Entrevista a Sumaila Jaló
“A imposição de governos inconstitucionais, os atropelos à Constituição e a perseguição de quem pensa diferente marcam o carácter autoritário e o viés ditatorial de Sissoco Embaló”
Num turbilhão que parece não ter fim, a Guiné-Bissau vive de novo uma instabilidade política com resolução difícil, que põe à prova um sistema político frágil. O país está sem Parlamento há mais de um ano e sem novas eleições legislativas à vista. Uma disputa sobre a data de posse do atual Presidente da República, Umaro Sissoco Embaló, em 2020, abre mais uma linha de fogo, com um impasse também na marcação das eleições presidenciais.
Numa conversa extensa, o académico e ativista guineense Sumaila Jaló ajuda a entender mais uma crise complexa, que adia novamente o futuro da Guiné-Bissau. Neste xadrez, Sissoco Embaló é peão, é rei e dita as regras. Os oponentes acusam-no de instaurar uma ditadura no país, perseguir os opositores, cooptar as instituições do país e de alinhar-se com militares envolvidos no tráfico internacional de droga.
“Sissoco Embaló começou a desenhar em 2020 um cenário de ilegalidade institucional e constitucional que instaurou o seu regime ditatorial na Guiné-Bissau”
Na segunda volta das eleições presidenciais de 2019/2020, Umaro Sissoco Embaló, apoiado pelo partido MADEM-G15, foi eleito Presidente da República (PR) da Guiné-Bissau. Os resultados foram imediatamente contestados pelo candidato derrotado, Domingos Simões Pereira, do PAIGC. Com o processo de impugnação em curso no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), Sissoco Embaló tomou posse na data prevista no calendário eleitoral, 27 de fevereiro de 2020. O contencioso no STJ terminaria apenas em setembro desse ano, a favor da eleição de Sissoco Embaló.
A Guiné-Bissau vive um novo momento de incerteza política centrado na figura do presidente, Sissoco Embaló. Como analisa o impasse na marcação das presidenciais?
O ponto central é a data real de tomada de posse de Sissoco Embaló como PR. Segundo a data estipulada por lei e pela Comissão Nacional de Eleições (CNE), o mandato começou a contar a partir de 27 de fevereiro de 2020, data em que tomou posse. Por isso, de acordo com a Constituição da República guineense, até novembro de 2024 deveria ter convocado novas eleições presidenciais. Mas numa interpretação a seu modo, que não se apoia em nenhuma base legal, Sissoco Embaló diz agora que a data real do início do seu mandato foi setembro de 2020, quando o STJ emitiu uma sentença sobre um contencioso eleitoral, que confirmou a sua vitória. Isso ainda lhe dá vários meses para marcar novas eleições legislativas e adiar as presidenciais para final deste ano. Este processo demonstra a forma de atuar de Sissoco Embaló ao longo dos últimos anos.
Como interpreta este diferendo?
Não há qualquer dúvida de que Sissoco Embaló está apenas a tentar ganhar tempo. Basicamente, para ele todo o período entre fevereiro e setembro de 2020, em que atuou efetivamente como PR, é para esquecer. Até mesmo quando destituiu o Executivo e nomeou um governo inconstitucional a 28 de fevereiro de 2020, apenas um dia depois da tomada de posse que ele agora diz ter sido “simbólica”. Por onde analisemos o caso, está cheio de irregularidades. O próprio contencioso eleitoral terminou após Sissoco Embaló, enquanto PR, pressionar o STJ para uma resolução a seu favor.
As dúvidas sobre a sua vitória eram legítimas?
Embora muito se diga que ele não ganhou as eleições, eu acredito que as tenha vencido. Apesar de tudo, o sistema eleitoral da Guiné-Bissau é muito transparente. E os partidos, principalmente os maiores, como o PAIGC, têm todas as condições de fiscalizar e escrutinar os atos eleitorais, a par de organizações da sociedade civil. Além disso, o PAIGC foi quem organizou as eleições, enquanto governo. Pelo que seria esta formação política a ter possibilidades de adulterar os resultados. E há, ainda, que considerar os apoios que Sissoco Embaló teve.
