Os fantasmas de Tlatelolco

1. No verão de 1968, uma crise estudantil no México põe o governo de Gustavo Díaz Ordaz à beira de um ataque de nervos. O braço-de-ferro acaba de forma abrupta a 2 de outubro, com o massacre de um número indeterminado de manifestantes na Praça das Três Culturas, no bairro de Tlatelolco.

Tanques no Zócalo da cidade do México durante manifestação de estudantes (DR)Tanques no Zócalo da cidade do México durante manifestação de estudantes (DR)

“Está a sair muito sangue?” – pergunta Pablo Berlanga. Um abraço em silêncio responde.

“São corpos, senhor…” – aponta um soldado ao jornalista José del Campo.

A metralhadora em rajadas, baionetas aguçadas nas pontas dos fuzis. Gritos.

A 2 de outubro de 1968, em Tlatelolco, Cidade do México, 10 mil estudantes, operários, professores e simpatizantes do movimento estudantil juntam-se na Praça das Três Culturas. É uma ação mais de uma luta que, desde 26 de julho desse ano, exige a democratização do governo do Partido Revolucionário Institucional (PRI), no poder desde 1929.

A dez dias da inauguração dos Jogos Olímpicos do México, as autoridades resolvem cortar a contestação pela raiz. Durante meia hora, soldados, polícias e franco-atiradores disparam a matar contra a massa humana encurralada entre os modernos edifícios residenciais, a igreja colonial de Santiago e as ruínas aztecas que limitam a praça.

“Não aguento mais!”… “Com cuidado, a ferida está no peito!”… “Abaixo! Vão-nos matar!”… “Se dás um passo,1 disparo!”. Vozes captadas por um gravador durante o massacre, em play no livro “A noite de Tlatelolco”, da escritora Elena Poniatowska.

Um botão encontrado na praça é um manifesto: “Amo o Amor”. “É hora de dizer adeus ao 68”, dispara-nos o ativista Joel Ortega.

Jovens detidos pelo Batalhão Olímpia em Tlatelolco (Universidad Iberoamericana)Jovens detidos pelo Batalhão Olímpia em Tlatelolco (Universidad Iberoamericana)

A ditadura perfeita

Quando o verão de 68 chegou ao México, pintavam-se as últimas paredes dos estádios que acolheriam as Olimpíadas a 12 de outubro seguinte. A imagem de um país moderno que o presidente Díaz Ordaz se esforçava por projetar ao mundo omitia um ambiente político interno “ambíguo”, como diz à JN História o académico Gerardo García. “Por um lado, vivíamos num sistema repressor, controlado há décadas pelo PRI; por outro, havia um ambiente efervescente e festivo, influenciado pelos ecos de liberdade que chegavam de França, Cuba ou Estados Unidos”. Um sistema político “híbrido”, portanto, a que o escritor Joel Ortega, em entrevista a esta publicação, chama de “ditadura perfeita”, parafraseando uma expressão de Mario Vargas Llosa.

A 22 de julho de 1968, a bomba de tempo em que o país se transformara entrou em contagem regressiva. Nessa manhã, alunos do Instituto Politécnico Nacional (IPN) atacam uma escola preparatória no centro da capital. Uma comum “bronca de estudantes”, chamou-lhe o jornalista Carlos Monsiváis. Em represália, no dia seguinte os granaderos [polícia de choque] invadem uma das escolas do IPN e carregam indiscriminadamente sobre alunos e professores.

Indignados, a 26 de julho, os “politécnicos” saem às ruas em protesto contra o excesso de violência, mas embatem novamente num muro policial com porretes em riste. Numa dessas coincidências que fazem a História, o Centro Nacional de Estudantes Democráticos (CNED) comemora ali perto o assalto dos revolucionários cubanos ao Quartel Moncada, em 1953. Encurralados, os estudantes do IPN pedem ajuda aos jovens comunistas. As duas marchas unem-se então, contra os granaderos, numa batalha que rapidamente se estende às vizinhas Preparatórias 2 e 3. Duzentas pessoas são detidas. 

