A morte é um eterno regresso
Día de Muertos no México. As cidades e aldeias enchem-se de vida. De cor, caveiras, foguetes, música, feiras populares, de barracas e carrinhos com comida tradicional, mistura reconfortante de vapores doces e salgados de chiles e mil frituras.
Nas ruas e desfiles, caminham catrinas, as famosas mulheres-esqueleto de caveiras pálidas, maquilhadas até ao excesso, grandes chapéus com flores e vestidos compridos aos folhos, que o caricaturista José Guadalupe Posada criou em 1873, como sátira política e social. Anos depois, Diego Rivera estilizou estas figuras tal como as conhecemos e a vontade popular incorporou-as na tradição do Dia de Muertos, com a qual não tinham qualquer ligação original, mas da qual se tornaram ícones absolutos.
Hoje às 8 da noite, os sinos das igrejas começam a tocar. Anunciam a chegada dos nossos mortos. A cada badalada celebram, mais que nada, a vida. A que foi, a que é e a que se esgotará a qualquer momento. O Dia de Muertos é uma festa ao mesmo tempo íntima e coletiva, que mistura tradição pré-hispânica e ritos cristãos. E que tenta distanciar-se dos delírios pop de um mundo exterior que descobriu com “Coco”, filme de animação da Disney, a nostalgia de um ritual que muitas vezes não entende. “Isto não é um disfarce, é a nossa cultura”, reivindicam nas redes sociais mexicanos vestidos de catrina.
Hoje nas casas de cá, os altares são portais de veneração. Os cemitérios são ponto de reencontro. As campas transformam-se em mesas sagradas onde cabem flores e velas, comidas e famílias inteiras, entre os vivos da superfície e os mortos ali enterrados. A noite é um longo convívio, às vezes silencioso, outras com guitarradas, mariachis, grupos de música regional ou pequenos rádios a pilhas ou telemóveis que tocam as canções preferidas do defunto, que hoje regressa a bailar. É como uma jantarada que se prolonga noite fora, até a estrela da manhã levá-los de novo para a casa no mais-além.
Amanhã, passada a ressaca e os calafrios, arrepios, sombras e espectros que se adivinham pelo canto do olho, a comida das oferendas já não terá sabor – levaram-no no paladar os que voltaram às quatro dimensões da morte. As casas sentem-se vazias, a nostalgia pesa. Como depois de uma grande festa, quando apenas ficam os restos, as memórias e o silêncio.
“A vida não vale nada”
O Dia de Muertos é o zénite de uma relação muito particular dos mexicanos com a morte, difícil de entender à primeira vista por forasteiros. O também morto escritor Octavio Paz explica no ensaio “Todos os Santos, Dia de Mortos”: “No México, a morte é como uma vingança da vida, desnuda-a de todas as vaidades e pretensões e converte-a no que é: ossos e uma careta assustadora. Num mundo fechado e sem saída onde tudo é morte, a única coisa que vale é a morte. Crânios de açúcar ou papel da china, esqueletos coloridos e fogos-de-artifício, as nossas representações populares gozam sempre com a vida, são uma afirmação do nada e da insignificância da existência humana. Adornamos as nossas casas com caveiras, comemos no Dia dos Finados um pão doce com a forma de ossos, divertimo-nos com canções e piadas em que a morte ri, mas toda essa familiaridade vangloriosa não nos exime da pergunta que todos nos fazemos: o que é a morte? Não inventamos uma nova resposta. E cada vez que nos perguntamos, encolhemos os ombros: o que me importa a morte, se não me importo com a vida?’”.
E é aqui que entra a voz potente do cantor popular José Alfredo Jiménez, na icónica ranchera “Caminhos de Guanajuato”. A estrofe “a vida não vale nada” virou estribilho nacional. Na verdade, em poucos lugares como o México a morte faz tanto e tão pouco sentido. É rotina, violenta muitas vezes, não tanto, quase sempre. À morte dão-lhe mil e um nomes. Uns descrevem-na: A Hedionda, A Careca, A Ossuda, A Sem Dentes, A Caveira; outras contam-lhe o espírito: A Democrática, A Patroa, A Igualadora. Quando alguém morre, um rosário de frases consoladoras põe-nos no nosso lugar, fazendo do caixão ali ao lado um espelho e um relógio de areia: “apenas se adiantou a nós” e a que nunca falta, “todos estamos na fila”.
Retomamos Paz. “Para os mexicanos, a morte não tem sentido (…) a insignificância da morte não nos leva a eliminá-la do nosso quotidiano. Para o habitante de Nova Iorque, Paris ou Londres, a morte é palavra nunca pronunciada, porque queima os lábios. O mexicano, por outro lado, frequenta-a, provoca-a, acaricia-a, dorme com ela, celebra-a, é um dos seus brinquedos favoritos e o seu amor mais permanente. É verdade que talvez haja tanto medo na sua atitude como na dos outros; mas pelo menos, não a esconde nem se esconde; olha-a cara a cara com impaciência, desdém ou ironia: ‘Se me vão matar amanhã, matem-me de uma vez por todas.’”