Foram determinantes?
Foram importantes. Sissoco Embaló tinha um capital político forte, que começou a construir desde os tempos de Nino Vieira, antes do conflito de 1998/1999. Quando foi nomeado primeiro-ministro, em 2016, pelo então PR José Mário Vaz, era um desconhecido para o comum dos guineenses, mas tinha influência nos círculos políticos. Este percurso deu-lhe o que necessitava para se tornar PR em 2020, com o apoio do MADEM-G15, o Movimento para Alternância Democrática. Entre os apoios que teve na segunda volta estão nomes de peso, como o próprio José Mário Vaz, do PAIGC, que foi o PR antecessor e o terceiro mais votado na primeira-volta. Ou Carlos Gomes Júnior, um dos mais queridos primeiros-ministros da Guiné-Bissau, que também concorreu a estas presidenciais. Para além do PRS, na altura o segundo maior partido da Guiné, e de Nuno Gomes Nabiam, o quarto mais votado na primeira volta. Com o poder na mão, Sissoco Embaló começou a desenhar um cenário de ilegalidade institucional e constitucional que permitiu a instauração de um regime ditatorial na Guiné-Bissau.
De que forma?
Sissoco Embaló mostrou ao que vinha apenas um dia depois de tomar posse “simbólica” como PR. Demitiu o governo legítimo do então primeiro-ministro Aristides Gomes, do PAIGC, e nomeou como novo chefe do Executivo, Nuno Gomes Nabiam – como recompensa pelo apoio na segunda volta das eleições. Substituiu um governo legal por um ilegal, porque à luz da Constituição da República guineense, um PR não pode nomear um primeiro-ministro que não seja legitimado em eleições legislativas. E mesmo num cenário de dissolução da Assembleia Nacional Popular, é o primeiro-ministro indicado pelo partido mais votado numas legislativas que deve continuar em gestão. Este não foi o caso. O pior é que esse governo imposto acabaria por ter apoio parlamentar, por cumplicidade de cinco deputados do PAIGC. E isso criou uma situação paradoxal: ao ter apoio na Assembleia Nacional Popular, que garantia a passagem de programas e projetos, um governo ilegal começou a ter margem de manobra para atuar com uma aparente legalidade, embora não o fosse de início.
Mesmo com esse apoio parlamentar, a Assembleia Nacional seria dissolvida em 2022.
Sim, isso ocorreu na sequência de debates acesos e de contestação, até de partidos que apoiavam Sissoco Embaló, como o MADEM-G15. Em causa estava a renovação do contrato de exploração de petróleo numa zona marítima dita conjunta com o Senegal. Qualquer acordo dessa natureza tinha de passar pelo Parlamento, o que não foi o caso. A Assembleia Nacional Popular votou a favor de uma resolução para revogar esse acordo, com o apoio do próprio partido do PR. Em resposta, em maio de 2022, Sissoco Embaló dissolveu a Assembleia, acusando os deputados de “converter a Assembleia Nacional Popular num espaço de guerrilha política, de conspiração”. Anunciou eleições para dezembro desse ano, que não se realizaram pela alegada falta de condições técnicas, e só em junho de 2023 fomos a votos. Isto, apesar da Constituição dizer claramente que as legislativas têm de ser realizadas num prazo de 90 dias após uma dissolução da Assembleia Nacional Popular. Na prática, estivemos um ano, entre 2022 e 2023, com um governo que não tinha apoio parlamentar.
O resultado dessas eleições de 2023 não foi favorável a Sissoco Embaló.
Exato, os partidos que o apoiavam foram fortemente derrotados. O PAIGC voltou a ganhar uma maioria absoluta, com 54 dos 102 assentos parlamentares. Foi uma derrota política para o PR.