Uma semana depois, na madrugada de 30 de julho, o conflito sobe de tom quando o exército ocupa a Preparatória 1, adscrita à Universidade Nacional Autónoma do México (UNAM). Esse dia é ainda hoje relembrado com especial simbolismo. Para forçar a entrada e acabar com a resistência dos alunos ali entrincheirados, o exército lança um tiro de bazuca contra a “Porta de San Ildefonso”, uma obra barroca com quase quatrocentos anos.

O Secretário de Governação mexicano, Luis Echeverría, justifica as ações com o combate a “interesses mesquinhos e ingénuos, muito ingénuos, que pretendem desviar o caminho da Revolução Mexicana” (ver “A conjura comunista da CIA”).

No meio de autocarros incendiados e gás lacrimogéneo, o IPN e a UNAM selam uma aliança, dando início ao Movimento Estudantil mexicano. O país somava-se à rebelião internacional de 68. “Foi a primeira vez que o México foi contemporâneo do mundo”, escreveria o Nobel da Literatura mexicano, Octavio Paz.

O reitor, os borregos e o choque

Barros Sierra, reitor da UNAM e aliado do movimento estudantil de 68 (AHUNAM)Barros Sierra, reitor da UNAM e aliado do movimento estudantil de 68 (AHUNAM)A invasão de San Ildefonso foi, para a UNAM, um golpe baixo à sua autonomia - figurino constitucional que contempla o autogoverno das universidades, sem intervenção dos poderes do Estado. Em sinal de luto, o reitor da UNAM, Barros Sierra, põe a bandeira mexicana a meia haste na Cidade Universitária e lança o apelo a milhares de estudantes: “Permaneçamos juntos para defender, dentro e fora da nossa casa, as liberdades de pensamento, de reunião, de expressão, e a mais cara: a nossa autonomia!”

A 1 de agosto, o reitor encabeça uma marcha de cem mil pessoas que junta estudantes da UNAM e do Politécnico. Nesse mesmo dia, o presidente Díaz Ordaz diz aos manifestantes que a sua “mão está estendida”. Os estudantes denunciam o cinismo. “A mão estendida tem uma baioneta ensanguentada entre os dedos”, lê-se num comunicado da Faculdade de Letras da UNAM.

Nas semanas seguintes, as escolas em protesto criam o Conselho Nacional de Greve (CNH, sigla em espanhol) e publicam um manifesto de seis pontos (ver “O Manifesto dos Estudantes”). A retaliação sobe de tom. “Começam a desaparecer pessoas. Para evitar que nos localizassem, não dormíamos sempre no mesmo sítio”, conta à JN História Adriana Corona, uma das dirigentes do CNH.

Apesar da intimidação, os estudantes não cedem. A 13 agosto, marcham pela primeira vez sobre o Zócalo, enorme praça no coração da capital e palco oficial do regime. Duas semanas depois, no dia 27, repetem a façanha. Com a bênção das autoridades eclesiásticas, sobem ao campanário da Catedral da Cidade do México e tocam os sinos a rebate. Lá em baixo, às portas do Palácio Nacional, um grupo arreia a bandeira mexicana e iça um estandarte rubro-negro. Um plantão de cinco mil pessoas ocupa a praça noite adentro. Tanques militares dispersam-nos às duas da manhã.

Gráfica do 68 (Proceso)Gráfica do 68 (Proceso)Enfurecido com “a violação” dos símbolos do regime, o governo obriga milhares de funcionários públicos a participar no chamado “Protesto de Reparação”. No Zócalo, os convocados à força gritam “Somos borregos, méee!”. Os tanques acabam com a insubordinação. A 1 de setembro, no discurso anual de Balanço de Governo, Díaz Ordaz diz estar disposto a “usar a totalidade da força armada permanente”.

