A ascendência portuguesa de Diego Rivera
A Condessa, o Aeronauta e Diego
Quando os Acosta, família de judeus portugueses, chegaram ao México no início do século XIX, deram início à linhagem paterna do muralista mexicano Diego Rivera. Uma memória que o artista reivindicaria ao longo da sua vida.
Pedro Cardoso em Guanajuato, México
Diz-se no México que as boas histórias de vida são passionais. São felizes e dolorosas, atam e desatam nós cegos na garganta, tipo trago áspero de tequila barata.
Damos o tom e entramos numa das tabernas taciturnas da cidade de Guanajuato – as chamadas “cantinas”, onde se destilam contos pessoais com o avançar dos copos. Paredes de pedra bruta a meia-luz, bafo húmido. Na minha cabeça, Chavela Vargas canta “Tú me acostumbraste”. É noite e chove miudinho lá fora.
Com um brinde selamos o momento. E contamos uma secreta história de vida.
Foi nos últimos anos do século XIX, nesta tela ao estilo do México colonial – estereótipo ainda bem vivo – que se desenhou a infância e adolescência de Diego Rivera. O muralista e pintor (simplesmente “Diego”, para os mexicanos) nasceu em 1886 no último andar de um velho casarão de Guanajuato. Número 80 da Rua de Positos, onde há 43 anos se instalou a Casa Museu Diego Rivera.
Polémico, temperamental, enorme e desproporcional, o Diego de olhos de rã e mãos sapudas foi o marido e amante de Frida Kahlo (ver caixa) e um dos mais icónicos artistas mexicanos em todo o mundo.
Mil vezes se retratou a vida do muralista, mas há um lado praticamente desconhecido, inclusivamente no México. Não há documentos oficiais, a história tem partes turvas e até algumas contradições. Mas tanto o artista como as velhas gerações da família recordam: Diego Rivera descende de judeus portugueses, os Acosta, que chegaram ao México no início do século XIX.
“[Os meus antepassados eram] espanhóis, holandeses, portugueses, italianos, russos e – sinto-me orgulhoso em dizê-lo – judeus”, declarou numa conferência de imprensa em 1952, na Cidade do México. “Recordo sobretudo (…) a minha avó – era uma judia portuguesa com o nome de Inés Acosta”, reforçou, por outro lado, numa entrevista ao fotógrafo norte-americano Marcel Sternberger.
Inés Acosta, a avó que “observava o Shabbat”, seria uma recordação constante na vida do neto-artista, marcando presença sempre que Diego queria reivindicar a sua ancestral herança judia.
Inés e a coroa de prata
No alto de uma estreita escadaria de pedra que trepa o Beco das Almas, em Guanajuato, surge uma praça arejada, como um respiro. No lado esquerdo, enquadrada por duas árvores, encontramos a velha moradia onde se instalou a família portuguesa dos Acosta quando chegou a Guanajuato, “em 1822 ou 1823”, segundo a Enciclopédia Judio-Castelhana, citada num artigo da secretária pessoal de Diego Rivera, Raquel Tibol. O edifício cor-de-rosa-mortiço parece agora desabitado. Não encontramos a campainha. Batemos à porta uma, duas vezes. Ninguém responde. Não insistimos.
Tal como o casarão, a história dos Acosta é espectral e silenciosa. Quando a família chegou ao México, “a imigração lusa no país, tradicionalmente constituída por judeus convertidos, era já muito rara”, conta à Notícias Magazine a historiadora Alicia Gojman. “Os grandes autos-da-fé que ocorreram aqui no século XVII marcaram o fim da chegada em massa de portugueses”, contextualiza a investigadora da Universidade Nacional Autónoma do México (UNAM).
Também a filha de Diego Rivera, Guadalupe Rivera Marín já não guarda “qualquer recordação” sobre a origem dos Acosta. “Eram famílias muito antigas, não me lembro de ouvir o meu pai contar alguma coisa sobre isso”, afirma ao NM numa breve conversa telefónica.