Esse governo durou pouco mais de meio ano, com uma nova dissolução do Parlamento em dezembro de 2023, e a incerteza, até hoje, quanto à marcação das legislativas que reponham a Assembleia Nacional Popular. A derrota política dos aliados de Sissoco Embaló nas legislativas de 2023 foram o real motivo para este impasse?
Foi a base. Nessa altura, Sissoco Embaló entrou numa jogada política muito inteligente, apesar de tudo. Em finais de 2023, houve uma simulação caricata de uma tentativa de golpe de Estado, que levou à dissolução do Parlamento em dezembro desse ano. Uma vez mais contra a Constituição, que diz claramente que o PR não pode dissolver o Parlamento no período de 12 meses após as legislativas. O governo que está em funções desde então, absolutamente ilegítimo, logo ganhou o apoio do Partido de Renovação Social (PRS) e do Partido dos Trabalhadores Guineenses (PTG), antigos aliados do PAIGC, mas que viram aqui a oportunidade de ganhar poder. Pior ainda, figuras do próprio PAIGC – dirigentes, militantes com muita importância, até deputados – fazem parte deste governo inconstitucional imposto por Sissoco Embaló.
Também houve um período de tensão na Assembleia, com a substituição do Presidente do Parlamento.
Foi algo realmente grave. Sissoco Embaló impediu o acesso do Presidente do Parlamento à Assembleia Nacional Popular e impôs uma figura da sua conveniência, a então segunda vice-presidente do Parlamento, Adja Satú Camará. Mais uma ação absolutamente violatória do quadro legal guineense, que determina que o Presidente do Parlamento é escolhido uma vez por legislatura, e pelo plenário deste órgão legislativo.
Por que diz que a tentativa de golpe de Estado de 2023 foi simulada?
Esse alegado atentado deu-se de 30 de novembro para 1 de dezembro, quando Sissoco Embaló não estava na Guiné-Bissau. Nessa noite, unidades da Guarda Nacional, tutelada pelo Ministério do Interior, tentaram libertar das celas da Polícia Judiciária (PJ) o ministro das Finanças, Suleimane Seide, e o secretário de Estado do Tesouro, António Monteiro. Os dois estavam acusados de corrupção, num processo que gerou um intenso debate no Parlamento, porque foram presos arbitrariamente, sem qualquer ordem judicial. Durante o suposto “golpe”, a Guarda Nacional entrou em confronto com os militares, que acabaram por reconduzir os dois detidos à PJ. O comandante da Guarda Nacional também acabaria por ser preso.
Uma tentativa de golpe de Estado atípico.
Exatamente, um golpe contra celas da PJ, sem apoio de militares. Nem sequer contra a Presidência da República, o aeroporto ou outras infraestruturas estratégicas. Infelizmente, a Guiné-Bissau já tem um histórico de golpes de Estado e sabemos como acontecem. São contra o governo, mas, sobretudo, contra os Presidentes da República. Então, sendo uma invasão à PJ, é golpe contra quem? E ainda que fosse, seria uma suposta tentativa de golpe de Estado orquestrada por uma corporação paramilitar afeta ao Ministério do Interior, uma instituição governamental. No entanto, o governo nunca foi responsabilizado, mas sim a Assembleia Nacional Popular, que não tem nem direta nem indiretamente qualquer tutela sobre a Guarda Nacional.
Porquê essa jogada?
Porque na Assembleia Nacional Popular estava Domingos Simões Pereira, presidente do PAIGC. O interesse de Sissoco Embaló era responsabilizar esta figura, para depois legitimar o que tinha preparado: instituir um governo da sua iniciativa e conduzir o país a este impasse, em que não podemos ir nem às eleições legislativas, nem às presidenciais. Para as presidenciais, como já referi, diz que ainda há tempo. E para as legislativas, alega que, apesar de já há muito ter ultrapassado os 90 dias para as fazer, segundo a Constituição, ainda não é o momento, porque o país está numa situação de tensão. E que é preciso conduzir os atores políticos ao diálogo e entendimento para a construção de consensos que possibilitem umas eleições num quadro de calma e de paz social. Um argumento que não colhe, claro.
