Perdão? Que perdão?
Em 2019, uma carta oficial do México a exigir perdão a Espanha pelos crimes cometidos durante a Conquista pôs as relações entre os dois países às avessas. Dois anos depois, a discussão ganha proporções inimagináveis, metendo ao barulho governantes, ex-presidentes, a extrema direita espanhola, independentistas catalães e até Joe Biden e o Papa Francisco. Nos seus territórios, os povos indígenas assistem ao espetáculo em silêncio.
Sabem, melhor do que ninguém, que 500 anos é pouco para lidar com a memória e o sangue.
O céu era azul e o vento, sentia-se nas imagens, soprava quente. Uma pirâmide em ruínas em Comacalco, no estado sudoeste de Tabasco, era o cenário simbólico perfeito. Com camisa de linho branca – seguramente era um domingo dengoso – o presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador (AMLO) soltava uma “bombaça” diplomática nas redes sociais. Era março de 2019. “Enviei uma carta ao rei de Espanha e outra ao Papa para que peçam perdão aos povos originários pelas violações do que agora se conhecem como direitos humanos. Houve matanças, imposições, a chamada Conquista fez-se com espada e cruz. Edificaram-se igrejas em cima dos templos… É tempo de nos reconciliarmos e pedir perdão. Eu também vou fazê-lo, porque depois da Colónia houve muita repressão aos povos originários.”
No México, as reações não demoraram – cada respiro deste homem causa cisão entre os dois países que ele mesmo cataloga: por um lado o “povo bom”, que o apoia, e por outro os “conservadores neoliberais”, que o odeiam. A América Latina também não ficou indiferente. Governantes como Maduro e Evo Morales aplaudiram a iniciativa, ao passo que figuras como Mario Vargas Llosa, que não pode ver AMLO nem com molho de tomate, arrasaram-no. Numa conferência, o escritor peruano mandou a direta: “López Obrador deveria ter enviado essa carta a ele mesmo. Devia perguntar-se por que razão o México, que há cinco séculos se incorporou ao mundo ocidental graças a Espanha, e que desde há 200 anos é independente e soberano, tem ainda tantos milhões de índios marginalizados, pobres, ignorantes, explorados.” “Este problema”, continuou, “não está lá no passado, há 500 ou 400 anos, está aqui vivo, hoje, e golpeia-nos a consciência a todos nós, latino-americanos, que não fomos capazes de resolvê-lo. (…) Este não é um problema dos espanhóis de hoje, é um problema que afeta fundamentalmente os espanhóis que vieram e que ficaram aqui, os avós, bisavós, tetravós do Sr. López Obrador e meus e de milhões de latino-americanos que nos sentimos orgulhosos de ter antepassados espanhóis.”
Os espanhóis por convicção ou imposição – não os mortos, mas os vivos – também reagiram. O então chanceler da Catalunha, Alfred Bosch, não desperdiçou a dica rebelde de AMLO contra Madrid para cutucar a onça do reino. Meses mais tarde, numa viagem de charme pelo México, aproveitou a ocasião para criar uma enorme alegoria: “Desde o governo da Catalunha exortamos o governo espanhol a aceitar a assumpção destas responsabilidades históricas, porque isto contribui para o reforço das relações entre povos, numa relação de igual para igual. Trabalharemos ombro a ombro com o México para recuperar a dignidade que nunca se deveu ter perdido. Estamos ao lado dos povos originários da América.”
“Refutamos com firmeza!”, respondeu o Ministério das Relações Exteriores de Espanha à carta do presidente mexicano, num comunicado peneirado pela insossa linguagem diplomática, mas visivelmente mal humorado. “A chegada, há 500 anos, dos espanhóis às atuais terras mexicanas não se pode julgar à luz das considerações contemporâneas. Os nossos povos irmãos têm sabido sempre ler o nosso passado partilhado sem ira e com uma perspectiva construtiva, como povos livres com uma herança comum e uma projeção extraordinária.”
