Brasileiros na fronteira, um rasto no deserto
Desde 2019, a crise económica no Brasil atirou dezenas de milhares de pessoas para uma longa rota de migração em direção à fronteira entre o México e os Estados Unidos. Famílias inteiras juntam-se a centro-americanos, cubanos, haitianos, venezuelanos, africanos ou asiáticos num caminho perigoso. Sem retorno, este caminho, para os que o deserto lhes tira o alento.
Quando, em dezembro de 2021, o governo mexicano suspendeu o Acordo de isenção de Vistos para Nacionais Brasileiros, em vigor desde 2004, a surpresa foi geral. Brasil? Porquê? Sem rodeios, a Secretaria de Relações Exteriores (SRE) mexicana disparou num comunicado: “Para combater redes de tráfico ilícito de pessoas” e “ordenar os fluxos migratórios”. A partir de então, explicavam as autoridades, qualquer brasileiro que viajasse por terra ou mar precisava de ter um visto físico para entrar no México; para os que vinham de avião, bastava entrar na página da SRE e obter um visto eletrónico.
Esta decisão era um sinal dos tempos, defendia o governo mexicano. Necessária perante “o incremento de fluxos irregulares com os quais, lamentavelmente, os grupos criminosos lucram, com base em enganos, com o interesse de nacionais brasileiros para migrar de maneira irregular para os Estados Unidos através do México, ao abrigo da facilidade que outorgava o mencionado Acordo [de Isenção de Vistos]”. Uma “situação”, concluía, “que coloca [os nacionais brasileiros] em contextos de grande vulnerabilidade, em particular as mulheres e crianças”.
A medida, claramente induzida pelos Estados Unidos, expôs um cenário insuspeito que acrescentou a cara brasileira à migração ilegal com trânsito pelo México. Uma marcha perigosa, tradicionalmente centro-americana e mais recentemente cubana, haitiana, venezuelana, africana e asiática, sobretudo. Mas brasileira nunca, pensávamos até então.
No entanto, o espanto foi só para os mexicanos. Em 2019, a detenção de 18 mil brasileiros na fronteira já tinha feito eco na imprensa do Brasil. Depois de um início calmo de 2020 devido à pandemia, no ano passado os números dispararam a níveis sem precedentes. Um mês antes do anúncio da SRE mexicana, a BBC Brasil expunha um cenário demolidor: “57 mil detidos: número de brasileiros cruzando fronteira do México para EUA aumenta 8 vezes em um ano e bate recorde”. Os números eram da Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA (CBP, na sigla em inglês) e referiam-se ao período fiscal de 1 de outubro de 2020 a 30 de setembro de 2021. Segundo a CBP, a grande maioria dos brasileiros viajava em família (77%), havendo 188 menores de idade desacompanhados.
Com um aumento de 700% de migrantes ilegais brasileiros capturados em relação ao mesmo período anterior (1 de outubro de 2020 a 30 de setembro de 2021), o Brasil tornava-se no “sexto país com o maior número de imigrantes detidos pelas autoridades americanas na fronteira sul do país, atrás do México, Honduras, Guatemala, El Salvador e Equador, nessa ordem”, enumerava a BBC Brasil.
Embora com menos detenções, a tendência não divergiu muito no ano fiscal 2022, com mais de 51 mil migrantes brasileiros capturados nos EUA entre 1 de outubro de 2021 e 30 de setembro de 2022, segundo dados disponíveis no site da CBP.
Abandono e morte
Em setembro de 2021, três meses antes da entrada em vigor da obrigatoriedade dos “vistos mexicanos” para brasileiros, a morte de uma migrante da Rondónia, no estado norte-americano do Novo México, exibiu a face trágica da migração ilegal.
O corpo de Lenilda dos Santos foi encontrado no final de um rasto marcado na areia do deserto. “Ela morreu rastejando”, descreveu o irmão à imprensa brasileira. Lenilda tinha 49 anos e era natural de Vale Paraíso. Técnica de enfermagem, saíra em agosto anterior com dois amigos de infância rumo aos Estados Unidos. Queria trabalhar para pagar a faculdade das filhas e, recorrente, dar melhores condições de vida à família.
