Peru: revolta e poesia
Desde o primeiro dia de governo, em Julho de 2021, Pedro Castillo não teve paz. O sindicalista, professor rural e camponês era um presidente improvável. Impensável, mais que nada, para uma Lima conservadora, branca e centralista, que assistia à chegada de um ilustre desconhecido vindo de Chota, uma das zonas mais pobres do país, e mais à esquerda do que o desejável.
Desde 2021, três vezes a oposição tentou destitui-lo do poder. As acusações foram subindo de tom: corrupção, nepotismo e incapacidade moral permanente para governar. “Comparado com os anteriores seis presidentes, Castillo foi muito mais submetido que os outros”, nota o Centro Estratégico Latino-americano de Geopolítica (CELAG).
Os seis processos ainda em marcha por alegada corrupção em concursos públicos e obstrução de justiça não ajudaram. Muito menos as sucessivas crises de governo. Em 17 meses, uma dança de cadeiras sem precedentes, mesmo no volúvel Peru, derivou em cinco gabinetes e na rotação de 80 ministros, vários deles afetados por escândalos de corrupção. A instabilidade e a falta de resultados esperados atiraram os níveis de desaprovação do ex-presidente para 70%, por altura da sua destituição.
Castillo sempre negou ser um corrupto (acusações que se estendiam também à primeira-dama) e reafirmava que tinha, sim, uma visão para o Peru. Justificava as incriminações e a dificuldade em governar com o “ódio” que as elites económicas e políticas nutririam por ele, e que obstaculizavam as suas iniciativas como presidente. “Não é possível que um camponês governe o país”, disse no último discurso que deu no Congresso.
“Um pouco mais de calma, camarada…”
Durante 17 meses, o presidente camponês resistiu aos embates, mas tinha a cabeça a prémio. A 7 de dezembro de 2022, horas antes de enfrentar no Congresso o terceiro processo de destituição por alegada corrupção, apareceu na televisão peruana de surpresa. Com mãos trémulas, instituía o estado de exceção, diluía o Congresso e dava o tiro de partida para novas eleições e para uma revisão da Constituição.
Apagadas as câmaras, meteu-se num carro a caminho da Embaixada do México, onde pensava pedir asilo político. Foram os seus próprios seguranças quem o detiveram. Já então as Forças Armadas e a Polícia se tinham oposto ao anúncio. Altos funcionários do governo demitiam-se um atrás do outro, criticando duramente o que diziam ser uma tentativa desesperada de Castillo de se manter no poder ante uma quase certa destituição e de perpetrar, assim, um “ataque à democracia”. O próprio advogado do então presidente soube do sucedido pela televisão. Incrédulo, em declarações à imprensa pôs em causa as reais intenções de quem aconselharam o líder peruano a tomar esta medida aproveitando-se, “talvez” da sua “inexperiência política”.
Nesse mesmo dia, Castillo foi formalmente destituído pelo Congresso, já não por corrupção (o que tinha motivado a terceira tentativa de o tirar do poder), mas sim por rebelião, o crime do qual era acusado. A alteração de última hora dos motivos para o correr do poder, sem lhe dar espaço para se defender (já estava atrás das grades) foi altamente criticado por várias instâncias. A CELAG relembra que a Constituição do Peru outorga ao presidente o direito de dissolução do Congresso em circunstâncias que não fogem às que vivia Castillo.
Mas o guião parecia estar escrito e de nada valeram os apelos vindos de fora, como o dos governos do México, Argentina, Bolívia e Colômbia. Num comunicado conjunto, os líderes dos quatro países mostravam preocupação pela detenção de Castillo, pediam que se respeitasse a vontade popular que o elegeu como presidente e exigiam que se lhe garantissem os direitos humanos e devido processo.
Já então, a vice-presidente do governo deposto, Dina Boluarte, assumira interinamente a presidência do Peru, após demarcar-se da posição do anterior chefe. Castillo estava sozinho.
“Um pouco mais de calma, camarada…”, poeta peruano César Vallejo.
“Um pouco mais de calma, camarada;
um muito imenso, setentrional, completo,
feroz, de calma pequena,
ao serviço menor de cada triunfo
e na audaz servidão do fracasso.
Sobra-te embriaguez, e não há
tanta loucura na razão, como este
teu raciocínio muscular, e não há
mais racional erro que a tua experiência.
mas, falando mais claramente
e pensando-o em ouro, és aço,
a condição para que não sejas
tonto e recuses
entusiasmar-te tanto pela morte
e pela vida, apenas com a tua tumba.
Necessário é que saibas
conter o teu volume sem correr, sem afligir-te,
a tua realidade molecular inteira
e mais além, a marcha dos teus vivas
e mais aquém, os teus sais lendários.
És de aço, como dizem,
desde que não tremas e não
rebentes, compadre
do meu cálculo, enfático afilhado
dos meus sais luminosos!