Em resposta às ameaças do Presidente, a 13 de setembro mais de 300 mil estudantes, professores e apoiantes do movimento desfilam com fita adesiva na boca. Levantam os dedos em V de vitória. “A Marcha do Silêncio foi o clímax político e emocional do movimento”, escreve Carlos Monsiváis. “Sentia os passos de centenas de milhares de pessoas atrás de mim. A população que assistia batia palmas e atirava-nos flores, alguns choravam”. Testemunho emocionado da arquiteta Elodia Gómez à JN História. Esta seria a última marcha do movimento de 68.

O impensável aconteceria dias depois. Conta-nos Adriana Corona: “Na noite de 18 de setembro, estávamos na Faculdade de Medicina da UNAM, quando vimos camiões militares. De repente, os soldados começaram a avançar – a Universidade estava a ser invadida”. Adriana conseguiu fugir. Cerca de 600 pessoas não tiveram a mesma sorte e foram detidas. Os principais dirigentes do CNH escaparam à rusga. “Nessa noite estavam atrasados para a reunião”, recorda a agora professora universitária.

O Politécnico seria o último reduto a cair. Às 6 da tarde de 23 de setembro, as autoridades avançam sobre o campus do Casco de Santo Tomás. “Debaixo de um intenso tiroteio e de gás lacrimogéneo, as companheiras de enfermaria cuidavam os feridos”, relembra Adriana Corona. Treze horas depois, às 7 da manhã seguinte, os militares intervêm e acabam com a batalha campal. Três estudantes morreram; 133 ficaram feridos.

Exécto toma de assalto IPN a 23 de setembro de 1968 (DR)Exécto toma de assalto IPN a 23 de setembro de 1968 (DR)

A conjura comunista da CIA

A participação da juventude comunista na manifestação dos estudantes do IPN, a 26 de julho, ajudou a montar uma teoria da conspiração que metia Moscovo ao barulho. Muito ao estilo desses tempos, Luis Cueto, Chefe da Polícia da Cidade do México, afirma que há uma “conjura internacional comunista” contra o “governo e o país”.

Joel Ortega, então militante do Parido Comunista Mexicano, refuta as acusações: “O partido somou-se aos estudantes, mas estava na cauda do movimento”. No mesmo tom, Leonardo Figueiras assume à JN História que, “sim, havia simpatizantes comunistas” mas reafirma: “esta luta nasceu de forma espontânea a partir da repressão aos estudantes, nunca cumpriu agendas internacionais e em nenhum momento visou a tomada do poder”.

A propósito, Joel Ortega conta-nos um episódio: “Num ato na UNAM, em 1975, Luis Echeverría, Secretário da Governação do México em 1968, acusou-nos de ser agentes da CIA. Confrontei-o com a incongruência: que bela conspiração comunista, que afinal é apoiada pela CIA! Não me respondeu”.

O manifesto dos estudantes

A 8 de agosto de 1968, os estudantes criam o Conselho Nacional de Greve (CNH, sigla em espanhol). “Era um movimento horizontal, não havia uma cabeça visível”, assegura Adriana Corona, representante da sua preparatória no organismo.

Desde logo, fixam um novo rumo. “Não negamos a importância da violação aos plantéis educativos, mas a nossa luta é pelo exercício dos direitos que outorga a Constituição”, declarou, na altura, um dos dirigentes, José Tayde Aburto.

Surge então um manifesto petitório de seis pontos que exige indemnizações aos estudantes reprimidos pelas autoridades; a extinção dos granaderos; a destituição do chefe da polícia da capital, Luis Cueto. Intima ainda à liberdade dos “presos políticos” e pede a eliminação do chamado delito de “dissolução social” (difusão de “propaganda política” com o fim de atacar a “soberania nacional” ou provocar “rebelião, tumulto, sedição ou escândalos”). “Eram exigências muito simples, mas no México de então eram consideradas subversivas”, realça Joel Ortega.

