Os saltos altos de Zapata
Zapata vai nu. Tem pele suave. Usa saltos altos, Zapata! Com o corpo retorcido, monta um cavalo branco com o pénis em tesão. A pintura chama-se “La Revolución” (2013). Assinalou os cem anos da morte de Emiliano. O Zapata afeminado pôs camponeses e ativistas LGBT aos murros e pontapés. E terminou com intervenção presidencial.
No México, a novela durou dias. Misturou gritos e pancadaria, luta de classes. Campo contra cidade. Passado contra modernidade. Arte e História. O que é a liberdade? A obra “La Revolución”, do pintor de Chiapas Fabián Cháirez, foi o vilão. Ou herói.
A tal revolução-pintura é uma das 140 obras que retratam Zapata, no centenário da lenda. Numa tela, o ícone da Revolução Mexicana aparece como um rato; noutra, de esfregona na mão. Mas foi “La Revolución” em tons a dar para o antigo, ou “Zapata Gay”, como ficou conhecida, que virou escândalo nacional. Nuns breves 30x20 cm, Zapata cavalga em pose delicada, com as mãos entre as pernas e um chapéu cor-de-rosa. Um esvoaçante listão verde, branco e vermelho – as cores da nação – embrulha o corpo delicado. E afiados, agudos e negros, os ditos cujos - os sapatos de salto alto.
Os curadores da exposição “Emiliano. Zapata depois de Zapata” explicam na apresentação da pintura que esta procura “visibilizar a diversidade sexual, particularmente corpos homossexuais, morenos, afeminados e de classe popular que não encaixam dentro da norma”. Segundo a descrição, o quadro “vincula o legado zapatista com a luta da população LGBT+, reivindicando a feminidade como uma atitude revolucionária no meio de uma sociedade homofóbica e misógina em pleno século XXI”.
A ira soltou-se. Nem as palavras bonitas e explicações arredondadas dos curadores aplacaram a fúria de zapatistas, camponeses (homens e mulheres que Zapata defendeu até à morte) e da família do “Caudilho do Sul”. A 10 de dezembro, cerca de 50 membros da União Nacional de Trabalhadores Agrícolas invadiram o átrio do Palácio de Belas Artes. Defendiam o respeito, a memória e a hombridade do seu líder histórico. Exigiam que a obra fosse retirada, queriam queimá-la. O ato foi ruidoso e enfrentou uma inesperada resistência. Do outro lado da barricada, ativistas LGBT gritavam contra o machismo e a homofobia, defendiam a liberdade artística.
Entre gritos de “jotos” e “putos”, versão mexicana de “paneleiros”, a coisa aqueceu. “Que saiam daqui esses maricas! Vão ver se trabalham no campo!” ”Querem que os aceitemos mas nunca trabalharam no campo!”. E o grito de guerra: “Vamos dar-lhes uma carga de porrada!” Dito e feito. Num ápice, os camponeses lançaram-se contra os “maricones”, soltaram pontapés, uns ganchos à esquerda e à direita e feriram um deles. No dia seguinte, o Presidente mexicano veio a público apelar à calma. Condenou “todos os crimes de ódio” contra a comunidade LGBT. A 12 de dezembro, Governo e família de Zapata chegavam a um acordo: a obra permaneceria na exposição, mas seria posta uma plaquinha ao lado a remarcar a oposição dos descendentes do general ao conteúdo da imagem.
Nessa semana, a discussão sobre arte, heróis nacionais, liberdade e patriotismo ganhou espaço no México. Praticamente sem argumentos, com demasiada paixão. O pintor Fabián Cháirez foi amado e odiado. “Eu só tentava desmontar o machismo mexicano”, repetia. Numa conferência matinal, o presidente mexicano, López Obrador, tirou então da manga um argumento que todos entendiam: a liberdade. “Dedicamos ao grande líder Emiliano Zapata este ano. [Esse quadro] é parte dessas homenagens ao general Zapata, no marco das liberdades que existem e que se devem garantir”.
O interesse pelo intimidade de Zapata não é coisa de agora. Há muito que investigadores e mexeriqueiros discutem a sexualidade do herói mexicano. Alguns relatos e documentos sugerem que o general era bissexual. O próprio secretário pessoal do revolucionário, o assumidamente homossexual Manuel Palafox, “A Ave Negra”, tê-lo-á confirmado.
Se os gostos sexuais de Emiliano deveriam ser coisa secundária, a verdade é que a loucura à volta de “La Revolución” acabou por opacar o sentido histórico do general. A lenda da Revolução Mexicana (1910 - 1917) que ajudou a derrubar Porfírio Díaz (curiosamente, registos históricos garantem que Zapata namorou com um dos genros do ditador) foi transformado num braço-de-ferro de testosterona e músculo. “Em todo o mundo, o general é o homem dos homens!”, exclamou aos meios de comunicação o neto do revolucionário, Jorge Zapata. Do dia para a noite, o caudilho virou um desses heróis disputado por duas bandeiras. Hasteiam-no os que defendem a masculinidade como força vital, símbolo da tradição, moralidade e poder; e os que vêem nele um revolucionário que não saiu do armário.
Cem anos depois de traição que o matou, Zapata vive. Na selva da Lacandona, em Chiapas, onde os zapatistas são uma sombra de si mesmos. Em algumas lutas por terra e água. E agora numa pintura, gritaria-tira-teimas entre machos e homens em que as armas são mãos que puxam cabelos e unhas que arranham. O campo continua abandonado e miserável, mas a luta que pôs Zapata na berra mudou de cenário. Disputa-se agora às portas de um frondoso Palácio das Belas Artes. No centro do capital.