Anda, apenas: resolve,
considera a tua crise, soma, segue,
corta-a, baixa-a, puxa-a,
o destino, as energias íntimas, os catorze
versículos do pão: quantos diplomas
e poderes na borda confiável de teu arranque!
Quanto detalhe em síntese, contigo!
Quanta pressão idêntica, a teus pés!
Quanto rigor e quanto patrocínio!
É idiota
esse método de padecimento,
essa luz modulada e virulenta,
se apenas com a calma fazes sinais
sérios, característicos, fatais.
Vejamos, homem:
conta-me o que me passa,
que eu, mesmo que grite, estou sempre às tuas ordens.”
“O jantar miserável”
A detenção de Carrilo nesse 7 de Dezembro detonou uma bomba-relógio na serra sul do Peru. Nas regiões de Arequipa, Apurímac, Ayacucho, Cuzco e Puno, populações quéchuas e humildes, maioritariamente agrícolas, exigiam (e continuam a exigir) a gritos a demissão da agora presidente Boluarte, a dissolução do Congresso, eleições imediatas, também uma nova Constituição e a libertação de Pedro Castillo que, sentem, os representa.
Por todo o país há estradas bloqueadas, edifícios públicos e privados destruídos, aeroportos fechados e desabastecimento de víveres. Destino turístico de excelência, o Peru assiste à debandada de visitantes, muitos deles encurralados, e o cancelamento das reservas que lhe alimenta uma parte importante da economia. Machu Picchu, a joia da coroa do país, fechou hás dias as portas. Mais simbólico, impossível.
Desde o início das manifestações, a violência policial e do Estado tem sido brutal. 54 manifestantes foram mortos até hoje. Instituições como a Amnistia Internacional alertam para o uso desproporcional, excessivo e criminoso de força do Estado, que ainda assim não consegue deter os protestos em todo o país. A 19 deste mês, os manifestantes chegaram finalmente em força à capital do país, durante a chamada “tomada de Lima”.
Entretanto, a 21 deste mês, a indignação pela atuação das autoridades subiu de tom, quando 400 polícias e forças especiais montadas em tanques de guerra invadiram a Universidade Nacional Mayor de San Marcos, em Lima. Com violência, detiveram 193 estudantes ali entrincheirados há três dias e que davam refúgio a estudantes vindos da serra sul. Ante as imagens e relatos, o Ministério Público peruano abriu uma investigação contra o Ministro do Interior por alegado uso excessivo de força e incumprimento dos procedimentos legais durante as detenções.
Mais além de Castillo, juntos, em todo o Peru, indígenas, camponeses, sindicatos e estudantes insurgem-se contra o que dizem ser um sistema elitista que insiste em controlar um país onde 26% da população vive na pobreza, segundo dados da consultora política GFP (no meio rural chega a 40%). Um Peru onde metade da população não tem acesso a uma nutrição suficiente, o que o converte no país da América do Sul com maior insegurança alimentar, segundo as Nações Unidas.
“O jantar miserável”, César Vallejo.
“Até quando estaremos à espera do que
não nos devem… e em que recanto esticaremos
o nosso pobre joelho para sempre! Até quando
a cruz que nos alenta deterá os seus remos.
Até quando a Dúvida nos brindará honras
por termos padecido…
Já nos sentámos
muito à mesa, com a amargura de uma criança
que à meia-noite chora de fome, desvelado…
E quando nos veremos os outros, na borda
de uma manhã eterna, todos com o pequeno-almoço tomado!
Até quando este vale de lágrimas onde
eu nunca pedi que me trouxessem,
de cotovelos
todo banhado em choro, repito cabisbaixo.
E vencido. Até quando durará o jantar.
Há alguém que bebeu muito e goza connosco
e se aproxima e afasta, como uma colher negra
de amarga essência humana, a tumba…
E menos sabe
essa escuridão, até quando o jantar durará!”
“Então nas águas de Conchán”
Os defensores da ordem instaurada há dois meses insistem que esta é essencial para reiniciar o país (até que ponto não dizem) e garantem que isso é bom para todos. A presidente Dina Boluarte já avisou que vai ficar no poder até 2024 (antes insistia que não arredava pé até 2026). Repete uma e outra vez que, na origem da violência, estão “grupos radicais que têm uma agenda política e económica baseada no narcotráfico, em minas ilegais e no contrabando” e acusa o grupo paramilitar boliviano “Los Ponchos Rojos” de atiçar o fogo no sul do país.
Boluarte sugere ainda que alguns dos manifestantes foram assassinados por civis, não por militares, mas pelo meio vai pedindo desculpas pelos mortos e pelos excessos policiais. Com determinação, diz ser apenas “uma mulher provinciana, vítima do ódio e da vingança, que só quer trabalhar com as mãos limpas sem roubar ao Peru um sol [moeda peruana]”.
