Maryse Condé “Amar os outros parece-me ser a forma, talvez a única, de causar impacto”
A morte de Maryse Condé, a 2 de Abril, foi assim – ruidosa depois do último suspiro, também nos escaparates. A “grande dama” das letras francesas ou a “voz suprema da literatura caribenha”, como lhe chamavam, partiu aos 90 anos no sul de França e o mundo literário comoveu-se.
Há vários anos que não via. Os últimos três livros foram ditados, palavra por palavra, ao marido e a um amigo. A voz transformou-se na pena desta escritora da ilha caribenha de Guadalupe, que explorou temas espinhosos – raça, género e colonialismo – numa obra vasta que lhe acompanhou os passos e lutas pelas Antilhas, África, Europa e Estados Unidos.
Maryse Boucolon nasceu a 11 de Fevereiro de 1934 na cidade guadalupense de Pointe-à-Pitre, no ultramar francês. A mãe foi uma das primeiras professoras negras da ilha. O pai era o dono de um banco local. “Os meus pais tiveram infâncias terríveis. Nenhum dos dois sabia quem era o pai. A minha avó materna era criada e ‘alugada’ aos brancos crioulos, e a mãe do meu pai foi queimada até à morte na sua cabana”.
Ainda assim (ou talvez por isso mesmo), a família Boucolon “simplesmente escolheu ser francesa”, resumia Maryse Condé à editora Impedimenta. “Os meus pais foram vítimas de ideias coloniais, mas não se aperceberam. Queriam mostrar que negros como eles podiam-se comportar bem e dar o exemplo (…) pensavam que, para proteger os filhos, era melhor não falarmos sobre a nossa origem africana.” Fiéis à “burguesia negra da ilha”, os pais da escritora impediam os oito filhos de participar nas manifestações populares ou de conviverem com crianças “socialmente inferiores”.
Dentro da bolha em que vivia, a literatura ocupava um espaço importante. Aos 12 anos, Maryse já tinha lido toda a obra de Victor Hugo. Com essa idade, dedicou à mãe uma peça de teatro de um ato só. “Às vezes penso que só estou aqui porque persegui o sonho do meu irmão. Queria ser escritor e não podia. Estou a realizar o seu sonho”, disse ao El País.
Imersa nas letras e cada vez mais atenta ao seu entorno, as “contradições em Guadalupe” não tardaram a incomodá-la. “Era muito mimada e não tinha a menor consciência da realidade [racial]”. Recorda um momento lapidar: “[Certa vez] uma rapariga branca disse-me que a mãe lhe ia bater se a visse comigo. Mas, na realidade, tudo me foi revelado na sua total crueza quando, aos 16 anos, me mudei para Paris para estudar. Foi aí que descobri o meu passado e a minha verdadeira identidade.”
“A cor é um epifenómeno”
“A França era profundamente racista, as crianças recusavam-se a sentar-se ao lado dos negros no metro”, contou numa entrevista a El País, em 2021. “As pessoas faziam comentários do género ‘como é fofa essa menina’. Foi quando percebi que não era como os franceses. Antes, eu não sabia disso. Descobri-o em Paris.”
Nesses “anos de choque”, Maryse estudou na Sorbonne. Trabalhou na rádio e frequentou os círculos intelectuais negros. Nunca deixou de escrever e, em 1953, publicou os primeiros contos.
A curiosidade e “uma certa busca identitária” levaram-na em 1960 por uma longa jornada africana de 13 anos. Viveu na Côte d’Ivoir, Gana, Senegal e Guiné-Conacri, onde se politizou com colegas marxistas. “Sou atraída por pessoas prontas a desobedecer à lei e que se recusam a aceitar ordens de qualquer pessoa – pessoas que, como eu, não acreditam em riqueza material, para quem o dinheiro não é nada, ter uma casa não é nada, um carro não é nada”, disse numa entrevista de 1989 ao jornal Callaloo. “Esse tipo de gente tende a ser minha amiga.”
Assistiu na primeira fila à conquista da independência e à descolonização de vários países africanos e teve até tempo de se dececionar com líderes profundamente corruptos saídos dos movimentos de libertação. Enquanto viveu em África, foi professora e jornalista, passou por dificuldades económicas e foi politicamente perseguida. Após a queda de Nkrumah, foi expulsa do Gana. Em “Vida sem Maquilhagem” retrata este período. “África nunca me considerou sua filha… uma prima estranha, na melhor das hipóteses”, comentou a Impedimenta. Esta experiência deu-lhe uma certeza: “a cor é um epifenómeno”. Bem ao estilo de Fanon, o seu “mestre em todos os aspetos”, sem o qual “não seria capaz de pensar”. “Preciso dele para entender o mundo”, assumia.