É nas biografias de Diego que pelo menos a avó Inés ganha alguma forma. Sabemos, assim, que terá nascido no casarão dos “Acosta de origem portuguesa” por volta de 1825 (e não em Portugal, como dizia Diego). Era órfã de pai e viveu na pequena praça até ao casamento com Anastasio de la Rivera, também ele de origem judia e natural de Petrogrado (atual São Petersburgo, na Rússia).
Quando deram o nó, em 1842, Inés tinha 17 anos e Anastasio 50. “Um moço de vinte anos não poderia ter sido melhor amante”, terá dito a jovem na única frase que lhe é conhecida, segundo o autor Patrick Marham em “Sonhando de Olhos Abertos”. O casal teve nove filhos, entre os quais o pai de Diego Rivera.
Na obra “Dois Diegos, Dois Riveras”, uma das tias-avó do muralista resgata ainda uma das poucas memórias em primeira mão que restam de Inés. Conta Aurora Alcocer que um certo dia, o “abuelito” Anastasio descobriu um veio de prata na mina de Asunción, da qual era coproprietário. “Era um filão tão grande que onze homens com os braços estendidos não o conseguiam abraçar”. Eufórico, o velho Anastasio coroou então a sua esposa Inés: “Tu serás a condessa ou marquesa de Asunción de la Navarra!”
O título nobiliárquico ad hoc foi prata de pouca dura. Poucos anos depois, a mina inundou-se e a família ficou em apertos financeiros. A duas horas da cidade de Guanajuato, na Serra de Santa Rosa, Asunción faz hoje parte do roteiro de “turismo de aventura” das minas fantasma da região.
Tio Benito, o Cavaleiro Voador
Embora Inés seja a figura mais recordada pelas velhas gerações da família Rivera, uma placa comemorativa na casa dos Acosta celebra: “O Engenheiro Benito León Acosta, primeiro aeronauta mexicano, nasceu nesta casa”.
O marco é importante para a história do México. O tio-avô de Diego foi a primeira pessoa a voar nos céus do país, em 1842. “Ele trouxe o primeiro balão de ar quente (…), tinha aprendido essa arte na França e na Holanda”, relata a autora Loló de la Torriente em “Memória e Razão de Diego Rivera”.
Nessa época, Benito era um verdadeiro herói nacional. O Presidente da República de então, Santa Anna, nomeou-o Cavaleiro da Ordem de Guadalupe e outorgou-lhe a exclusividade para voar no México durante três anos. Ainda hoje, o aeronauta pioneiro é homenageado no Festival de Balão de Ar Quente de León, o terceiro maior evento do género a nível mundial, que sobe todos os anos aos céus desta cidade a 60 quilómetros de Guanajuato.
Os feitos do tio de Inés são bem conhecidos, mas a placa comemorativa da velha casa acaba por trocar-nos as voltas. A inscrição diz também que o aeronauta nasceu neste casarão a “11 de Abril de 1819”, isto é, três ou quatro anos antes da chegada da sua própria família ao México. No livro de memórias “Dois Diegos Dois Riveras”, a filha do muralista, Guadalupe, baralha ainda mais as cartas: a placa “diz que ele é originário de Guanajuato, mas sabemos que veio de Portugal”.
Contradição? Talvez não. A historiadora Alicia Gojman apresenta à NM uma hipótese: “Na altura em que essa família chegou, o México acabava de se tornar independente e a memória da Inquisição estava ainda bastante fresca. Foram muitas as pessoas que chegaram e não se declararam judias.” No caso de Benito Acosta, a académica levanta a possibilidade de uma “reinvenção da identidade”, como artifício para escapar a possíveis ameaças antissemitas.
