Ñucanchick allpa: Mamã Dulu, terra e educação
Os indígenas do Equador voltaram a tomar as ruas de Quito. Foi em finais de junho. Nesta nova onda de protestos, reiteraram uma herança de décadas que faz deles um grupo decisivo na política equatoriana. Na génese desta força, uma mão cheia de líderes indígenas que, no início do século XX, enfrentaram o poder por terra e educação. Dolores Cacuango, um desses furacões rebeldes, ainda hoje é timão orientador.
No último 30 de junho, o governo do Equador e a poderosa Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE) chegaram a um acordo para deter a nova onda de protestos das cinco mil organizações comunitárias que conformam a organização. Pela enésima vez nas últimas décadas, milhares de camponeses e indígenas tomaram Quito. Saúde, educação, apoio económico aos mais pobres e o fim da depredação ambiental por mineiras e petrolíferas, exigiam. Não foram bem recebidos. Nos confrontos entre autoridades e manifestantes, seis pessoas morreram, outras 500 ficaram feridas, em ambos lados da barricada. Depois de duas semanas, um acordo com promessas de apoio social e económico terminou as manifestações contra o governo de Guillermo Lasso.
O turbilhão que repetidamente salta das aldeias indígenas para reivindicar direitos esquecidos século após século é aviso sério à navegação do país. A CONAIE congrega movimentos cujas protestos levaram, direta ou indiretamente, à deposição de três presidentes do país: Abdalá Bucaram, em 1996; Jamil Mahuad, em 2000; e Lucio Gutiérrez, em 2005. Em 2019, a chegada iminente de milhares de indígenas a Quito provocou a fuga às pressas do então presidente, Lenín Moreno, para Guayaquil, no Pacífico equatoriano, carregando às costas toda a sede de um governo em pânico.
A capacidade de mobilização da CONAIE equilibra a balança do poder no país, dizem os analistas, e faz dos movimentos indígenas um ator político de peso. Mas como em tudo, nem sempre foi assim. O protagonismo atual foi arrancado a ferros, sobretudo a partir dos anos 30 do século passado, por uma mão cheia de camponeses explorados nas fazendas do norte do país. Destas vozes que organizaram politicamente os indígenas equatorianos e os puseram no mapa político, Dolores Cacuango é uma das mais reconhecidas. Tal como “Mamã Dulu”, como lhe chamavam, os movimentos atuais sabem que, para serem tidos em conta, é preciso resistir e marchar nas ruas de Quito. Cara-a-cara com o poder.
“A nossa terra!”
“Nós, os índios, precisamos de terra, casa e comida. E precisamos de respeito. Respeito como índios. Somos pobres e explorados, sim, mas antes de nada somos índios. Temos uma língua, história e uma nação índia. Temos que recuperar a terra e a força índia. Ñucanchick allpa!”.
“Ñucanchick allpa!”, “a nossa terra!”, em quéchua, demandou Dolores Cacuango em Cali, Colômbia, no Congresso da Confederação de Trabalhadores da América Latina. Por essa altura, 1942, já a lutadora social era um reconhecido braço forte do crescente movimento indígena no Equador.
A história de Mamã Dulú começou a 26 de outubro de 1881, em San Pablo Urcu, na comunidade de Cayambe, norte andino do Equador. A família era camponesa e pobre. Trabalhava num latifúndio sem salário. Recebia, em troca, um pedacito de terra para consumo próprio.
Sem meios de subsistência, sem falar espanhol e sem estudos, aos 15 anos Dolores Cacuango viaja para Quito em busca de trabalho. Como tantas mulheres indígenas do país, trabalha como empregada doméstica. Numa das casas, uma biblioteca enorme chama-lhe a atenção. Dolores sabia que o quéchua, única língua que falava, não era suficiente para melhorar as condições de vida. Aproveita então livro por livro para aprender a ler e escrever espanhol, de forma autodidata.
Por essa altura, Quito era uma cidade especialmente agreste para os indígenas. A discriminação era lei. Esta humilhação constante e corrosiva foi formando a consciência política de Dolores e incutindo essa noção de que havia que afirmar os direitos e a dignidade do seu povo. Os tempos na capital traçaram-lhe o destino. Poucos anos depois, regressou à sua aldeia em Cayambe com a determinação de lutar contra o racismo, combater a exploração de mão-de-obra indígena e de exigir o direito dos mais pobres à terra, educação e à identidade cultural própria.
O mendigo e a sombra clandestina
Juan Albamocho foi, como Dolores, um dos pioneiros da luta indígena no Equador e um dos que mais influenciou o caminho de Mamã Dulu. As crónicas contam como Almabocho se disfarçava de mendigo e pedia esmola à porta dos escritórios de advogados em Quito, para ouvir os detalhes das novas leis que protegiam, de alguma forma e pela primeira vez, os povos indígenas. Com informação valiosa na mão, correu para Cayambe, gritando que “afinal sim, havia leis para os índios”.