No início dos anos 70 volta a França. Doutora-se em Literatura Comparada com a dissertação “O estereótipo do negro na literatura africana”. Casa-se pela segunda vez, com o que seria o seu companheiro até ao final e tradutor de muitas das suas obras para inglês, Richard Philcox. Como escritora, foi um momento determinante. “Comecei [a escrever] aos 40 anos. Antes eu não conseguia, tinha quatro filhos e tinha que os criar sem marido. Richard deu-me a calma e equilíbrio para escrever”, comentou ao El País. Em 1976, publica o primeiro romance, “Hérémakhonon”, sobre uma mulher negra de Guadalupe que viaja por Paris e África, sem se encontrar em nenhum lado a não ser em si mesma. Apesar das semelhanças, garantiu uma e outra vez que não é um livro autobiográfico. Com “Segu”, em 1984, vendeu mais de 200 mil livros em França e despertou a atenção do mundo.
“Nem em francês, nem em crioulo, escrevo em Maryse Condé”
Já com o nome vincado nas letras francófonas, em 1986 regressa a Guadalupe. Os mais de 35 anos fora, numa errância entre Europa e África, trazem a casa uma Maryse bem diferente, com personalidade forte e convicções firmes. Provocadora e polémica, denuncia, satiriza e desafia os modelos dominantes – económicos, políticos, culturais, metropolitanos ou insulares. Na sua obra e em intervenções públicas questiona abertamente não só a miséria e o colonialismo, mas também monstros sagrados como Aimé Césaire e Léopold Senghor, ou movimentos como a Negritude, Crioulidade e Panafricanismo. Acusa-os de serem como o “racismo branco”, ao reduzir todas as pessoas negras a uma só identidade. Estilhaça também, sem rodeios, os essencialismos do “espelho africano onde se olhavam muitos intelectuais antilhanos”.
No mesmo tom, lança-se de peito aberto em numerosas discussões sobre a história, língua e literatura antilhanas. Dizia que não escrevia “nem em francês, nem em crioulo”, mas sim “em Maryse Condé” e punha a identidade em perspetiva. “Ser antilhano… finalmente eu não sei muito bem o que isso quer dizer. Um escritor deve ter uma identidade definida? Um escritor não poderia estar constantemente em busca de outros homens? O que pertence ao escritor não é somente a literatura, é dizer algo que não tem fronteiras?” “Notas sobre um regresso ao país natal”, 1987.
Inspira-se no “canibalismo literário” do brasileiro Oswald de Andrade – “Uma pessoa colonizada nunca pode estar inteiramente livre do país colonizador (…) comemos o que achamos melhor dos outros e tentamos integrá-lo”. Numa obra vastíssima, inclui um sem fim de referências cruzadas que vão de Guadalupe ao Mali, passando por França, África Ocidental e outras geografias supostamente desencaixadas. Para além de “Segu”, o hit primordial, e “A Vida sem Maquilhagem”, destaca-se com “Eu, Tituba, a Bruxa Negra de Salem”, “Coração que ri e que chora”, “À Espera da Subida das Águas”, “A desejada”, entre dezenas mais de títulos.
O tempo confirmou-a como uma escritora poderosa, escreve a editora María Yaksic e estudiosa da obra da autora. “A literatura de Maryse Condé pode ser lida como uma contra-história singular e poderosa. Primeiro, da forma como inscreveu a literatura caribenha e antilhana-francófona no espaço editorial da literatura francesa. Segundo, porque conseguiu desenvolver um projeto literário único e de longo prazo, sempre contra a maré e a partir do seu lugar como escritora. A partir daí, desmantelou heróis e heroínas”.
Por outro lado, continua, Maryse Condé representa “uma torrente de movimento e mudança”. “Com muito talento e humor, tornou-se uma espécie de ponto de fuga, uma criadora única de mundos possíveis: a partir das suas personagens e protagonistas escreveu romances em que se ria do dogmatismo identitário e político, dos estereótipos, sem deixar de se pensar como uma escritora pró-independência”.
Contracorrente, esta força bruta partiu pedra. Maryse Condé foi duas vezes selecionada para o International Booker Prize (a última em 2023 pelo seu livro de despedida, “O Evangelho Segundo o Novo Mundo”) e em 2018 recebeu o Prémio da Nova Academia, criado por figuras da cultura sueca como substituto temporário do Prémio Nobel da Literatura, cancelado naquele ano por um escândalo sexual. Foi professora das universidades norte-americanas de Columbia, onde fundou o Centro de Estudos Franceses e Francófonos, e de Virgina, Maryland e Califórnia. Foi também a primeira presidente do Comité Nacional para a Memória da Escravatura, criado em 2004, em França.
A esse país regressou há alguns anos. Padecia do que chamava “síndrome de Boucolon”, nome de solteira. Uma doença degenerativa que levou vários familiares e a deixou cega e sem caminhar. Depois de deambular entre tantos mundos, lutas e identidades, nas montanhas francesas encontrou “um certo descanso”, assumiu ao El Pais. De repente, tudo se tornou mais claro e simples. “Amar os outros parece-me ser a forma, talvez a única, de causar impacto”, escreveu já quase no fim.
A 15 de Abril, o presidente Emmanuel Macron prestar-lhe-á uma homenagem na Biblioteca Nacional de França. “Há cinquenta anos que [em Guadalupe] tentamos tornar-nos independentes, mas não conseguimos”, ecoa a sua voz.