Muitos acreditam e aplaudem, veem em Castillo um corrupto ineficiente que se escuda atrás das suas origens humildes para se vitimizar e justificar todos os ataques e acusações. Mas o Peru está dividido e o presidente caído pressiona desde a sua cela, nem que seja simbolicamente, o poder de Boluarte. A nova mandatária acusa-o, até, de instigar os manifestantes e de promover a ingovernabilidade do país.
Entre fumo e sangue, o ex-presidente, cuja família se exilou no México, é uma sombra que se espalha em todas as direções. Pestilência, segundo Boluarte e companhia; esperança adiada, segundo os que pouco têm.
“Então nas águas de Conchán”, de Antonio Cisneros.
“Então nas águas de Conchán ancorou uma grande baleia.
Era azul quando o céu azulava e negra como a neblina. E era azul.
Há quem a tenha visto vir desde o Norte (onde dizem que há muitas).
Há quem a viu vir do Sul (onde gela e habitam os leões).
Outros dizem que, sozinha, brotou como os fungos ou as folhas da arruda.
Quem o repete são as gentes de Villa El Salvador, pobres entre os pobres.
Crescendo todos atrás das brancas colinas na areia: Gentes como areais no areal.
(Só sabem do mar quando está bravo e só o podem cheirar no vento.)
O vento que revolve o lombo azul da baleia morta. Ilhote de alumínio debaixo do sol.
A que veio do Norte e do Sul e sozinha brotou das correntes.
A grande baleia morta.
As autoridades temem pelas águas: A peste azul entre as praias de Conchán.
A grande baleia morta.
(As autoridades protegem a saúde do veraneante.)
Muito em breve, a baleia vai apodrecer como um figo maduro no verão.
A peste são, por assim dizer, 40 vacas apodrecendo no mar (ou 200 ovelhas ou 1000 cães).
As autoridades não sabem como fugir de tanta carne morta.
Os veraneantes resguardam-se da peste que começa nas medusas na areia molhada.
Nos areais de Villa El Salvador as gentes não repousam.
Sabido é pelos pobres dos pobres que atrás das colinas flutua uma ilha de carne ainda sem dono.
E chegado o crepúsculo – não do oceano, mas sim do areal - afiam-se as melhores facas de cozinha e o facalhão do mestre carniceiro.
Assim foram armados os poucos nadadores de Villa El Salvador.
E à meia-noite lutavam com os poços onde espumam as ondas.
A grande baleia flutuava, bela, ainda entre os tombos gelados.
Bela ainda.
Seja a sua carne destinada a 10.000 bocas.
Seja a sua pele teto de 100 moradas.
Seja o seu óleo luz para as noites e todas as frituras do verão.”
“Sou peruano e mal distingo alguns mistérios da ciência política”
A incerteza assoma-se agora no Peru. Mais uma vez e sem surpresas. Naquelas bandas, o sistema político é um carrossel há muito desgovernado. Desde 2006, o país teve seis presidentes, muitos deles, como Pedro Castillo, com pesadas acusações de corrupção aos ombros. Ninguém se safa aqui. Também o Congresso e os partidos políticos da situação ou oposição perderam há muito a credibilidade.
Entretanto, as mãos que, nas sombras, embalam o berço, continuam nessa penumbra que todos conhecem e à qual poucos ligavam, mas às quais se imputa agora a responsabilidade de mais de meia centena de mortes. Entre leituras e análises opostas, espera-se o que aí vem.
“Sou peruano e mal distingo alguns mistérios da ciência política”, Rodolfo de la Riva.
“Posso mencionar a pátria e manter a calma no fim do dia.
Conjugá-la com os verbos ser/ estar/ lutar.
Posso invocar o fogo.
Imaginar um gato a queimar-se.
Caminhar até ele e dizer-lhe que gosto muito dele.
*
Se não sabem, conto-lhes…
O destino do Peru decide-se no frio desde um quarto secreto no SIN [Serviço de Informação Nacional]
(tudo está a ser gravado, algum dia o verão).
E ali também espera este mesmo gato
Banhado em gasolina junto à sua família e à coleira.
Não pedem felicidades, só um pouco menos de dor.
*
Há outra opção.
Com uma adenda muito simples, os países podem ser objecto de direito.
Ficar uns minutos no ar e logo cair
E logo reconstruir-se como qualquer conceito orgânico.
Parece-me que a expectativa da queda é o mais importante. Até mais que quantidade de erros ou qualquer outra coisa.
A política, por exemplo, baseia-se neste cálculo.
*
Talvez se acabe a história de um país quando se perde a ambição.
*
Um dia cruzei-me com um senhor que me roubou tudo o que quis e depois iniciou uma carreira como presidente da república.
Eu também costumava simpatizar com ele.
Eu também lhe pedi, mais de uma vez, que deixasse em paz o gato.