Em busca de pistas, NM solicitou ao Arquivo Histórico de Guanajuato acesso às certidões de nascimento do século XIX da cidade. No entanto, o registo mais antigo data de 1869, cinquenta anos depois da encruzilhada biográfica dos Acosta. O mistério permanece.
A Memória, a Realidade e a Fábula
As memórias dos tempos dos Acosta são, em Diego, fragmentos soltos. O próprio artista escreveu certa vez: “As minhas recordações de infância são, sobretudo, visuais. Parecem-se com fotografias da minha vida, com intervalos de tempo entre si, e sem ligação imediata umas com as outras”. Como flashes.
No prólogo da biografia “Encontros com Diego Rivera”, o editor Jaime Labastida anota que o artista mexicano tinha “tendência para mitificar cada vez mais” as recordações, à medida que estas “se afastavam no tempo”. Também Guadalupe, filha de Diego, escreve logo na primeira linha desta obra: “O meu pai inventava tudo, todos os dias”.
Não é difícil encontrar a fabulação, exagero ou meias-verdades (conscientes ou não) nas referências de Diego a Inés Acosta, a avó paterna cuja memória assumiu uma importância inesperada nos círculos intelectuais, culturais e até políticos onde o artista se movia.
Certa vez, em entrevista ao fotógrafo Marcel Sternberger, Diego garantiu que Inés provinha diretamente da linhagem de Uriel Acosta, filósofo judeu que nasceu no Porto por volta de 1580, e uma das principais referências do racionalista Baruch Espinoza. “Penso que poderei ter algo a ver [com Uriel]”, atirou para o ar, perante o olhar nada convencido do entrevistador, como se lê no portal biográfico de Sternberger.
Sobre este tipo de episódios, um dos biógrafos do muralista, Patrick Marham, afirma em “Sonhando com os olhos abertos” que Diego “estava muito satisfeito com a sua ancestralidade exótica”, não só portuguesa e judia mas também de outros países europeus. “Isso dava-lhe acesso a uma memória distante de riqueza, uma conexão com a Europa aristocrática da Conquista e uma porção de ousadia militar, distinção intelectual e diferencial Judeu”.
Esta “ancestralidade” pode ter também influído na vida política de Diego, figura importante do Partido Comunista do México e trotskista convicto. Num artigo sem assinatura no portal Marcel Sterneberger Collection, infere-se que tanto Diego como Frida reclamaram a herança judia para “ganhar estatuto e simpatia” no movimento comunista, marcado por personagens judeus como Karl Marx e Leon Trotsky.
O próprio Diego daria a resposta a estas considerações, em 1935: “O meu lado judeu é o elemento dominante da minha vida, daqui surgiu a minha simpatia com as massas oprimidas, que motiva todo o meu trabalho”.
Recordações de uma tarde dominical na Alameda Central
Alicia Gojman não acredita que Diego tenha usado as suas raízes para obter crédito político ou cultural. “Ele sentia-se judeu e preocupava-se bastante com a comunidade, sobretudo a partir do momento em que Hitler assumiu o poder e começaram a surgir grupos fascistas e nazis no México”, afirma à NM a investigadora da UNAM. “Neste esforço de denúncia”, reforça, “Diego chegou a publicar um artigo numa revista dos Estados Unidos em que revelava onde estavam os nazis no México, onde tinham as estações de rádio e onde recebiam o material de propaganda”.
A relação do pintor com os seus antecedentes judeus e portugueses refletiu-se também a nível artístico. Em “Recordações de uma tarde dominical na Alameda Central”, uma das obras-primas do muralista, Diego plasma a tragédia o suplício de Mariana de Carvajal, um dos símbolos do terror da Inquisição no México.
Mariana era portuguesa e pertencia a uma família de cristãos-novos de Trás-os-Montes que chegou ao México em 1583. Acompanhavam Luis de Carvajal, mandatado por Espanha para fundar o Novo Reino de León (atual estado mexicano de Nuevo León, no norte do país). Os inquisidores controlaram sempre os seus passos. Em 1590, toda a família foi condenada a prisão perpétua sob a acusação de praticar em segredo a fé judia. Cinco anos depois, as acusações foram reforçadas e a condenação à fogueira foi imediata.