Depois de um compasso de espera no México, o grupo de Lenilda atravessou a linha de fronteira a pé, seguindo uma rota aparentemente traçada por coites, contam as testemunhas. Logo no segundo dia de caminhada, Lenilda começou a debilitar-se por um quadro severo de desidratação. Os companheiros de viagem não olharam para trás. Apressaram o passo, deixando-a sozinha sem água nem comida. Marcaram encontro num ponto do deserto onde Lenilda tentou chegar. “Eles abandonaram-na na segunda-feira. Ela ainda caminhou a terça todinha, chegou ao lugar onde tinha que chegar, mas ninguém a veio buscar”, contou uma das filhas da migrante à Globo. Dias depois encontraram o corpo.
O desfecho triste de Lenilda juntou-se a uma série de histórias relatadas nos últimos dois anos pela imprensa brasileira. Como a captura de 146 migrantes quando tentavam entrar ilegalmente nos EUA pelo sector de Yuma, no Arizona; ou a do grupo de imigrantes brasileiros descobertos na carroçaria de um camião a caminho do Texas; ou ainda a de “João” (nome fictício), um bebé de ano e meio que “passou mais de um mês num lar temporário no estado de Virgínia depois de ser encontrado na companhia dos avós, encaminhados para deportação”, conta a BBC Brasil. “A mãe dele, que conseguiu acesso aos EUA depois de atravessar a fronteira com o seu outro filho adolescente, precisou de comprovar não ter antecedentes criminais no Brasil para se poder reunir ao bebé.”
“João” é uma das milhares de crianças brasileiras menores de seis anos que, segundo informação obtida pela BBC Brasil junto à CBP, em 2021 “atravessaram irregularmente a fronteira dos Estados Unidos com o México e acabaram detidas pelos serviços de migração”.
Desemprego e coiotes
Na hora de entender o que está a acontecer, a estagnação económica do Brasil e os altos níveis de pobreza e desemprego (no terceiro trimestre de 2021, a taxa de desemprego atingiu o valor mais alto em 10 anos, de 14,9%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) são a explicação mais óbvia desta onda migratória brasileira para os EUA que ruma, sobretudo, para Boston, Nova Jersey e Miami.
A “desesperança com a política e a economia do Brasil”, como classificava a socióloga Sueli Siqueira numa entrevista à BBC Brasil, em 2021, juntava-se, na altura, à “crença de que Biden vá tornar mais fácil a vida de quem vem de fora”. Esta expectativa, criada pela mudança de presidente norte-americano – do taciturno Trump a um Biden sorridente –, criou uma enxurrada de migrantes ilegais de todo o mundo nos primeiros meses da nova administração. A deceção foi quase imediata. Depois de alguns sinais de abertura, os EUA voltaram a fechar-se em sete, mil copas.
Em conversa com a DW Brasil (2021), Jairo Guidini, diretor-executivo da Rede Internacional para Migrações, acrescentava uma nuance importante à debandada de milhares de brasileiros para os EUA: um intrincado esquema de tráfico humano que cobra entre “10 a 20 mil dólares pelo serviço”. “Os coiotes [traficantes de pessoas} dizem que elas vão arrumar emprego bom, que vão atravessar a fronteira tranquilamente, mas chegam aqui e deparam-se com outra realidade, e muitas vezes têm que pedir ajuda a igrejas, parentes e amigos para poder pagar aluguer e comer”. Segundo o sacerdote, os coiotes “prometem que vão hospedar a pessoa num hotel, mas chegam aqui e amontoam-nos em casas; dizem que vão usar um barco na travessia, mas na hora é uma canoa; e às vezes abandonam alguns na travessia”, lamenta, relembrando o exemplo trágico de Lenilda dos Santos.
