Guiné-Bissau: se um barco atracasse
Em Julho de 2009 a campanha para a segunda volta das presidenciais na Guiné Bissau estava na nas ruas há uma semana. Mas os protagonistas não se resumem a Kumba Ialá e Malam Bacai Sanhá – há também o povo, que rejeita a violência e teme os militares e o poder do narcotráfico.*
Um táxi Mercedes 190, azul e branco, percorre a maior avenida da Guiné, que liga Bissau ao aeroporto. Finta os “toca-toca”, primos azuis e amarelos dos candongueiros da “Banda”, e acelera rumo à cidade. É um táxi velho, “meio à Europa”, ri-se o condutor Fernando. “Esta avenida chamava-se ’14 de Novembro’, que foi quando o Nino Vieira fez o golpe [em 1980]. Uns meses depois dele ser morto [em 2 de Março deste ano] apagaram o nome antigo e disseram que agora se chama Avenida dos Combatentes da Liberdade da Pátria”. “É lá com eles”, chuta, indiferente. Soa um reggae de Lucky Dube numa cassete gasta: “It’s not easy to understand it son” – “não é fácil compreendê-lo, filho”.
O trânsito avoluma-se no troço da avenida atravancada de armazéns e pelas sedes nacionais de campanha de Kumba Ialá e do já fora do baralho Henrique Rosa. Acelerador a fundo em direcção ao centro desta Bissau que se parece, em muito, com as cidades das províncias angolanas. Traçado geométrico intacto, casas térreas, prédios baixos, árvores nos passeios desarranjados. É a capital do sexto país mais pobre do mundo (projecção do “The World Factbooks” da CIA, 2008), mas onde a periferia é muito mais organizada, limpa e digna do que os bairros miseráveis que proliferam nesta Luanda “a nadar em dinheiro”, como julgam muitos guineenses. Anacronismos que dão que pensar.
O azul e branco rola e a cidade surpreende quem a vê pela primeira vez. Nesta Bissau, afinal, também há discotecas “com muita carga”, onde a música angolana é rainha; e esplanadas e bares onde se dedilha ao vivo o gumbe, o irmão guineense do semba. Animação que, mesmo em plena campanha eleitoral sensível, segue madrugada dentro, a provar que o clima marcial com que normalmente a opinião pública internacional pinta a Guiné-Bissau não é verdadeiro. “Mesmo quando há confusão a sério, e matam este ou aquele, saímos na manhã seguinte para comprar pão na rua”, conta-nos um comerciante que não se quis identificar. “Eles [políticos e militares] que façam o que quiserem uns aos outros, mas que nos deixem no nosso canto”.
Em estradas impecavelmente asfaltadas, o taxista Fernando prossegue pela Assembleia Nacional e desemboca no largo onde a antiga sede da Presidência da República, semi-destruída desde a guerra de 98/99, exibe a sua dignidade de fantasma. Deixa à sua esquerda a sede do PAIGC, palco privilegiado de Malam Bacai Sanhá, e desce mais uma comprida avenida. Clube desportivo da UDIB, Sé, Correios, Comissão Nacional de Eleições e o mar. 400 francos CFA (moeda que a Guiné-Bissau partilha com mais 13 países da região) e um “obrigado”. Ali à frente, o porto de Pindjiguiti.
Esperar para partir
Mais de 55 anos depois, o histórico cais de Pindjiguiti, onde em 1959 as autoridades coloniais portuguesas massacraram 50 guineenses, dando origem à luta de libertação armada, ainda é visto como uma metáfora de liberdade. De uma outra liberdade, teorizada numa afirmação do escritor guineense Abdulai Silá, que retomámos sob a forma de pergunta nas ruas de Bissau: “Se um barco atracasse em Pindjiguiti com capacidade para levar para Europa todos os jovens da Guiné, embarcavas?”
“Sim”. Suaré Baldé, 24 anos. “Sim, embarcava”. Aladjé Sanhá, 24 anos. “Sim, toda a gente estaria interessada”. Malam Sambú, 23 anos. “Sim. Estou a juntar dinheiro para sair e voltar quando a situação mudar”. Alfredo Gomes, 26 anos. “Se calhar também me vou embora. Grande parte da classe média e pessoas lúcidas deste país – intelectuais, artistas, médicos – deixou o país. Já assisti a todas as confusões, será que estou preparado para assistir a mais uma?” Kota Flora Gomes, cineasta.
