A fuga dos alemães
Desde Junho de 2021, uma inusitada onda de alemães assentou-se no sul do Paraguai. São milhares de imigrantes. Fogem dos impostos, das vacinas anti-Covid e dos refugiados muçulmanos na Alemanha que, asseguram, são violentos e desvirtuaram a matriz germânica do país. A história mete ao barulho seitas religiosas, falcatruas, corrupção e uma extrema direita europeia com tentáculos no outro lado do oceano.
“Bem-vindo à Alemanha”. O letreiro escrito à mão na porta de uma comunidade 400 km a sul de Assunção, a capital paraguaia, desloca-nos. Com grande tradição de imigração da Alemanha, a zona de Colónias Unidas viu chegar, no último ano, pelo menos duas mil pessoas vindas do centro da Europa. Juntaram-se aos 45 mil alemães que vivem nos municípios de Hohenau, Obligado e Bella Vista, junto ao rio Paraná.
Há mais de 100 anos que os alemães andam por aqui. Atraídos pelas terras férteis, primeiro; em escape desesperado da violência da Segunda Guerra Mundial, depois; e já terminado o conflito, foragidos da justiça. Foram vários os nazis que se refugiaram neste país sul-americano. Destaque para Josef Mengele, médico nazi que realizou experiências inenarráveis com humanos em Auschwitz. Nas comunidades alemãs de Colónias Unidas, estes fugitivos fizeram escola, conta o jornal El País na reportagem “Extremistas alemães migram para o Paraguai em busca do paraíso ideal: sem impostos, sem vacinas e sem muçulmanos”. Um dos pilotos da aviação de Hitler, Hans-Ulrich Rudel, “viveu aqui como herói, reconvertido em traficante de armas, ativista neonazi e assessor do ditador mais longevo da América do Sul, o paraguaio Alfredo Stroessner, filho de um imigrante alemão”.
Antes e depois da Segunda Guerra Mundial, a imigração alemã foi um fluxo contínuo, sem grandes flutuações. Até que a pandemia chegou e tudo mudou. A partir de Junho de 2021, os alemães começaram a chegar em bátega, são já a terceira maior comunidade estrangeira no país. Entre 2020 para 2021, o número de cartões de residência atribuídos a estes imigrantes triplicou e este ano a tendência vai pelo mesmo caminho, segundo as autoridades.
Stephan Hausen é um dos recém-chegados. Em entrevista à BBC Mundo, na reportagem “A nova onda de migrantes alemães no Paraguai que gera entusiamo e receio”, conta como a pandemia acelerou a saída da sua família da Alemanha. “No início, nós apoiámos as medidas anti-Covid, mas as restrições contínuas deixaram-nos perplexos. Foi então que nos perguntámos até onde nos levariam estes confinamentos. Tínhamos decidido ir embora muito antes, mas esta foi a gota que transbordou o copo”.
Sentada ao lado do marido, com cara fechada, Theresa Hausen desabafa como se sente sufocada na Alemanha. “Há muito a dizer [sobre os motivos da saída], desde a educação nas escolas, o que os nossos filhos aprendem, até ao sistema de saúde. O problema é que [as autoridades} dizem-nos explicitamente o que fazer! Durante anos, a política alemã tem seguido numa só direção, e o governo só nos deixa pensar como eles querem.”
Natural de Estugarda, o arquiteto Michael Swartz, tentou pintar à BBC Mundo um quadro mais bucólico e relaxado. “Muita gente fala da vacinação, mas isso não é motivo para mim. Eu queria ter um céu azul, sem tantos dias nublados e chuvosos e melhor clima para fazer mais coisas no exterior.” Mais à frente na conversa, lá assume que “os impostos são um grande problema na Alemanha, os maiores impostos no mundo, segundo muitos” e que “esse dinheiro não se usa para as pessoas que vivem há muito tempo na Alemanha.” E admite que não está vacinado, tal como a maior parte dos conterrâneos que por ali andam e que se declaram abertamente anti-vacinas.
“Muitos [alemães} não estão de acordo com a política da pandemia na Alemanha ou Europa e pensam que o Paraguai é mais fácil, sem tantas restrições”, descreve o cônsul da Alemanha em Assunção, no artigo “Alemães no Paraguai: guia básico para entender o interesse do nosso país”, citado na reportagem do El Pais. O jornal expõe a contradição: “Faltam vacinas para os paraguaios, ao mesmo tempo que chegam imigrantes que não as querem, mas que nos seus países as têm de sobra”. No Paraguai, apenas 46% da população conta com as duas doses de vacina anti-Covid.