A novidade espicaçou ainda mais Dolores Cacuango, já politizada e voz ativa na aldeia. O primeiro grande confronto com os terratenentes deu-se em 1926, destacando-se na defesa de terras comunitárias de Cayambe, a ponto de serem vendidas a um latifundiário. Os discursos de Dolores em espanhol e quéchua eram ferozes e contundentes, contam. De forma direta, exigia educação na língua materna para os indígenas e o respeito pelos direitos dos trabalhadores e das mulheres (ainda hoje dizem que foi a percursora do feminismo no Equador). “Queremos que as indígenas saibam a quem estão a dar à luz para que nunca mais sejam violadas pelo seu chefe diabo, para que não nasçam mais crianças sem pai e sejam crianças despreciadas”, cita o jornal El País numa reportagem sobre a líder.
As próximas décadas seriam intensas. Terra e educação eram o seu estandarte. A justiça, a sua força. Participou em greves e levantamentos indígenas em Cayambe e em aldeias próximas contra o sistema de latifúndios e a exploração da mão-de-obra camponesa. Formou sindicatos para organizar os trabalhadores e dar força às reivindicações. Chegou até a aprender de cor a Lei de Trabalho para poder replicar e corrigir os advogados dos terratenentes, diz o diário espanhol.
Em 1944, funda com Trânsito Amaguaña, outra mulher ímpar do movimento indígena de então, e com o apoio do Partido Comunista, a Federação Indígena Equatoriana. Foi a primeira organização do género no Equador. Com os companheiros, marchou inúmeras vezes em Quito, iniciando a dinâmica que até hoje pauta a intervenção dos movimentos comunitários do país. Ao mesmo tempo, viajava de comunidade em comunidade, formando líderes comunitários. “Louca Dolores”, chamavam-lhe na capital.
Em 1945, decidiu fintar o Estado e apostar na educação que este lhe negava. Criou clandestinamente a primeira escola indígena com ensino em quéchua e espanhol, replicando o mesmo modelo em diferentes partes da serrania nos seguintes anos. Sem reconhecimento oficial, este sistema prosperou durante duas décadas, até à chegada da ditadura ao Equador. Em 1963, o regime de Ramón Castro Jimón proibiu o ensino do quéchua. Fechou as escolas indígenas à força e começou uma perseguição feroz a Dolores Cacuango e a outros líderes comunitários. Queimaram-lhe a casa, obrigando-a a fugir. Na clandestinidade, e procurada pela polícia política, movia-se nas sombras. Na calada da noite, armava a resistência em reuniões com os movimentos sociais.
Pouco a pouco, a força de Dolores Cacuango, Trânsito Amaguaña e de tantas outras figuras míticas do movimento indígena da época começaram a dobrar a ditadura. Face às reivindicações do campo, em 1964 o regime aprovou uma tímida reforma agrária. Não era a ideal, mas era um princípio, considerava Dolores. Desde Cayambe, liderou uma marcha com mais de 10 mil indígenas até Quito para dizer “estamos aqui”. Numa das intervenções públicas, deu um discurso que ainda hoje ecoa no imaginário de muitos equatorianos. “Somos como a erva da montanha que volta a crescer depois de a cortarem e como erva da montanha cobriremos o mundo”. Durante esse período, dá a conhecer aos povos indígenas a nova reforma agrária e o seu direito à terra. Cria também cooperativas que tenta unir numa frente comum.
A herança
Em 1969, o realizador sueco Rolf Blomberg entrevistou Dolores Cacuango na sua comunidade em Cayambe. A velha senhora vivia então num casebre que construiu num pequeno terreno que lhe tocou depois da reforma agrária, e onde continuou a sua vida como camponesa. Doente e sem forças, já não tinha capacidade para continuar com as suas viagens pelas aldeias e com as exaustivas campanhas de formação e consciencialização. A mente, no entanto, continuava alerta e bem desperta. No vídeo, recorda com eloquência as suas lutas sociais. E pessoais. Também aqui a vida não foi nada fácil. Dos nove filhos, apenas um sobreviveu. Carregou essa dor até ao fim, como reconhecia.
Dois anos depois da entrevista a Blomberg, Dolores falece na sua aldeia. 23 de abril de 1971. 89 anos. O funeral percorreu as ruas da comunidade e uma onda de choque varreu o movimento indígena que já caminhava com força própria por um trilho que o levou ao que é hoje.
O tempo daria razão a Dolores. Em 1989, dezoito anos depois da sua morte, o Ministério de Educação do Equador reverteu a eliminação das escolas bilingues de Mamã Dulu. Tomou em mãos o modelo que a líder social criara entre 1945 e 1963 e criou a Direção de Educação Indígena Bilingue Intercultural. Só em 1998 o país reconheceu de forma oficial o direito das nacionalidades indígenas do Equador a um sistema de educação intercultural em quéchua e espanhol.
Hoje, Dolores Cacuango é uma referência para a esquerda e para as feministas do país. A primeira Escola de Mulheres Líderes no Equador ostenta o seu nome. Mas é nos movimentos indígenas que ela permanece especialmente viva. A cada marcha sobre Quito, resgatam a sua memória e nome. Transformada e reinventada em novas lutas, através de outras vozes Mamã Dulu continua a gritar e a ocupar as avenidas de Quito, desafiando o poder sem planos de retirada.