Perante este cenário que descreve, de governos inconstitucionais, desrespeito à Constituição nos prazos para marcação de eleições legislativas e presidenciais, pressões vindas do Palácio Presidencial, onde estão as instituições guineenses responsáveis por garantir a democracia no país?
Todo este cenário de dissolução do Parlamento inclui também a cooptação das instituições. Em outubro do ano passado, o Presidente tinha já substituído pela força o presidente do STJ, José Pedro Sambú.
Porquê à força?
Primeiro, acusou-se o presidente do STJ de tentar condicionar uma juíza num processo do Tribunal de Família, Menores e Trabalho. Segundo, determinou-se a sua destituição num plenário convocado ad hoc contra as disposições do próprio STJ, que indicam que só o presidente deste órgão pode marcar reuniões ordinárias e extraordinárias. E voltamos ao mesmo – ainda que tivesse sido destituído legalmente, em três meses teria de ter sido substituído através de um processo eletivo entre os pares da magistratura guineense, o que nunca aconteceu.
Houve também a intervenção dos militares, no cerco ao STJ.
Sim, os militares impediram José Pedro Sambú de sair de casa para ir para o seu gabinete no STJ, e ocuparam as instalações da instituição. Sissoco Embaló disse na altura que, apesar de ser o Comandante em Chefe das Forças Armadas, não tinha dado nenhuma ordem para invadirem o STJ, e que, de todas formas, não lhe competia decidir sobre as ações do “dia a dia” da Força de Defesa e Segurança. Nesse cenário, o presidente do STJ não teve outra opção, se não demitir-se. Estamos desde novembro de 2023 com um presidente do STJ imposto, o antigo vice-presidente deste órgão, Lima André, que executou todo este plano, e que tem vindo a substituir e a suspender vários juízes, tanto do STJ como de outros tribunais, que não se deixam manipular e ser peões da agenda do regime.
E qual a posição da Comissão Nacional de Eleições (CNE) face ao impasse nas legislativas e presidenciais?
A CNE tem uma liderança caduca desde 2022. E como a direção da CNE é constituída a partir do Parlamento, e neste momento não temos Parlamento, então estamos num beco sem saída. É uma situação conveniente para o regime. O próprio presidente da CNE vem a público apoiar abertamente a decisão do PR de continuar no poder até setembro deste ano. É igualmente importante referir que o Procurador-Geral da República, Bacari Biai, também é uma figura abertamente ao serviço de Sissoco Embaló. Este controlo institucional da CNE, STJ e PGR, a imposição de governos inconstitucionais, os atropelos à Constituição, e a perseguição de quem pensa diferente marcam o carácter autoritário e o viés ditatorial do PR. Ninguém nos garante que não possa condicionar os próximos processos eleitorais a partir desta manipulação institucional.
“Se não houver resistência nem protestos dos movimentos sociais, a situação vai-se agravar na Guiné-Bissau”
O que se vive hoje na Guiné-Bissau é parte de uma crise interminável de décadas. Qual é, para si, realmente a base desta instabilidade recorrente?
É um conjunto de fatores complexos, mas há, sobretudo, um esgotamento do sistema político, no seu todo, que derivou nesta ditadura. Quando falamos no PAIGC, há que ter em conta que esse partido só não ganhou as eleições presidenciais no país duas vezes desde a abertura democrática, em 1991. Foi nas eleições de 1999/2000, em que venceu o PRS do Kumba Ialá; e na segunda volta das eleições de 2020, com Sissoco Embaló. De repente, estamos numa situação em que a única alternativa da oposição guineense é, precisamente, o PAIGC, o partido que mais governou e desgovernou a Guiné-Bissau. É provável que isso aconteça mais cedo ou mais tarde. No entanto, quando o PAIGC ganhar, tudo volta ao mesmo: vai aliar-se aos seus pares do sistema, apesar de serem de partidos opostos que mudam de bando sem qualquer problema, para dividir o bolo da governação e estabilizarem o seu poder. Porque o domínio do sistema na Guiné-Bissau passa por afastar as alternativas possíveis.