A chegada de estrangeiros totalmente desprotegidos é um problema daquelas para as autoridades, como admite à BBC Mundo o intendente de Hohenau, Enrique Hahn: “Muitas vidas se perderam durante a pandemia. Gostaríamos de conviver com a comunidade [alemã], trabalhar com eles, sabemos que são pessoas com uma visão mais avançada, que podem contribuir muito, mas eles têm que saber que estão num lugar onde há leis e que têm de cumpri-las. Porque muitas vezes a imagem que passa é que o Paraguai é um país onde a lei se pode violar facilmente”.
Infelizmente, mais que uma mera perceção, essa parece ser uma realidade nas fronteiras porosas do país sul-americano. Segundo organizações e funcionários do governo, muitos dos alemães que têm chegado ultimamente entram ilegalmente pelo limites do Paraguai com outros países, sobretudo a Bolívia. Pelo meio da viagem, soltam umas notas a funcionários corruptos que os deixam entrar sem o certificado de vacinação obrigatório para estrangeiros desde janeiro deste ano.
As fricções começam a ser inevitáveis. Noemi Jara, funcionária da Secretaria de Turismo de Hohenau questiona-se na reportagem da BBC Mundo: “Como cidadãos, temos medo de estar em contacto com esse grupo de não vacinados, e é preciso obrigá-los a cumprir as medidas. Porquê dar esse privilégio a pessoas que não residem no Paraguai, quando para os paraguaios essa é uma exigência?”
Uma das respostas pode estar no poder económico dos alemães, neste que é um dos países mais desiguais da América Latina. Como reconhece a própria Noemi Jara à BBC Mundo, a chegada dos imigrantes europeus à região, “em plena pandemia”, gerou “um movimento económico bastante interessante, considerando que os residentes em Hohenau puderam vender os seus terrenos e assim sobreviver à pandemia”.
Como seria de se esperar, esta procura desenfreada por terras na região está a criar uma borbulha no preço dos terrenos na zona, que se rebentar, pode complicar bastante a vida dos habitantes da região, alertam organizações de Colónias Unidas.
Islamofobia no cone sul
Em agosto do ano passado, Angelo enviou os móveis da casa num contentor de barco para o Paraguai. Esposa, filho e sogra foram atrás, cansados da “mentalidade quadrada” do seu país, conta o imigrante à televisão alemã Y-Kollktiv, citado por El País. Mas a objeção geométrica sobre a sua pátria foi um peso menor na decisão de partir. Há vários anos que vivia no terror de ser vítima de um dos milhares de refugiados do Afeganistão, Iraque e Síria que foram acolhidos na Alemanha. Em 2018, um refugiado com problemas psiquiátricos assassinou uma pessoa na pequena cidade dos Alpes onde Angelo vivia. Desde então, perdeu a paz interior.
A pandemia acelerou os planos de emigrar. Viajou para o Paraguai, animado por outros imigrantes que já lá estavam e que lhe acenaram com a segurança sonhada, omitindo que o Paraguai tem uma taxa de homicídios 24 vezes maior do que a da cidade alpina onde Angelo vivia, como nota o El Pais. O imigrante alemão está contente. Acredita que em Colónias Unidas poderá encontrar “uma vida como a de antes”.
Antes do vírus, claro, mas sobretudo antes da chegada de milhares de refugiados, muitos deles muçulmanos, à Alemanha. A paranoia de Angelo é a regra, não a exceção. Os “migrantes anti-migrantes”, como lhe chama o diário espanhol, abundam nas comunidades alemãs no sul do Paraguai. Por ali, a islamofobia é lei.
O casal Hausen, entrevistado pela BBC Mundo, confirma-o.
- Não é possível viver em paz na Alemanha, se tantos muçulmanos entram no país – assegura Theresa.
- Qual é a diferença entre muçulmanos a emigrar para a Alemanha e vocês, imigrantes europeus, a chegar ao Paraguai? - pergunta-lhes a jornalista Mar Pichel.
Stephan responde.
- Há uma enorme diferença: as diferentes culturas. O Paraguai é um país muito cristão, e nós vimos de uma cultura cristã. Conhecemos muita gente aqui e estamos na mesma linha. Com o Islão a chegar sem controlo à Alemanha, há duas culturas incompatíveis que se confrontam, frente-a-frente”.