Muitas destas redes, lê-se na mesma reportagem da DW Brasil, são inclusivamente de “brasileiros nos Estados Unidos”, que “ganham dinheiro para facilitar a migração de pessoas indocumentadas”, denuncia Dimitri Fazito. Para o demógrafo, apesar da situação económica complicada no Brasil, “este volume de migração não aconteceria se não houvesse já um sistema operando para tal”.
Famílias inteiras acreditam no conto do vigário e apostam numa mudança de 180 graus, confirma a socióloga Sueli Siqueira. “As características desta migração, maioritariamente em família, indicam que essas pessoas estão a tentar uma mudança definitiva de país, um reassentamento e recomeço de vida, e não apenas trabalhar para ganhar em dólares por algumas temporadas para depois regressar ao Brasil”.
Carteiras Gucci
A migração ilegal de brasileiros não passou ao lado dos vários quadrantes políticos dos EUA. Em Outubro do ano passado, Lindsey Graham, senador do Partido Republicano, usou os brasileiros indocumentados como arma de arremesso político. O exemplo que deu foi bizarro. “Tivemos 40 mil brasileiros só no posto de fronteira de Yuma [Arizona], que iam para [o estado de] Connecticut. Usavam roupas de marca e carteiras da Gucci. Isso não é mais imigração económica. As pessoas veem que os Estados Unidos estão abertos e tiram vantagem de nós, e não vai demorar muito para que um terrorista se misture a essa multidão”, cita o canal de notícias da Globo. Até hoje, Lindsey Graham nunca apresentou provas das tais carteiras Gucci com pó da fronteira, como lhe exigiram os críticos na altura.
No entanto, o alboroto populista causou o efeito desejado e destapou ante a opinião pública norte-americana a onda migratória brasileira. Nesse mesmo Outubro de 2021, o secretário de Estado americano, Antony Blinken abordou com o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Carlos França, “os movimentos migratórios irregulares sem precedentes pelo hemisfério”, informou o porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, Ned Price, citado pela imprensa brasileira. Ambos terão discutido ainda como os dois países podiam “trabalhar juntos para conter o fluxo descontrolado e crescente de imigrantes irregulares na região”.
Com os holofotes a seguir-lhes os passos, os coiotes e as redes de imigração ilegal foram obrigados a encontrar novos estratagemas, concentrando agora a entrada de brasileiros nos EUA pela fronteira do México com a Califórnia (não mais pelo Arizona).
Segundo uma reportagem do “Fantástico”, há também cada vez mais evidência da presença de brasileiros nos grupos que viajam para os EUA em condições altamente precárias a partir de Quito, no Equador. Uma rota para lá de perigosa, América acima, que cruza oito países e passa por lugares tão arriscados como a selva do Darién, entre a Colômbia e o Panamá (a série de reportagens “Angolanos a caminho dos EUA” descreve a detalhe esta rota: Os invisíveis; Os Afogados; Os Perdidos; Os Passageiros; Os Ilegais).
Face à onda imparável de migrantes brasileiros detidos nos EUA, e constantemente pressionado pelo governo norte-americano, há poucos meses o México trancou ainda mais a porta ao Brasil. Se desde Dezembro de 2021 os brasileiros que viajassem de avião podiam entrar com um visto eletrónico, facilmente emitido no site da Secretaria de Relações Exteriores (SRE) mexicana, agora já nem isso. A nova regra, publicada na página da instituição, é perentória: “A partir do dia 18 de agosto de 2022, os cidadãos brasileiros precisam de visto para viajar ao México. O trâmite de visto só pode ser realizado de maneira presencial nos consulados ou embaixadas do México”.
As letras pequenas, mais abaixo, não deixam dúvidas (se ainda as houvesse) sobre o carácter geopolítico da imposição: “Não precisam de visto: Brasileiras/os que têm visto válido e vigente do Canadá, Estados Unidos da América, Espaço Schengen, Japão ou Reino Unido; Brasileiros/as com residência permanente no Canadá, Chile, Estados Unidos da América, Espaço Schengen, Japão, Peru ou Reino Unido.”