Como combater esse círculo vicioso?
Há uma necessidade de confrontar o próprio sistema, e isso tem de ser através da mobilização de espaços que se querem alternativos, de figuras da sociedade guineense capazes de propor essa alternativa radical em relação ao atual sistema político no nosso país. Mas isto também não se vislumbra.
Porquê?
Porque não existem. A dinâmica dos movimentos sociais nos últimos anos poderia ser o embrião dessa alternativa, mas os próprios movimentos sociais, em parte, acabam por ser presas fáceis das instituições políticas. Os partidos vão lá pescar as lideranças. Por outro lado, o caminho para a democratização também tem disso, e a verdade é que a consciência política dos guineenses não é a mesma de há 10, 20, 30 anos. De 2012 para cá, começou a haver uma participação política forte de várias naturezas, entre movimentos ativistas, sociais e artísticos, que têm alimentado um debate público muito interessante.
Têm espaço de manobra para esse debate?
Entre 2015 e 2019, houve manifestações contínuas nas ruas. E mesmo a partir de 2020 até agora, num contexto muito hostil imposto por esta ditadura, com prisões arbitrárias, raptos e espancamentos, tem havido resistências. A Liga Guineense dos Direitos Humanos, por exemplo, tem feito um trabalho extraordinário e de vanguarda de defesa da liberdade e democracia. Movimentos como a Frente Popular, que surgiu no ano passado, também têm insistido com manifestações de rua, apesar de lhe custarem várias agressões e detenções ilegais.
Manifestações que estão oficialmente proibidas na Guiné-Bissau, por certo.
Exatamente. Ainda assim, movimentos estudantis por todo o país, não só em Bissau, mas também no interior do país, começam a ser muito fortes. Isto é muito importante, porque é inédito que fora da capital se mobilizem contra esta repressão do regime. Sindicatos de trabalhadores de educação e saúde e a União Nacional dos Trabalhadores Guineenses também se estão a manifestar de várias formas, usando o mecanismo de greve como forma de protesto contra a eliminação de liberdades sindicais na Guiné-Bissau. Acredito que essas manifestações e denúncias tenham tido um papel importante nos resultados das últimas eleições legislativas de 2023, desfavoráveis aos aliados do Presidente. E penso que se houver um quadro de mínima transparência eleitoral, estes movimentos determinarão em grande medida o resultado das próximas eleições, tanto presidenciais como legislativas.
O que é necessário para estes movimentos atingirem um nível de influência de alto impacto?
Nós não vamos ter um Sissoco diferente até às eleições presidenciais ou legislativas. Mas poderemos ter um entendimento entre atores políticos, nomeadamente partidos políticos representados no (que era o) Parlamento. Ainda assim, para garantir a transparência do processo, precisamos de duas coisas, fundamentalmente: que os principais atores políticos se entendam na escolha uma nova liderança para a CNE, e que esta garanta o mínimo de segurança e transparência na organização das eleições; e que haja eleições no STJ, dentro do que a lei estipula, para que os magistrados escolham entre os seus pares o presidente da instituição. A restituição da legalidade na CNE, que organiza as eleições, e do STJ, que as supervisiona, garante a transparência e dissipa dúvidas sobre queixas possíveis, são os dois fatores mínimos para restabelecermos a situação política no país. Penso que a ação dos movimentos sociais pode ser importante neste processo.
Este é o cenário ideal, mas há condições para que aconteça?