Dada como “louca”, a jovem Mariana de Carvajal apenas viria a ser condenada em 1601. Em “Sangue Judeu na Nova Espanha”, texto publicado no catálogo da exposição “Diego Rivera e a Inquisição”, Ana Carpizo relata: “O tormento consistiu em levá-la pelas ruas da capital da Nova Espanha – montada numa besta, apregoando o seu delito – até chegar ao mercado de San Hipólito, onde a estrangularam com um garrote até romper-lhe o pescoço antes de queimar o corpo”.
Mariana foi assassinada aos 29 anos nos terrenos agora ocupados pela Alameda Central da Cidade do México.
O cisma de Diego e Picasso
Foi em Madrid e Paris que Diego começou a forjar o seu estilo, ao estudar obras dos mestres europeus e privar com artistas como Picasso e Mondagliani.
O pintor mexicano chegou pela primeira vez à Europa em 1906, depois de ganhar uma bolsa de estudo. Em 1914, começa a dar nas vistas entre os cubistas de Paris. Nesse mesmo ano conheceu Pablo Picasso, já então um nome sonante.
Marevna, uma pintora russa emigrada em Paris, escreveu nas suas memórias: “Picasso… costumava ir ao estúdio de Rivera para (…) examinar sem pudor todas as pinturas. Mais de uma vez Rivera se queixou: ‘Estou farto de Pablo. Se me plagia (…) corro-o de minha casa’”. Dito e feito: em 1915 o verniz estalou. Enfurecido ao ver o quadro de Picasso “Homem apoiado numa mesa”, Diego acusa o espanhol de plagiar a sua obra “A paisagem zapatista” e promete “partir-lhe a cabeça”, conta Marevna. O que nunca aconteceu.
Depois de 15 anos na Europa, Diego Rivera regressou finalmente ao seu pais em 1921, com a ideia firme de se dedicar ao muralismo.
“O elefante e a pomba”
Diego Rivera e Frida Kahlo são dessas histórias de amor de cinema. Em 2002, o filme Frida, de Julie Taymor, transformou este casal num mito romântico universal.
Os dois artistas casaram-se pela primeira vez a 21 de agosto de 1929. “Diziam que era um casamento entre um elefante e uma pomba”, recordaria a pintora. O casamento, passional até à medula, foi marcado pelas infidelidades de Diego. Em 1939, finalmente divorciaram-se… para se voltar a casar um ano depois, a 8 de dezembro de 1940, numa relação cheia de amantes consentidos por ambos.
Sobre as relações de Diego, Frida escreveu: “Sei que todas essas cartas, aventuras com mulheres, professoras de ‘inglês’, modelos ciganas, assistentes com ‘boas intenções’, ‘emissárias plenipotenciárias de sítios longínquos’, são apenas coqueteio”.
A partir de 1940, a pintora começou a brilhar com luz própria no meio artístico. Mas o seu estado de saúde era precário. Numa noite de verão, avisa a Diego: ”Sinto que te vou deixar muito em breve.“ Um dia depois, na madrugada de 13 de julho de 1954, Frida sucumbe. “Foi o dia mais trágico da minha vida”, confessou o muralista.
Diego Rivera partiu três anos depois. Mas antes, pediu para ser incinerado, e que as suas cinzas fossem misturadas com as de Frida, “molécula por molécula”, escreveu numa carta a Toño Pelaéz. O reencontro nunca se deu. Diego foi sepultado na Rotunda dos Homens Ilustres, na Cidade do México. Longe da emblemática Casa Azul onde em paz repousa Frida.
*Publicado originalmente na revista “Notícias Magazine”, 12/9/2018