“A indiferença do mexicano à morte”, conclui, “alimenta-se da sua indiferença à vida. Os mexicanos não postulam apenas a insignificância de morrer, mas também de viver. As nossas canções, provérbios, festas e reflexões populares afirmam inequivocamente que a morte não nos assusta, porque ‘a própria vida curou-nos de todos os medos’. (…) A nossa indiferença à morte é o inverso da nossa indiferença à vida. Matamos porque a vida, nossa e dos outros, não tem valor. E é natural que isso aconteça: a vida e a morte são inseparáveis e cada vez que a primeira perde o sentido, a segunda torna-se inconsequente. A morte mexicana é o espelho da vida dos mexicanos. Perante ambas, o mexicano fecha-se, ignora-as.”
“A morte seduz-nos.”
Mictlán, o caminho de ida e volta
Sincrético na forma e conteúdo, nos últimos anos o “Dia de Muertos” segue uma tendência do país em sobrepor o carácter pré-hispânico a muito do que celebra, é e faz. Para os povos que viviam no que hoje é o México, relembra Octavio Paz, “a oposição entre morte e vida não era tão absoluta como para nós.” “[Para eles] a vida prolongava-se até à morte. E vice-versa. A morte não era o fim natural da vida, mas uma fase de um ciclo infinito. A vida, a morte e a ressurreição eram etapas de um processo cósmico que se repetia insaciavelmente. A vida não tinha função maior do que levar-nos à morte, o seu oposto e complemento; e a morte, por sua vez, não era um fim em si mesma. Com a sua morte, o homem alimentava a voracidade da vida, sempre insatisfeito.”
Nesta cosmovisão cíclica e transcendente, os nahuas (povos mesoamericanos, entre os quais os mexicas ou aztecas) criaram quatro lugares imaginários habitados por, digamos, categorias de mortos. Em Chichihualcuahco, vivem (ou morrem de vez) os que não chegaram a nascer; por seu lado, o paraíso aquático Tlalocan está reservado aos que morreram por alguma circunstância ligada à água, como afogamento. Em Tonatiuhichan, terminam os guerreiros mortos em batalha, os comerciantes falecidos em expedições, os sacrificados para o deus do Sol e as mulheres que morreram ao dar à luz.
Por último, para o Mictlán, vão os falecidos “comuns” sendo, por isso, o lugar onde mais provavelmente todos nós iremos parar. É de lá que vêm e aonde regressam as almas de grande parte dos nossos defuntos em cada Dia de Muertos, o único momento em que estão autorizados a dar uma escapadela para nos visitar.
Se este vaivém a cada 1 e 2 de Novembro é breve, a entrada no Mictlán após a morte é bem mais complicada e pode durar até quatro anos, segundo os mitos. Os perigos são constantes, os obstáculos e julgamentos também. Até chegar ao Mictlán, os mortos têm que passar por nove níveis, cada um mais obscuro e sangrento que o outro.
A rota começa então em Itzcuitlán, uma dimensão onde mora o deus do Ocaso e Xoloitzcuintle, um cão sem pelo, autóctone do México. Neste nível, os cães ajudam os mortos que trataram bem os animais em vida a cruzar o rio Apanohuacalhuia. Os humanos que em algum momento fizeram mal a um cão, já não avançam. Ficam por ali mesmo, nas margens do rio, numa deambulação eterna.
Depois do curso de água, entra-se no Tepectli Monamictlán, um lugar perigoso onde as montanhas em movimento chocam entre si. A agilidade para cruzar este pesadelo é essencial. Um descuido basta para serem esmagados eternamente entre morros e pedras.
O terceiro nível da viagem para o Mictlán é a montanha de obsidiana, Itepel, onde habita o deus Iztlacoliuqui. Também aqui o panorama não é nada animador. Uma muralha com um caminho de obsidiana desgarra quem o tenta cruzar. No final do caminho, um vento forte desnuda os mortos de roupas e pertences.
Nus, seguem então para o quarto nível, o Itzehecayan, terra de gelo e neve incessante com oito pedras cortantes, de onde saem para o Paniecatacoyan. Neste lugar, os ventos são tão violentos que arrastam os mortos pelos ares, durante anos, até acertar com a saída para o sexto nível, o Timiminaloayan. Aqui, os mortos devem passar com cuidado um trilho onde se escondem na escuridão milhares de mãos invisíveis que lançam setas. Quem for atingido dessangra-se e fica pelo caminho.
O deus das montanhas, dos ecos e dos jaguares, Tepeyóllotl, domina o sétimo nível, o Teocoyohuehualoyan, onde feras selvagens abrem o peito dos mortos e arrancam-lhes o coração. Com o corpo destroçado, entram na oitava etapa, onde inicia a fase de redenção. Os caminhantes são atirados para um rio de águas negras, o Izmictlan Apochcalolca, onde têm que se desprender de penas e dores. Se não o fizerem, essa carga emocional arrasta-os até às profundezas do rio, de onde não mais sairão.
Por fim, o nono nível, Chicunamictlan, o lugar das nove águas onde uma intensa neblina espera os mortos. Enquanto tentam encontrar a saída, são obrigados a redimir-se dos seus pecados e culpas. Arrependidos, e com o corpo e alma limpos, entram finalmente no Mictlán. São recebidos pelo Senhor da Mansão dos Mortos com uma frase lapidar: “Terminaste as tuas penas, vai agora dormir o teu sono mortal”. Com estas palavras, dissolvem-se no nada.