O CNH assume também a coordenação das brigadas de estudantes, uma das prioridades do movimento. “A imprensa estava controlada, a única forma que tínhamos de expor as nossas ideias era subir aos autocarros, ir aos bairros, mercados, a outros estados, e falar com as pessoas. Fazíamos também peditórios. Foi o povo quem financiou o movimento”. Testemunho de Adriana Corona.

 

2. Os 29 minutos que destruíram o movimento estudantil

Na tarde de 2 de outubro, estava agendada uma concentração na Praça das Três Culturas, no bairro de Tlatelolco, Cidade do México, para informar sobre os avanços do movimento. Na manhã desse dia, representantes da CNH e do governo tinham-se reunido para discutir os termos do diálogo público que os estudantes exigiam. Um dia antes, os soldados tinham também abandonado a Cidade Universitária. Sem avanços determinantes, os sinais pareciam positivos.

Praça das Três Culturas, vista geral da manifestação (DR)Praça das Três Culturas, vista geral da manifestação (DR)

O ato começou às 5 horas. Numa varanda no terceiro andar do edifício Chihuahua, alinham-se os dirigentes do CNH. Dez mil pessoas ocupam a enorme praça. Quando Adriana Corona chegou, encontrou o exército em força nas ruas circundantes. “Fiquei surpreendida com a quantidade de soldados, mas não lhe dei muita importância, de certa forma já estávamos habituados”, diz.

Elodia Gomez estava no meio da multidão. “Tudo decorria com tranquilidade, até que um helicóptero começou a sobrevoar a praça. Vimos então umas luzes de bengala verdes sobre a igreja de Santiago. Foi aí que o caos se desatou”, conta-nos. Um vídeo da época, recuperado no documentário “Matança de Tlatelolco”, mostra como os soldados avançam sobre as ruinas dos templos aztecas e rodeiam a igreja colonial. Num movimento de pinça encurralam os estudantes. Ouvem-se rajadas de metralhadora, tiros secos, gritos, tumulto. Atiradores furtivos disparam dos edifícios que rodeiam a Praça das Três Culturas. Em debandada, os manifestantes tropeçam nos mortos.

“O general que lidera a operação do exército é uma das primeiras pessoas assassinadas”, relata o historiador Sergio Aguayo no documentário da National Geographic. Sem comando, os soldados atuam de forma errática. Uns disparam; outros caem, mortos, atingidos pelos franco-atiradores. Alguns, ainda, protegem os manifestantes. “Atirem-se para o chão!”, gritam.

Na tribuna improvisada no terceiro piso, os dirigentes do CNH tentam fugir, mas são intercetados por militares à civil com luvas brancas na mão esquerda. É o Batalhão Olímpia. Detidos os dirigentes, esta unidade militar sinistra começa também a disparar sobre a multidão.

O tiroteio terá durado precisos 29 minutos. No final, mais de duas mil pessoas são detidas na prisão de Lecumberri e no Campo Militar Nº1, na capital mexicana. Muitos seriam libertados dias depois; outros, apenas em 1970, ao abrigo de uma amnistia. Por volta das 8.30 da noite, debaixo da chuva, os corpos são levados em camiões militares. Até hoje, não se sabe quantas pessoas morreram em Tlatelolco. 29, disse o governo na época; centenas, talvez 400, garantem ainda hoje os sobreviventes.

Na manhã seguinte, a Praça das Três Culturas aparece limpa e controlada pelo exército. A 12 de outubro, como previsto, o presidente Díaz Ordaz inaugura os Jogos Olímpicos. Na cerimónia de abertura, dezenas de pombas brancas são libertadas nos céus da Cidade do México, num apelo à paz.

Os papéis do general

“Nunca esperámos que o governo reprimisse desta maneira, foi um choque tremendo”, afirma Adriana Corona. “O CNH dizia que o exército era o povo armado e sempre acreditou numa saída pacífica. Não tomou em conta o nível de autoritarismo, o fato de estarmos a dias das Olimpíadas e que, para o governo, a imagem externa era uma obsessão”, opina Joel Ortega.