Não só é o ideal, dentro das poucas correlações de forças que existem, mas o mínimo que se pode assegurar. Porque o Parlamento não vai voltar a funcionar. Até a oposição se acomodou e já nem fala da retoma do Parlamento dissolvido ilegalmente, só aponta para as eleições legislativas. Inclusivamente, já depositaram as suas candidaturas no STJ, aceitando implicitamente a dissolução da Assembleia Nacional Popular. Por outro lado, não teremos, a 27 de fevereiro, um Sissoco a abandonar por iniciativa própria a Presidência da República, ainda mais tendo o apoio das chefias militares. Por isso, o único caminho é fazermos pressão para a restituição da legalidade na CNE e no STJ. Uma pressão consistente e em coordenação com todas as forças políticas, movimentos e forças sociais de protesto, que nos permita obter pequenas vitórias. Mas se não houver resistência, se não houver protestos, logicamente vamos assim para as eleições e tudo indica que a situação se agrave.
Como pode o movimento social guineense ganhar essa força? Realmente pode ser uma via?
A defesa da agenda democrática e da participação política e cívica a partir dos movimentos sociais tem a sua importância. São muito relevantes como força de protesto, pressão, denúncia e resistência e na promoção da participação cívica, abrindo caminhos para as políticas que necessitamos. No entanto, não são determinantes, porque os movimentos não disputam o poder. E as mudanças radicais na Guiné-Bissau só poderão acontecer no quadro do confronto político e de governação.
De que forma a partidarização dos líderes que referiu afeta o real impacto desses movimentos sociais?
Claramente que essa partidarização retira espaço à mobilização cívica, porque as massas começam a desconfiar do que realmente está por trás das ações: se compromisso real, ou interesses pessoais com vista à militância política. A própria Frente Popular tem-se batido com essa dificuldade, porque no passado houve interferência de partidos políticos do sistema nos movimentos de protesto. A Frente Popular é um movimento muito interessante, uma plataforma que envolve várias organizações da sociedade civil unidas contra a ditadura de Sissoco Embaló.
E qual o papel dos partidos na mobilização pública?
Na Guiné-Bissau, assim como na generalidade de África, à exceção, talvez, do Senegal e Uganda, os partidos políticos não têm essa veia de mobilização pública para além das eleições. Simplesmente não estão interessados em alimentar esse tipo de envolvimento político. Na sua lógica, convocar o povo para as ruas contra o regime é dar aos cidadãos uma força que poderão, no futuro, usar contra o próprio PAIGC, no caso da Guiné-Bissau. Se não for um partido verdadeiramente progressista e comprometido com transformações, nunca estará à vontade em adotar a mobilização para protestos de rua como veia interventiva. Sei de várias tentativas por parte de alguns desses movimentos sociais de estabelecer frentes comuns com os partidos da oposição, para resolver o imediato, que é derrotar esta ditadura. Mas a resposta é sempre não.
“Os militares têm participado na instituição e consolidação da ditadura de Sissoco Embaló”
Na Guiné-Bissau, os militares são um poder particularmente significativo. Atualmente, apoiam Sissoco Embaló, como referiu. Como analisa a relação atual entre poder castrense e político?
É íntima. Os militares apoiaram a posse unilateral do PR, em 2020. Alguns deles até estão envolvidos no tráfico de droga. Outros estavam na reserva, praticamente desaparecidos, e com a presidência de Sissoco Embaló voltaram em grande. Estas chefias militares não só o asseguram no poder, como têm participado na instituição e consolidação da ditadura. Os militares apresentam-se como respeitadores do poder político, como estipula a Constituição, mas são eles os usados para aterrorizar o povo, para assaltar o STJ, para impedir o acesso dos deputados à Assembleia Nacional Popular, assim como do seu presidente legítimo. Foram também os militares os participantes de primeira linha na intentona de golpe de Estado que nunca existiu.
Refere o tráfico de droga e a relação com militares e o poder político. Mas na Guiné-Bissau esta questão não é nova, nem surgiu com Sissoco Embaló.