O barco imaginário vai-se enchendo de gente assaltada por esta vontade fixa de partir – uma obsessão “mortal para qualquer país”, como aponta o reitor Fafali Koudawo, mas que tem as suas razões de ser, para além da clara falta de condições e de infra-estuturas básicas. “Na Guiné-Bissau, as oportunidades não são dadas a quem sabe, mas a quem apoia politicamente o Governo”, queixa-se o jovem Malam Sambú. Na mesma senda, Aladjé Sanhá: “os políticos mais velhos não querem passar o testemunho. Temos de ser nós, os jovens que estão revoltados com a situação, a assumir a liderança deste país. Mas para isso, temos de sair e estudar para depois voltar, e lutarmos até ao fim para alcançarmos o nosso objectivo.”
Enquanto o grupo de amigos fala, por trás, no palco da esplanada “Lenox”, desfilam moças não maiores de 15 anos. Algumas estão bem arranjadas. Outras têm as camisas sujas e a carapinha desgrenhada. Posam para uma câmara imaginária. “O que é que elas esperam da vida?”, interroga-se Alfredo Gomes, animador da Rádio Pindjiguiti. “Desde os últimos acontecimentos [morte de Nino Vieira e de outras figuras políticas] que já perdi quase a esperança de continuar a viver no meu país. Aqui os sinceros vivem pobres, e eu quero continuar a ser honesto, para amanhã os meus filhos não me apontarem o dedo. Se ficar aqui, ou continuo sem nada, ou entro numa onda de corrupção e passo a ter algo mais, mas perco a minha honra”. Olhar fixo, muito sério.
No povo guineense, este sentido de integridade é algo generalizado e impressiona quem chega ao país cheio de preconceitos construídos com base nos ecos do que chega ao mundo sobre a Guiné-Bissau. Ideias feitas que caem por terra ao primeiro contacto com as pessoas comuns, do dia-a-dia. “Este povo é muito pacífico, afectuoso e simples”, e “é injustamente rotulado de violento devido à imagem que um grupo restrito de políticos e militares passa lá para fora”, remarca a activista Macária Barai. “Se os guineenses fossem violentos como se diz, já há muito tinham saído à rua para protestar”, nota Flora Gomes.
É também um povo de uma desesperança desconcertante, que “ainda não compreende como o seu país chegou a este ponto”, acrescenta Barai, e que “tem também de assumir a sua culpa pela situação actual, porque o país é também ele que o faz”, defende Fafali Koudawo. “Se na altura da luta contra o colonialismo, em que a Guiné-Bissau era um exemplo para toda a África, me tivessem dito que 30 anos depois eu me estaria a questionar se é aqui que quero viver, se é aqui que quero passar os meus últimos tempos, porque já não acredito… quando ponho isso em causa…”. Conclusão em suspenso no silêncio de Flora Gomes.
Funje de cocaína nas Bijagós
“Nós, guinenses, somos muito bons a inventar boatos”, diz, entre sorrisos, Flora Gomes. Um deles captámos numa conversa informal: “Um dia, uns pacotes deram à costa numa praia das ilhas Bijagós. As pessoas que lá viviam recolheram-nos, sem saber o que era. Quando os abriram, encontraram uma espécie de farinha branca. Ficaram todos contentes e fizeram uma massa que toda a comunidade comeu. Conclusão: ficaram a dormir durante uma semana! Era cocaína!”. Gargalhada geral.
Apesar de anedótico, este “conto” é bem sério. O narcotráfico está a abalar a sociedade guineense e a carimbar a vermelho, em cima do nome do país, o rótulo “narco-Estado”. A recente onda de assassínios políticos, que começou a 2 de Março com as mortes do chefe das Forças Armadas, Tagme Na Waié, e do Presidente da República, Nino Vieira, e que culminou a 5 de Junho com a liquidação do candidato presidencial Baciro Dabó e do deputado Hélder Proença, suscitam a pergunta: até que ponto os narcotraficantes instalados na Guiné, que peritos norte-americanos dizem estar ligados à guerrilha colombiana, estão a ampliar a instabilidade política no país?
Fafali Koudawo, comentador político, acredita que estas mortes foram, acima de tudo, “ajustes de contas”, que também “servem desígnios políticos”. “O narcotráfico serve apenas de catalisador, porque traz mais meios e novos actores – os traficantes – que buscam alianças com círculos do poder para prosperar”, infere. Opinião que vai de encontro a um pronunciamento recente de Antonio Mazzitelli, representante da organização de combate à droga da ONU na África Ocidental, para quem a morte daqueles dirigentes teve essencialmente raízes “em desavenças pessoais”, e não no suposto envolvimento no tráfico de drogas.