No dia seguinte, Díaz Ordaz responsabiliza “estudantes radicais” de disparar sobre os manifestantes e militares. Numa entrevista em 1977, repete as mesmas acusações e enche o peito: “Do que estou mais orgulhoso desses seis anos [de governo] é do ano de 1968, porque me permitiu salvar o país”.

Militares encarcelam centenas de estudantes a 2 de outubro (DR)Militares encarcelam centenas de estudantes a 2 de outubro (DR)

A versão oficial demorou 30 anos a ser desmontada. Em 1999, os jornalistas Carlos Monsiváis e Julio Scherer publicam “Parte de Guerra”. O livro divulga as memórias que Marcelino García Barragán, Secretário de Defesa Nacional em 68, anotou sobre esse dia.

“Barragán expõe a enorme perversão do regime”, adjetiva Leonardo Figueiras em entrevista a JN História. Os papéis do general revelam, então, que no dia do massacre, o governo montou três operações em simultâneo, sem que nenhuma soubesse da outra. Enquanto o exército se posiciona nas ruas de Tlatelolco, um grupo de franco-atiradores afetos à Guarda Presidencial ocupa postos estratégicos nos edifícios que rodeiam a praça. Por seu turno, o chamado Batalhão Olímpia esconde-se em apartamentos do edifício Chihuahua, onde o CNH montaria a sua tribuna. Missão: emboscar os dirigentes estudantis na hora do caos.

Quando as luzes de bengala deram o sinal para avançar, um dos atiradores furtivos posicionado no edifício Chihuahua fez o primeiro disparo, lançando o caos. No final dessa noite, o exército prende dois franco-atiradores. São libertados após um telefonema que os identifica como oficiais do Estado-Maior Presidencial. Apenas então o general Barragán se dá conta que os seus soldados caíram numa armadilha de Díaz Ordaz. Usados como carne-de-canhão, os militares foram alvejados e mortos pelos próprios companheiros.

O caminho para a democracia

Fortemente debilitado depois de outubro, o movimento estudantil desarticula-se finalmente em dezembro de 68. Numa entrevista a Scielo, um dos principais dirigentes do CNH, Gilberto Guevara Niebla, reconhece que “Tlatelolco produziu uma enorme carga de ódio e ressentimento social” que empurrou os elementos mais radicais para uma guerrilha urbana entre 1971 e 1976.

Apesar deste “lado negro”, cinquenta anos depois os historiadores e sobreviventes concordam que os frenéticos 140 dias do movimento representaram um extraordinário ponto de inflexão no país. “De forma indireta, o protesto estudantil foi o responsável não só pela abertura democrática que marcou as décadas seguintes, mas também pela afirmação da mulher nos meios políticos e pela mudança radical da relação dos jovens com a família e com a autoridade”, resume à JN História a professora da UNAM, Carola García.

Sentado numa poltrona na sua casa nos edifícios da antiga Vila Olímpica, Joel Ortega fecha o ciclo: “‘El Búho’ [alcunha do dirigente estudantil Eduardo Valle], um dos melhores oradores do 68, disse uma vez no Zócalo: ‘Provámos a doçura da liberdade, e isso nunca se esquece’. É isto.” E sorri.

A revolta dos soldados

JN História conversou com um antigo sargento no ativo em 68 sobre o papel dos militares no movimento estudantil. Cinquenta anos depois, e há muito afastado do meio castrense, prefere manter o anonimato. “É melhor…”. Nesses dias, “Alejandro Ciénega” tinha 24 anos. Estudava no Instituto Nacional de Rádio e Eletrónica e integrava o batalhão que “custodiava a Secretaria da Defesa Nacional”.