Claramente que não começou com este poder político, mas reforça essa cumplicidade militar e política, particularmente com o regime atual. A história de tráfico de droga começou na Guiné-Bissau particularmente a partir de 2005, com o regresso de Nino Vieira ao poder, e envolveu políticos do governo e as Forças Armadas. Já tivemos um chefe de Estado-Maior da Armada, Bubu Na Tchuto, preso nos Estados Unidos da América por envolvimento no tráfico de droga. Aliás, temos um ex-chefe de Estado-Maior e General das Forças Armadas, António Indjai, na lista de sancionados por autoridades internacionais devido ao mesmo. Portanto, não começou hoje. Que se saiba, o atual chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas, Biaguê Na N’Tan, não tem ligações conhecidas com o tráfico de droga. Mas a forma como se tem aliado e dado cobertura ao autoritarismo de Sissoco Embaló, permite-nos dizer que é cúmplice do autoritarismo vigente no país.
No início do mês, cinco latino-americanos foram condenados a penas de prisão na Guiné, por transporte de mais de 2,5 quilos de cocaína num avião que fez escala no aeroporto de Bissau, em setembro do ano passado, para reabastecimento. Como interpreta que, por um lado, aparentemente exista um combate ao narcotráfico, e por outro exista esse conluio, como diz, entre autoridades guineenses de todos os níveis com o tráfico internacional?
Não quero assumir uma conspiração, mas se voltarmos ao histórico de como essas drogas chegaram à Guiné-Bissau, vemos questões por esclarecer. Os guardas aeroportuários envolvidos na apreensão foram perseguidos, os elementos da PJ envolvidos na investigação foram condicionados. Porquê? Não se sabe. Por outro lado, o julgamento aconteceu, sim, mas que consequências políticas e administrativas haverá para aqueles que admitiram a entrada da droga no país? E há que recordar que este episódio é apenas mais um. O deputado Manuel Irénio Nascimento Lopes, do partido do PR, o MADEM-G15, foi preso em maio, em Lisboa, por tráfico de cocaína. Pouco antes, em abril, o Procurador Eduardo Mancanha, que se encontrava de licença de serviço para estudar em Portugal, também foi detido na capital portuguesa pelo mesmo. São muitos casos.
O poder do tráfico da droga é o que realmente alimenta, hoje, a luta pelo poder na Guiné-Bissau, como indicam alguns analistas?
A Guiné-Bissau é um país com vários recursos. As florestas, por exemplo, dão muito dinheiro. Desde 2012, a desmatação ilegal tem sido uma fonte de renda de políticos profissionais que veem na participação no poder uma forma de enriquecimento pessoal ilícito. Isto é um fator. O próprio erário público está à mercê de quem está no poder. Mas como dizia, há essa ligação clara entre políticos e militares no tráfico de droga, e a partir daí na constituição do poder. Estas relações estão bastante documentadas em estudos académicos, em reportagens jornalísticas e em relatórios de instituições internacionais.
Quase 51 anos de independência. Que Guiné temos?
A independência da Guiné-Bissau, que teve uma luta heroica conduzida por Amílcar Cabral e pelo PAIGC como instrumento de mobilização popular, morreu, foi assassinada em 1980. De lá para cá, são mais de 40 anos de destruição das instituições públicas, colocadas ao serviço de interesses bem conhecidos e identificados, alguns deles aqui referidos. É uma longa história de destruição do país. Nós temos o desafio de refundar esse Estado, de voltar à sua história fundacional para construir o progresso, que foi o principal objetivo desde o princípio da mobilização da luta até à proclamação unilateral da independência, em 1973.
PERFIL
Sumaila Jailó é um ativista e académico guineense. Entre 2016 e 2019, envolveu-se em manifestações na Guiné-Bissau, como parte do Movimento dos Cidadãos Conscientes e Inconformados, que surgiu da contestação à destituição do governo saído das eleições em 2014. Desde a eleição de Sissoco Embaló, não voltou à Guiné-Bissau, com receio de retaliações. É licenciado em Estudos de Língua Portuguesa pela Escola Normal Superior Tchico Té, e foi professor do ensino secundário no Liceu Agostinho Neto, em Bissau, de 2014 a 2018. Em 2018, foi para Portugal, onde fez o mestrado em História Contemporânea pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Atualmente, frequenta o doutoramento em Discursos: Cultura, História e Sociedade, na Universidade de Coimbra.