Hana, nome fictício de uma imigrante alemã que vive há quatro anos no Paraguai, reforça a ideia.
- A nova onda de alemães chega não só pelas vacinas, mas porque quer proteger os seus filhos. Na Alemanha, as mulheres são violadas, assediadas nas ruas. Uma mulher alemã não vale nada para eles [muçulmanos], porque não usam hijab.
- Tem alguma prova de que isso esteja a acontecer realmente nas ruas da Alemanha? - pergunta a repórter da BBC Mundo.
- Não, mas isso é o que me dizem as pessoas
- E o que diria a quem acha que esse é um pensamento racista?
- Não importa que sejas negro, branco, vermelho… que sejas rico ou pobre, é igual… o único que importa é que o coração respeite qualquer cultura.
Uma velha história
Em março, um incidente no aeroporto de Assunção gerou uma discussão nacional sobre a nova vaga de imigrantes europeus. Dezassete pessoas alemãs da mesma família (dez menores) aterraram na capital paraguaia e foram retidas por não estarem vacinadas contra a COVID-19. Doze horas mais tarde foram expulsas, por não cumprirem com as regras de entrada no país. Segundo o jornal El País, esta família pretendia comprar um terreno no Paraguai, repetindo um padrão conhecido nestes rumos.
Na longa reportagem publicada há poucas semanas, o diário espanhol descreve como redes de imigrantes alemães no Paraguai usam o Facebook e Telegram para cativar novos recrutas, acenando-lhes com a promessa de um paraíso “sem impostos, sem vacinas e sem muçulmanos”. Um modus operandi instituído muito antes da pandemia.
Witali Fuchs é um desses casos simbólicos desta nova vaga alemã no país. Chegou a Hohenau em 2016 e aí fundou uma igreja. “Procurei o Paraguai no mapa e Deus falou e disse: a hora chegará e vocês estarão aí. Tive a revelação de que chegariam estes tempos”, exclamou Fuchs há um par de meses ao canal Deustche Welle.
Também por “indicação divina” chegaram às Colónias Unidas do sul Sylvia e Erwin Annau, um casal austríaco profundamente anti-vacinas e islamofóbico. Aí fundaram “Paraíso Verde”. A comunidade de 16 quilómetros quadrados devidamente cercados e protegidos por guardas com armas automáticas alberga centenas de colonos estrangeiros que morderam o isco, descreve El País. “Annau convida as pessoas a vir para o Paraguai dizendo que há menos burocracia, menos impostos, menos vacinas e menos muçulmanos (no Paraguai, na verdade, há milhares de muçulmanos que convivem em harmonia com o resto dos habitantes) As mensagens islamofóbicas dos fundadores da comunidade repetem-se em todos os seus canais.” Por entre a propaganda e convites com sorrisos amplos, vendem hectares no paraíso aos alemães em fuga.
No meio do campo paraguaio, o Paraíso Verde tem como mote “viver em coexistência de pessoas, com base na lei natural e na razão e desenvolvimento espiritual”. Neste lugar, pratica-se a “Nova Medicina Germânica”, de Ryke Geerd Hamer, que considerava a medicina convencional uma conspiração judia para dizimar os não judeus. Tanta paz interior, sublinha a investigação de El Pais, parece incólume à acusação de fraude contra Erwin Annau nos Estados Unidos, por publicidade enganosa. O guru alemão teve de pagar 100 mil dólares para não parar na prisão.
Outras nuvens negras pairam sobre o Éden alemão. São várias as denúncias contra Paraíso Verde e a empresa Reljuv, fundada pelos Annau para gerir a comunidade. As queixas vão de estafa a abuso de confiança, e até a profundo dano ambiental. Ultimamente, vários dissidentes do Paraíso Verde têm também chamado a atenção para a venda de terras na comunidade a preços quatro, cinco vezes maiores do valor real. E sem escrituras para os compradores. Conhecedores da dinâmica deste lugar, os denunciantes confirmam que quem não alinha na ideologia extremista, antissemita, islamofóbica e racista do casal Annau, rapidamente é expulso do Paraíso Verde.
Os paraguaios que ali trabalham não se atrevem a falar. Têm medo de dizer sequer que foram vacinados, não só contra a COVID-19, senão contra doenças comuns como a gripe. Habitantes dos municípios das Colónias Unidas alegam que os alemães criticam continuamente o Paraguai por não ser “tão desenvolvido” como a Alemanha, num jogo descarado de arrogância e humilhação.