A contraposição não causou surpresa nem espanto. Neste ano em que se assinalam os 50 anos da obra As Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano, analistas latino-americanos aconselharam a Coroa espanhola a ter este livro na cabeceira. A discussão, dentro e fora do México, ficaria em banho-maria por dois anos. Até que há um mês a calmaria virou tempestade. O raio fulminante viria de onde menos se esperava – os muros altos e sagrados do Vaticano.
Pedradas no lodo da memória
No último 27 de setembro, dia dos 200 anos da independência do México, o Papa Francisco abriu as portas do inferno nesta discussão ardente que a bendita carta de AMLO iniciou em 2019. Numa conferência de imprensa, o presidente do Episcopado Mexicano, Rogelio Cabrera, leu com voz firme a mensagem de Francisco. “Para reforçar as relações [entre o México e o Vaticano] é necessário reler o passado, considerando tanto as luzes como as sombras que formaram a história do país. Esta visão retrospectiva tem necessariamente que passar pela purificação da memória, reconhecendo os erros cometidos no passado, que foram bastante dolorosos. Por esta razão, em várias ocasiões tanto eu como os meus predecessores pedimos perdão por pecados pessoais e sociais, por todas as ações ou omissões que não contribuíram para a evangelização.”
Foi uma vitória política para AMLO. Já em Espanha, o mea culpa papal causou à direita leve, levezinha, moderada e extrema uma indigestão daquelas. O primeiro vómito saiu da boca do Vox, o monstro da ultradireita espanhola. “Não sei o que leva um Papa, chefe de Estado do Vaticano e argentino, a pedir perdão em nome das outras pessoas”, balbuciou o porta-voz parlamentar do partido, Iván Espinosa de los Monteros.
No entanto, a improvável rock star dos comentários contra a posição do Papa Francisco foi a presidente da Comunidade de Madrid. Foi uma coincidência divina. Nesses dias, Isabel Díaz Ayuso (Partido Popular) andava pelos Estados Unidos numa missão de “defesa da hispanidade”. Metida num impecável casaco branco de ombreiras quadradas e delicadas, blusa vermelha e cabelo desalinhado a la mode, não foi parca em palavras. “Para mim, é surpreendente que um católico que fala espanhol se expresse assim de um legado como o nosso que foi levar, precisamente, o espanhol e, através das missões, o catolicismo… e, portanto, a civilização e a liberdade ao continente americano.”
Nos dias seguintes, Isabel Díaz Ayuso voltou uma e outra vez à carga. Havia que defender a pátria. “O indigenismo, a revolução e o populismo estão a originar uma revisão maniqueísta da história de Espanha e do nosso legado na América. Também o presidente do México está a começar a desfazer a história de Espanha, a desfazer esse legado. Para nós, isto é gravíssimo, porque cultiva uma falsa história do nosso passado, dinamita o legado espanhol na América. Além disso, está a promover um indigenismo que é o novo comunismo!”
“O indigenismo é o novo comunismo!”, gritaria também dias depois José María Aznar, num refrão que ultimamente o Partido Popular espanhol repete até à exaustão, tipo mensagem subliminar às claras. O ex-presidente do governo de Espanha participava na Convenção Nacional do PP durante a qual, fixação desgraçada, o pedido de perdão do México veio à tona como tema de interesse nacional (na verdade, nem AMLO imaginaria o impacto que teria a sua cartita). Quando tomou a palavra, Aznar mostrou de que madeira está feito:
- Nesta época em que se pede perdão por tudo e por nada, eu não vou engrossar as fileiras dos que pedem perdão (…) Com todo o respeito pelos 200 anos da independência do México, mas… vem este senhor [Andrés Manuel López Obrador] e diz que Espanha tem que pedir perdão. E eu perguntou-lhe: o senhor como se chama? Diga-me, por favor, como se chama. ‘Eu chamo-me Andrés Manuel López Obrador’.