Mas há quem veja a situação de forma diferente. Numa comunicação ao Senado norte americano, no dia 23 de Junho, o sub-Secretário de Estado assistente para África, Johnnie Carson, foi taxativo: “Acreditamos que o Presidente e o chefe do exército foram mortos em grande parte devido às relações que tinham com o financiamento e negócio de drogas.” Referindo a Guiné-Bissau como o “primeiro narco-Estado” da África Ocidental, Carson realçou a dimensão do problema com um pormenor significativo: “O Produto Interno Bruto do país é o equivalente ao valor de seis toneladas de cocaína, que podem ser transportadas no espaço de um a dois meses”. Há dez anos sem representação diplomática em Bissau, os EUA anunciaram há duas semanas a máxima prioridade na abertura de uma embaixada com “uma certa dimensão” neste país.
Vladimir Monteiro, porta-voz da missão das Nações Unidas para a Guiné-Bissau (ONUGBIS), indica, no mesmo registo, que o tráfico de droga é um problema de “toda a África Ocidental”, mas que o Estado guineense é o mais afectado devido “à sua fragilidade e pobreza”. O responsável diz ainda que a ONUGBIS “já alertou as autoridades para o perigo da droga entrar no circuito público, social e político do país”. “A acontecer, teria proporções que não podemos prever”, considera.
Na percepção dos guineenses, este perigo já há muito que saltou do domínio da possibilidade. “A aparente liberdade com que os traficantes actuam no país” levanta suspeitas quanto a um possível “elevado grau de cumplicidade com altos círculos do poder”, denunciam vários actores da sociedade civil, como Macária Barai. Acusação retomada por Suaré Baldé, coordenador da Associação Trajectórias para o Desarmamento da Violência, que actua no Bairro Militar, considerado o maior centro comercial de droga de Bissau. Segundo o jovem, “toda a gente pode apontar uma pessoa suspeita de ter laços com o narcotráfico”, embora “ninguém consiga apresentar provas”. “Vemos coisas que nos surpreendem – pessoas que saíram do nada e agora têm muita coisa”, testemunha, por seu lado, Flora Gomes. Como Hummers, que passam com alguma frequência nas ruas da capital guineense e são alvo da desconfiança de todos.
O NJ tentou contactar Lucinda Barbosa, directora da Polícia Judiciária, mas segundo informações recolhidas no local, a responsável estava ausente do país “por tempo indeterminado”.
Novo pacto e os militares
Estas eleições presidenciais “são as mais perigosas de sempre no que toca à gestão do período pós-eleitoral”, alerta Fafali Koudawo. “O futuro presidente tem de reunir consensos, senão a crise política vai aprofundar-se”, vaticina. Este consenso, para além das entidades civis, terá de incluir os militares, uma peça fundamental na Guiné. “Eles contribuíram para a luta de libertação, sentem-se com mais legitimidade do que o poder político, e por isso subalternizam toda a autoridade que sai das urnas”, diz Koudawo, que acrescenta: “Até os militares jovens se aproveitam desse capital histórico”.
“Temos um exército que nunca quis aceitar os tempos da democracia”, atira, por sua vez, Luís Martins, presidente da Liga Guineense dos Direitos Humanos (LGDH). Por outro lado, refere Macária Barai, “o casamento entre militares e políticos para alcançar o poder” fez com que a Guiné entrasse “num ciclo de golpes e assassínios que tornaram o Estado frágil.”
Embora Zamora Induta, o actual chefe interino das Forças Armadas, não seja uma figura nada consensual (o antigo chefe do Governo, Francisco Fadul, acusou-o de ter planeado, em conjunto com o primeiro-ministro, Carlos Gomes Júnior, a morte de Nino Vieira e do anterior chefe do exército, Tagme Na Waié - hipótese rejeitada pelos acusados), ele está a ser visto por alguns sectores da sociedade como alguém capaz de arrumar a casa num exército que também não escapa às suspeitas de envolvimento no tráfico de droga. Mas “o medo que os militares infundem nos guineenses é real”, relembra o presidente da LDGH. Um medo que, defende Luís Martins, “está na base da recusa, por parte dos políticos do país, do envio para a Guiné de uma força internacional de manutenção da paz”. “O poder político teria de autorizar a vinda das forças, o que não está em condições de fazer, pois poderia sofrer represálias das forças militares”, diz. A discussão desta ideia, defendida pela sociedade civil, foi vigorosa no início da campanha, mas acabou por desfalecer.
Tínhamos uma entrevista marcada com o porta-voz das Forças Armadas, Samuel Fernandes, que não compareceu ao encontro. Até ao regresso a Luanda, não foi possível reatar o contacto.
Fotografias de Catarina Laranjeiro
*Reportagem publicada no Novo Jornal, Angola, a 17/7/2009, uma semana antes da segunda volta das Presidenciais na Guiné-Bissau, que deram a vitória a Malam Bacai Sanhá.