Mensagem para o exército em escola ocupada (Universidad Iberoamericana)Mensagem para o exército em escola ocupada (Universidad Iberoamericana)

Alejandro conta que “muitos soldados não concordavam com o que eram obrigados a fazer”, o que provocou divisões inevitáveis. Certa vez, conta, “um batalhão inteiro do Campo Militar Nº1 recusou-se a saudar a bandeira, como protesto”. No seu caso, foi obrigado a tomar partido. “Um dia, o nosso comandante ordenou que quem não concordasse com as ações do governo, desse três passos em frente”, relata. Com “algum receio”, Alejandro e “praticamente metade” dos seus companheiros avançaram. “Não podia ter tomado outra decisão. Quase todos éramos estudantes, os nossos colegas ou familiares andavam nas ruas, eu próprio cheguei a manifestar-me na marcha em que os tanques avançaram no Zócalo [27 de agosto de 1968].”

A 2 de outubro, Alejandro estava aquartelado e só soube do que aconteceu no dia seguinte. Mas algo lhe chamou a atenção: “camiões militares iam e vinham constantemente e estacionavam-se nuns barrancos profundos do Campo Militar.” Mais tarde, um amigo do Batalhão de Transportes Militares acabou por revelar-lhe que “estavam a depositar ali os corpos dos estudantes.” “Um dia depois, entrou maquinaria pesada e cobriu as valas”, conta.

O destino das vítimas de Tlatelolco é uma das incógnitas ainda por resolver. Adriana Corona conta que, “em alguns casos, as autoridades entregaram os restos mortais às famílias, com a condição de que não revelassem as causas reais da morte”. Durante anos, prevaleceu a ideia de que foram incinerados no Campo Militar Nº 1, mas em 1998 surgiu outra versão. “Um antigo piloto da Força Aérea ligou para um programa de rádio sobre os 30 anos de Tlatelolco e garantiu que ele próprio tinha transportado corpos que foram atirados ao mar, no Golfo do México”, conta Adriana.

A Justiça que não chega

Em 2006, um Tribunal Especial para os Movimentos Sociais e Políticos do Passado condenou a prisão domiciliar Luis Echeverría, por crimes de genocídio cometidos em 1968, como Secretário de Governação. A decisão seria revogada em 2009 por um Tribunal Federal.

A breve prisão de Echeverría, que seria presidente do México entre 1970 e 1976 e igualmente responsável pela repressão sangrenta de estudantes nesse período, não satisfaz a necessidade de justiça que ainda hoje muitos sobreviventes exigem. “Queremos saber os nomes dos responsáveis pelas matanças, desaparecimentos, torturas e detenções, só isso fechará a ferida aberta”, defende Leonardo Figueiras. Adriana Corona concorda, e exige ainda o reconhecimento do massacre como “um crime do Estado priista” e a “abertura pública de todos os arquivos da época”, muitos deles “classificados por 70 anos!”

Em sentido contrário, Joel Ortega defende que é hora de deixar “essa nostalgia a que muitos continuam presos”. A ideia, plasmada no seu recente livro “Adeus ao 68”, está a causar polémica entre os antigos companheiros de luta. Mas Joel é perentório: “O 68 só tem sentido se o vincularmos ao momento atual. Há três meses, o povo votou em massa por uma mudança que, pensa, representa o fim do regime do PRI. No entanto, quase todo o novo governo tem origem na família priista e carrega a tradição dessa máquina que nos reprimiu há 50 anos. Temos que estar atentos.”

Reportagem originalmente publicada na revista JN História em Outubro de 2018, quando se assinalaram os 50 anos do massacre de Tlatelolco.

**Luis Echeverría faleceu a 8 de Julho de 2022, aos 100 anos, quatro anos depois da publicação desta reportagem.**

por Pedro Cardoso
Jogos Sem Fronteiras | 3 Outubro 2022 | América Latina, crise estudantil, Direitos Humanos, ditadura, elena poniatowska, estudantes, gustavo díaz ordaz, joel ortega, manifestação, mario vargas llosa, México, palanque, pedro cardoso, praça das três culturas, tlatelolco, violação dos direitos humanos, violência