O público da convenção do PP aplaude, ri-se detrás das máscaras porosas. Aznar esgaça um sorriso sarcástico na cara rapada, já sem aquele bigode farfalhudo, pele a brilhar de “aftershave”. E vomita.
- É… Ele certamente se chama Andrés, por parte dos astecas; Manuel, por parte dos maias; López, isso… é uma mistura de astecas e incas; e Obrador, de Santander. Hombre!… É que se não tivessem acontecido algumas coisas, o senhor não estaria aí, nem se podia chamar como se chama, nem podia ter sido batizado.
Arregala os olhos, franze as sobrancelhas e de dedo em riste atira num tom honestamente preocupado:
- Nem se poderia ter produzido a evangelização da América!
A plateia irrompe em aplauso.
Fascistas nas ruínas de Tenochtitlán
O burburinho à volta do “perdão, não perdão, talvez sim, talvez não” vinha em crescendo desde meados do ano, ainda antes do Papa atiçar o lume. Para o México, 2021 é especial. Além dos 200 anos da independência, a 13 de agosto assinalaram-se também os 500 anos da queda de Tenochtitlán, a capital do império asteca, às mãos das tropas do espanhol Hernán Cortés. Na manhã dessa sexta-feira do século XXI, uma delegação zapatista em gira pela Europa marchou da Puerta del Sol à Plaza de Colón, em Madrid, gritando “Não nos conquistaram! Não cederemos!”. Foi um dos momentos mais simbólicos desta “invasão ao contrário” da Europa que os zapatistas iniciaram a 28 de maio deste ano numa travessia transatlântica.
13 de agosto é data dolorosa para os mexicanos e o Vox sabe. Via Twitter, fez questão de não deixar os créditos em mãos alheias, cravando o dedo na ferida. “Num dia como hoje, há 500 anos, uma tropa de espanhóis encabeçada por Hernán Cortés e aliados nativos conseguiu a rendição de Tenochtitlán. Espanha conseguiu libertar milhões de pessoas do regime sanguinário e de terror dos astecas”. Num momento em que a “polémica do perdão” subia de tom, a mensagem do Vox foi tudo menos inocente. A agenda do presidente do partido de extrema-direita comprová-lo-ia. No início de setembro, poucos dias depois do tweet, Santiago Abascal Conde reuniu-se na Cidade do México com deputados do Partido Ação Nacional (PAN), o segundo mais importante no espectro político do país. 15 panistas fecharam-se numa sala do Senado com Abascal e assinaram a chamada “Carta de Madrid: Em defesa da liberdade e da democracia da Iberosfera”. Este documento que o Vox difunde e impulsa gira à volta da ideia de que há que “libertar” os países latino-americanos “sequestrados por regimes totalitários de inspiração comunista, apoiados pelo narcotráfico e países terceiros”.
O preço político desta reunião para o PAN foi imenso. Históricos do partido mexicano criticaram a colagem de alguns dos seus legisladores ao Vox. O organizador do encontro foi demitido, não sem antes afirmar que se Santiago Abascal Conde tivesse um projeto para o México, em poucos anos seria presidenciável. Numa das suas conferências matutinas, o presidente mexicano acusou o Vox de ser um “retonho do franquismo”, formado por “fascistas, autoritários, classistas, racistas e corruptos”.
Tumbas e estátuas
Depois de meses de polémica intensa, chegou o dia 12 de outubro. A manhã clara em que Espanha celebra com toda o fervor a tal hispanidade, em festa pela chegada de Colombo às Américas em 1492. O dia que essa mesma América, do Canadá à Terra do Fogo, ressignificam em efeito dominó desde junho do ano passado, quando, por todo o continente, se decapitaram e derrubaram estátuas de “Colón”. É o antigo “Dia da Raça” na América Latina, que vários países renomearam à sua imagem e semelhança – “Dia da Resistência Indígena”, “Dia dos Povos Originários” ou “Dia do Encontro entre Duas Culturas”.
