas fechadas, sem vestígios de vida interior.”

por Pedro Cardoso
Jogos Sem Fronteiras | 23 Agosto 2024 | agricultores, Chiquita Brands, Colômbia, EUA, justiça