Este ano mais que nunca, segundo vários comentadores políticos, a direita espanhola elevou o 12 de outubro, espraiando toda a ira contra perdões e afins. O alvo já não era só o México. Um dia antes da efeméride, o presidente dos Estados Unidos entrou ao barulho e afirmou que a chegada de Colombo provocou “uma onda de devastação” entre os nativos norte-americanos. Joe Biden apelou também aos norte-americanos para não esquecer nem “enterrar estes vergonhosos episódios do passado” e decretou o 11 de outubro como o Dia dos Povos Indígenas nos EUA. Foi a gota que transbordou o copo. Atacada na sua glória pátria, a direita espanhola atirou umas quantas pérolas mais:
- A Hispanidade é o acontecimento mais importante da História da Humanidade depois da romanização! – exclamou Pablo Casado, líder do Partido Popular. – O reino de Espanha tem que pedir perdão porque há cinco séculos descobriu um Novo Mundo, respeitando os que aí estavam, criando universidades, prosperidade, construindo cidades inteiras? Eu acho que não.
Furioso, também o líder do Vox reagiu:
- Este lamentável presidente dos Estados Unidos acaba de atacar a grande obra da Hispanidade: a evangelização. Que orgulhosos nos podemos sentir com o que fizeram os nossos antepassados. As colónias espanholas foram o império dos direitos humanos!
Ardido e espumando de raiva (perdoem-me, mas imagino-o assim), Santiago Abascal Conde também tirou da manga duas iniciativas que submeteu ao Congresso espanhol: na primeira, exige a Espanha que celebre os feitos do Hernán Cortés, o militar que venceu o império asteca; na segunda, apela a Madrid que force o México a cuidar e valorizar a tumba do conquistador espanhol. Hernán Cortés está sepultado numa igreja da Cidade do México, onde uma plaquita assinala de quem são aqueles ossos. Esta singeleza desonrosa este herói nacional, considera Abascal.
Apesar de haver no México quem apoie esta deriva de direita, os espasmos patrióticos de Abascais, Casados e companhia causam entre os mexicanos mais escárnio que outra coisa. Os apoiantes de AMLO repetem que o perdão é uma forma de pôr os pontos nos is e contar a História tal qual como foi, sem tiques epopeicos nem vitimização. A Cidade do México, gigante que se ergue sobre a grande Tenochtitlán, evolui, está mais imune a ataques. Este mês, as autoridades renomearam a toponímia de ruas e praças que ostentavam nomes coloniais. Removeram também a estátua de Colombo da icónica Avenida Reforma. O pedestal será ocupado por uma réplica de “A Jovem de Amajac”, uma imponente figura pré-hispânica encontrada a 1 de janeiro deste ano no estado de Veracruz.
E o perdão?
AMLO cumpriu este ano o prometido e pediu desculpa aos povos indígenas, sobretudo aos maias e yaques, pelos massacres e violência extrema a que o México os submeteu já como Estado soberano. Na cerimónia, representantes maias celebraram o ato “simbólico e histórico”. Mas em todos estão de acordo. Grupos indígenas classificaram esse perdão de “cínico e enganador”. O comunicado do coletivo “U Jeets’el le ki’ki’ kuxtal – Território Maia em Resistência e Rebeldia” foi particularmente duro: “De que serve pedir perdão pelos crimes do passado quando, no presente, a colonização dos nossos territórios e dos nossos corpos e emoções e pensamentos persiste cada dia com mais violência e intensidade? Quando a imposição de grandes projetos nos arrebata o território” e o converte em “sedes regionais, nacionais e globais da exploração laboral, da insegurança generalizada, dos feminicídios e assassinatos, do tráfico de drogas e de pessoas? (…) Pedir perdão teria sentido se reparassem e compensassem imediatamente o povo maia pelos erros do presente”. “Perdão? De que adianta pedir perdão?”
Cá e lá, entre as duas margens do Atlântico, encurralada numa verborreia sem fim “entre os outros”, a pergunta dos povos indígenas fica mais uma vez sem resposta.
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